06 Janeiro 2020
Se em tempos de monarquias absolutas a Igreja Católica instituiu-se como uma monarquia deste tipo, em tempos de democracias a Igreja deveria acolher esse valor político. Por não tê-lo feito, nenhum dos últimos papas representou adequadamente a unidade da Igreja. Se esta é a principal de suas responsabilidades, a cumpriram de um modo vertical e uniformizando as diferenças culturais.
O artigo é de Jorge Costadoat, jesuíta, teólogo chileno, publicado por Religión Digital, 01-11-2010. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Segundo o teólogo, "Bento e Francisco compartilham do mesmo 'pecado'. A versão monárquica, estatal e romana da Igreja impede o desenvolvimento de uma Igreja verdadeiramente 'católica', isso é, universal. Enquanto não houver uma mudança estrutural de grandes proporções, o divórcio diagnosticado em várias igrejas locais entre a instituição eclesiástica e o comum de católicos não cessará".
O filme "Os dois Papas", de Fernando Meirelles vale a pena. As atuações são esplendidas. Os diálogos muito pertinentes, teologicamente lúcidos. Meirelles torna amáveis dois personagens muito controversos.
Porém, pelo mesmo, convém aclarar que se trata de uma ficção. Esses encontros papais não constam que se tenham ocorrido, ainda que ambos Papas representem bem dois modelos eclesiológicos nada fictícios. A tentativa do diretor é de muito mérito, pois ao simbolizar a diversidade, o conflito como características constitutivas da Igreja, faz explicável sua existência milenar.
Cena do filme "Dois Papas", de Fernando Meirelles. Foto: Reprodução Netflix
No entanto, se alguém observar com atenção a cena das “confissões” que os papas fazem um ao outro, nelas não aparecem os pecados de governo e os que aparecem como pecados não está claro que o tenham sido. Bento confessa a Jorge Bergoglio ter encoberto Marcial Maciel. Esse pecado é menos grave em seu caso que no de João Paulo II. Se sabe que, enquanto João Paulo II foi papa, Ratzinger teve o relatório de Maciel em seu escritório e não pode fazer nada. Era seu subalterno. Porém, logo que foi eleito Papa, Bento aplicou a sanção a Maciel. Bergoglio confessa uma tormenta, mais que um pecado. Por aqui e ali acusam-no de ter traído os padres Yorio e Jalics, torturados durante a ditadura argentina. Porém não é claro, e o filme mostra que os traiu.
Independentemente da culpabilidade que cabe atribuir a esses dois Papas nestes fatos, eles sim são culpados de outros pecados. Melhor dizendo, são responsáveis de um assunto maior: o modo como implementaram o Concílio Vaticano II. O caso é que nem um, nem outro, compreenderam que a aposta de abertura do Concílio implicou em uma democratização de sua institucionalidade.
Se em tempos de monarquias absolutas a Igreja Católica instituiu-se como uma monarquia deste tipo, em tempos de democracias a Igreja deveria acolher esse valor político. Por não tê-lo feito, nenhum dos últimos papas representou adequadamente a unidade da Igreja. Se esta é a principal de suas responsabilidades, a cumpriram de um modo vertical e uniformizando as diferenças culturais.
Esse é um “pecado” grave? Sim, porque o Vaticano II é um dos concílios mais importantes da Igreja em dois mil anos e, em todo caso, trata-se do acontecimento eclesial no qual a Igreja estabeleceu que se entende por fé em Jesus Cristo a essa altura da história.
O cardeal Ratzinger, Bento XVI, foi o intérprete mais importante do Concílio e seu defensor. O Papa alemão, no entanto, ainda que tenha participado ativamente na redação dos documentos conciliares, relativizou a importância do Vaticano II, desprezou a reforma litúrgica e se tornou no melhor representante das forças conservadoras adversas (ainda que não tenha firmado pacto com os lefebvristas). João Paulo II e Ratzinger enquadraram as nomeações episcopais exigindo uma adesão rígida à doutrina. Os que se ajustavam à ela podiam fazer carreira. Os candidatos mais livres ficaram no caminho. Os teólogos progressistas foram castigados.
Qual foi o assunto de fundo? O cardeal Ratzinger defendeu uma ideia estrita da tradição da Igreja, identificando-a em demasia com a versão europeia da mesma (grega, latina e germânica), e taxando de relativistas as interpretações mais criativas desta tradição. Esta postura, na prática, dificultou o ecumenismo e as tentativas de desenvolvimento de uma Igreja policêntrica. Algo como uma Igreja organizada em torno dos diversos polos culturais (Ásia, África, América Latina, Europa e Oceania, como foi a Igreja dos antigos patriarcados de Jerusalém, Roma, Antioquia, Alexandria e Constantinopla), pode ter lhe parecido como perigoso para a unidade da fé.
A Igreja latino-americana sofreu as consequências. A Igreja na América Latina nos anos 1960 experimentou uma renovação sem precedentes, alentada pelo Concílio e atenta a seus próprios sinais dos tempos. Sua interpretação latino-americana inculturada do Evangelho, para dizer a verdade, nunca foi aceita pelo cardeal Ratzinger.
Bergoglio, por outro lado, foi o melhor representante da “opção pelos pobres” da Igreja latino-americana. Ainda que de formação tradicional, Francisco, de fato, interpretou bem a Igreja de América Latina na tarefa de acolher criativamente o Vaticano II. Os teólogos da libertação, obnubilados com um Papa que declara querer “uma Igreja pobre para os pobres”, celebraram seus discursos e gestos.
Porém estes nem sempre repararam em que o modo de governo de Bergoglio é justamente o que impediu que surgisse no continente uma Igreja regional autenticamente latino-americana. Nós latino-americanos estamos felizes com um Papa que representa nossos desejos de justiça e que, por outro lado, impulsiona uma “igreja em saída”, uma igreja que dá comunhão aos divorciados que voltaram a casar e uma igreja em que nem o papa teme dizer que pode se equivocar.
Porém, nós chilenos sabemos muito bem, Francisco foi um Papa autoritário. Os leigos de Osorno nunca receberam dele um pedido de perdão pelo tratamento que lhes deu. Os bispos chilenos tampouco foram bem tratados. Bergoglio na Catedral pregou contra o clericalismo. Mas, depois, chamou-os a Roma como se fossem coroinhas, pediu que se demitissem e os mandou de volta ao Chile completamente desautorizados.
Em outras palavras, nosso líder da opção pelos pobres, ainda que nos doa reconhecer, também é clericalista. Isso é, também tem um modo romano absolutista de entender a institucionalidade eclesiástica; um modo que, em última instância, aniquila os processos de inculturação regional do Evangelho. Seu grande projeto evangélico, lamentavelmente, pode fracassar quando o próximo Papa assumir.
Em outras palavras, Bento e Francisco compartilham do mesmo “pecado”. A versão monárquica, estatal e romana da Igreja impede o desenvolvimento de uma Igreja verdadeiramente “católica”, isso é, universal. Enquanto não houver uma mudança estrutural de grandes proporções, o divórcio diagnosticado em várias igrejas locais entre a instituição eclesiástica e o comum de católicos não cessará.
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Bento e Francisco compartilham do mesmo pecado, que é a versão monárquica, estatal e romana da Igreja. Artigo de Jorge Costadoat - Instituto Humanitas Unisinos - IHU