29 Novembro 2019
“Dois Papas”, representação de um conclave singular entre o Papa Bento XVI (Anthony Hopkins) e aquele que viria a ser o pontífice Jorge Mario Bergoglio (Jonathan Pryce), é uma mostra da força de atuação, dos atores interagindo, dos atores que duelam e dançam – literalmente, pois, a certa altura, o personagem argentino de Pryce busca ensinar o personagem alemão de Hopkins a dançar tango.
O comentário é de John Anderson, crítico de televisão dos jornais The Wall Street Journal e The New York Times, publicado por America, 26-11-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Jonathan Pryce e Anthony Hopkins entregam performances fantásticas em ‘Dois Papas’. (Foto: Netflix/Divulgação)
Mas, além de um humor malicioso, de locações no Vaticano e de uma produção visualmente exuberante (inspirada em Michelangelo, entre outros), o filme aborda, ainda que de forma fugaz, as questões mais prementes com as quais a Igreja se depara – e não somente em relação aos crimes financeiros e abusos sexuais, mas também aos dogmas, aos rituais e à missão cristã. O filme não sabe exatamente como terminar, é verdade. Mas como um estudo de personalidade, é altamente intelectual, um drama habilmente dirigido que, no fim, sugere, com muita ênfase, que não apenas o desejo é destino, mas que o temperamento dita a teologia.
“A qualidade mais importante de qualquer líder”, diz o Cardeal Peter Turkson (Sidney Cole), durante o conclave de 2005 que abre o filme, “é não querer ser um líder”. O cardeal acrescenta, de maneira um tanto gratuita aos que o ouvem: “Platão”. O que ele diz sem dizer é “Bergoglio”.
Os “dois papas” não trata do conclave de 2005. Este evento, porém, é necessário para estabelecer o clima político e os personagens envolvidos. Com a morte do Papa João Paulo II, Joseph Ratzinger, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé e decano do Colégio Cardinalício, é o candidato principal à Cátedra de São Pedro. E ele muito deseja este posto – algo que o diretor Fernando Meirelles (“Cidade de Deus”, “O Jardineiro Fiel”) aborda, na maior parte, via gestos e enquadramento das reações.
Entre os demais concorrentes na votação está Bergoglio, que, para o seu próprio embaraço, recebe dez votos. Não chega a ser uma eleição apertada, mas todos reconhecem a significação cósmica de um jesuíta “do fim do mundo”, como o próprio Papa Francisco mais tarde descreveria, tendo um bloco apoiador tão sólido.
Passa-se para o ano 2012, quando Bento recebe um comunicado de Bergoglio, quem apresenta o seu pedido de renúncia do posto de arcebispo de Buenos Aires. Ele busca a permissão de Bento para deixar o cargo e se tornar, mais uma vez, “um simples pároco”, o que o papa não está inclinado a dar: o papa está pensando algo bem diferente, o que é parte da evolução brilhante de Bento como personagem.
Bento XVI é um tanto rígido, vive em uma bolha pontifícia e não sabe quem são os Beatles. Ouve-se um trecho de uma música do jazzista Thelonious Monk tocando na tevê, quando ele se levanta troca de canal para assistir ao seu programa favorito, sobre um cão detetive. As pequenas aberturas para dentro da vida interior de Bento são quase uma zombaria, especialmente quando comparadas com a humanidade, devoção à espiritualidade (e ao futebol) mostradas por seu visitante. Mas o intelecto de Bento é feroz e a sua autoconsciência não fica inteiramente ausente, como evidenciado na cena em que fala ao seu visitante a respeito do plano de abdicar do papado.
Bergoglio fica em choque e consternado. Não pode haver dois papas, diz.
“Houve três papas em 1978”, responde Bento.
“Não é a mesma coisa”, diz Bergoglio.
“É uma piada”.
“Não foi engraçada”.
“É uma piada alemã”, conclui o papa. “Não precisa ser engraçada”.
O próprio plano do arcebispo de renunciar tem a ver com as suas experiências durante a ditadura militar na Argentina, de 1976 a 1983. Como retratado no filme, Bergoglio fez da preservação da vida uma prioridade, e por isso sofreu recriminações e arrependimentos. Francamente, as cenas que retratam a Argentina são as partes menos envolventes do filme (as sequências envolvendo os dois diretores em uma discussão contenciosa em Roma são os destaques para o espectador). Essas cenas ajudam, porém, a entender, com mais profundidade, por que Bergoglio não acha que Roma está tomando um rumo satisfatório; e ajudam a apreciar a sua oposição ao lado mais rigidamente dogmático da Igreja – algo que Bento personifica. Ou, pelo menos, assim pensa Bergoglio.
Tanto Pryce como Hopkins entregam performances fantásticas, e a apresentação complexa, multifacetada que fazem os seus personagens é aprimorada pelo script (adaptado de uma peça teatral) matizado de Anthony McCarten e pelo apreço do diretor Meirelles pelo quanto a linguagem corporal, as reações faciais e mesmo as roupas dos seus dois personagens principais revelam estas personalidades divergentes.
Pryce é a estrela ostensiva do filme, claro, e o que viria a ser Francisco é o seu herói. Há, no entanto, uma razão que explica o porquê Anthony Hopkins é Anthony Hopkins. Ele transforma o menos carismático Bento em uma figura heroica a meu modo, alguém merecedor não apenas de admiração, mas também de simpatia. “Essa sua popularidade”, pergunta Bergoglio, “existe um truque para ela?” Basta para se emocionar.
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‘Dois Papas’ é uma mostra de força que leva a sério a Igreja Católica - Instituto Humanitas Unisinos - IHU