18 Fevereiro 2020
"O que se impõe é o interesse e as conveniências do clero. Essa situação será resolvida quando se tomarem duas decisões:
1) a ordenação presbiteral de homens casados;
2) estabelecer na Igreja a igualdade de direitos de mulheres e homens. Irá a Igreja, mais uma vez, se empenhar em impor ao mundo e à história aquilo que o mundo e a história já demonstraram que a Igreja não tem poder para fazer e tampouco está no mundo para fazer?", critica José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 17-02-2020. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eis o artigo.
Há menos de uma semana publiquei uma breve reflexão propondo que, no que se refere aos problemas que afetam a Amazônia, em vez de nos dedicarmos a criticar o Papa, nos unamos todos a ele. E aqui neste artigo quero insistir. Porém, acrescentando uma pergunta: o mais perigoso na Igreja, agora mesmo, é a ameaça de um cisma ou é a pressão do clericalismo integrista?
A razão de ser dessa pergunta é compreendida facilmente: sem dúvida alguma, nos ambientes da Cúria Vaticana têm mais peso as ideias e os interesses dos cardeais, bispos e monsenhores que representam o clero conservador, que as ideias e carências das centenas de milhares de cristãos que vivem desamparados na imensa Amazônia.
Agora, os que pressionam em Roma, para que o Papa não tome decisão alguma neste momento, deveriam, antes de tudo, recordar aquele texto importante do Concílio Vaticano II: “Como todos os fiéis, também os leigos têm o direito de receber com abundância, dos sagrados pastores, os bens espirituais da Igreja, principalmente os auxílios da palavra de Deus e dos sacramentos” (Lumen Gentium, 37).
Responder devidamente a este direito dos fiéis é uma obrigação recompensadora que tem o governo da Igreja. Uma obrigação à qual o Papa tem que responder, independente dos interesses e argumentos do clero mais integrista e conservador.
Na Cúria Vaticana deveriam ter sempre muito presente que a Igreja tem sua origem e sua razão de ser, não em determinados setores do clero, por mais importante que isso seja. A Igreja tem sua origem e sua razão de ser em Jesus, o Senhor, a “Palavra que Deus tinha que dizer a esse mundo, e no Evangelho que Jesus nos deixou. E não esqueçamos que não o deixou como mandato, que tem seu ponto culminante na Eucaristia, para que nos lembremos dele e o tenhamos presente.
León, Astorga, Mérida e o bispo Cipriano
Esse dado é tão determinante, que a ele se sujeitam todos os demais. Inclusive a designação de bispos e ministros em cada comunidade cristã. É importante saber que, na Igreja dos primeiros séculos, reconhecia-se a cada comunidade o direito de escolher os seus ministros. E também o direito de tirá-los, quando os ministros não se comportavam de acordo com sua missão. Não estou expondo uma teoria. Estou falando de um fato bem demonstrado.
No outono do ano 245, apresentou-se a Cipriano, bispo de Cartago, um problema apontado por fiéis de três dioceses espanholas: León, Astorga e Mérida. Nessas igrejas, os bispos não cumpriam com sua obrigação de defender a fé cristã na perseguição que o imperador impôs contra os cristãos. Em tal situação, as comunidades depuseram de seus cargos os três bispos. Porém, um deles, chamado Basílides, recorreu a Roma, ao papa Estevão, com um relatório manipulado em benefício de Basílides. O Papa o realocou em sua sede diocesana.
Pois bem, dada essa situação, os fiéis das três dioceses mencionadas, ao se verem desamparados por Roma, recorreram a Cipriano, que convocou um Sínodo local para resolver o assunto. A decisão do Sínodo chegou até nós na carta 67 de Cipriano, que ademais está assinada por 37 bispos que assistiram ao Sínodo.
A comunidade elege e depõe o bispo
Se pode pensar razoavelmente que se trata de uma mentalidade estendida e aprovada pelas Igrejas do século III. Pois bem, na carta sinodal, são feitas três afirmações determinantes:
1) A comunidade local tem poder para escolher seus ministros, concretamente ao bispo:
“Vemos que a escolha do bispo vem da origem divina na presença do povo, à vista de todos... Deus manda que perante a assembleia seja escolhido o bispo” (Epist. 67, IV, 1- 2. Ed. J. Campos, Madrid, BAC, 1964, 634)
2) A comunidade tem o poder de tirar o bispo indigno:
“O povo deve se afastar de um bispo pecador e não misturar-se ao sacrifício de um bispo sacrílego, quando, sobretudo, tem poder de escolher bispos dignos ou de rejeitar os indignos” (Epist. 67, I I I, 2, p. 634)
3) Inclusive o recurso a Roma não deve mudar a situação, quando tal recurso não é feito com verdade e sinceridade:
“E não pode se anular a eleição verificada com todo direito, porque Basílides... tinha ido a Roma e enganado o nosso colega Estevão que, por estar tão longe, não está informado da verdade dos fatos, e tenha obtido dele ser restabelecido ilegitimamente em sua sede, da qual havia sido deposto com todo direito” (Epist. 67, V, 3, p. 635).
É evidente que este Sínodo indica uma mentalidade segundo a qual a Igreja consistia mais na comunidade que no clero. O qual não era atentar contra os direitos do clero, mas sim simplesmente reconhecer a função e os direitos da comunidade.
Antepor os interesses do clero aos do povo
Assim se pensava e se atuava na Igreja dos primeiros séculos. No momento presente, se pensa e se atua exatamente ao contrário: o que se impõe é o interesse e as conveniências do clero, inclusive quando isso exige abandonar no desamparo religioso e evangélico centenas de milhares de cristãos, que não podem conseguir o cumprimento de seus direitos porque vivemos em uma Igreja que antepõe os interesses do clero aos direitos dos últimos deste mundo.
E é de suma importância deixar muito claro que esta situação se resolverá quando forem tomadas duas decisões, que são cada dia mais urgentes: 1) a ordenação presbiteral de homens casados; 2) estabelecer na Igreja a igualdade de direitos de mulheres e homens.
A mulher na Igreja
Tal como evoluciona a sociedade e a cultura, essas duas decisões serão inevitáveis dentro de poucos anos. Gostemos ou não, o mundo vai nessa direção. Irá a Igreja, mais uma vez, se empenhar em impor ao mundo e à história aquilo que o mundo e a história já demonstraram que a Igreja não tem poder para fazer e tampouco está no mundo para fazê-lo?
A conclusão é clara, a mesma fidelidade à Igreja e ao Papa, que me motivou a escrever a reflexão anterior sobre a Amazônia, é a que me motiva agora para dizer o que escrevo aqui porque é o que vejo de mais coerente e esperançoso, não somente para a Igreja e o Papa, mas sim para a Amazônia.
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O mais perigoso para a Igreja é a ameaça de um cisma ou a pressão do clericalismo integrista? Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU