13 Novembro 2019
"A Funai está morrendo e, infelizmente, suas chances de sobreviver são a cada dia menores. É preciso resgatar, já, essa instituição que é um patrimônio do estado brasileiro, e dar condições de trabalho aos seus servidores e suas servidoras que, apesar dos pesares, estão lá, na labuta, todos os dias, aprendendo tanto quanto eu aprendi por lá", escreve Leonardo Barros Soares, professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará.
Nosso tempo histórico está correndo com uma velocidade incrível, e é alucinante tentar acompanhar a sucessão dos acontecimentos políticos do Brasil contemporâneo. É tempo de fezes, para relembrar um clássico poema drummondiano, mas eu gostaria de parar um pouco a correria do cotidiano para deixar registrado aqui a minha gratidão pelo breve, porém intenso, período em que atuei como indigenista especializado da Fundação Nacional do Índio, antes de assumir o cargo de professor do Programa de Pós-Graduação em Ciência Política da Universidade Federal do Pará. Não vou declinar o período nem o lugar em que trabalhei – tudo isso está na internet. Tampouco vou falar das coisas ruins da instituição, pois estas são sobejamente conhecidas. Vou me concentrar no que considero essencial: as coisas que eu aprendi por lá.
O primeiro destes aprendizados, ao adentrar as portas da Coordenação Regional em que atuei, foi a importância da humildade. Em meu primeiro dia de trabalho, um rapaz entrou em nossa sala abatido, cabisbaixo. Tinham acabado de encontrar, sem vida, seu filho que tinha se perdido na floresta. Dias depois escutei de um dos membros do grupo toda a explicação, à luz da cosmogonia de seu povo, para o ocorrido. Ali mesmo quedei chocado com a complexidade do relato, com a intrincada tapeçaria narrativa que alinhavava forças da natureza e espíritos ancestrais. Me dei conta, então, de que estava ouvindo apenas uma história, de um evento trágico, em apenas uma aldeia das milhares que existem no país. Em outras palavras, eu presenciava in loco a existência de outras subjetividades, delineadas a partir de outras referências e símbolos. Simplesmente não há como expressar a riqueza de momentos como esse. O que eu posso dizer, no entanto, é que o efeito imediato de uma tal vivência é a de percebermos nossa posição relativa no mundo ao nos darmos conta de outras virtualidades, construídas a partir de perspectivas radicalmente distintas das do homem-branco-hétero-cristão-ocidental. Parafraseando um velho ditado, há mais coisas a conhecer nas terras indígenas do que supõe nossa vã filosofia.
Em segundo lugar, aprendi a reconhecer e a lidar com os desafios da ambiguidade. Nunca é demais lembrar que a Funai é um órgão do estado brasileiro concebido, em última análise, para “atrair” e “integrar” os povos indígenas à sociedade nacional. Ademais, o histórico da instituição é sinistro, como bem descreve o livro de Rubens Valente, Os fuzis e as flechas: história de sangue e resistência indígena na ditadura. Assim, portanto, é forçoso ser capaz de identificar e enfrentar uma série de comportamentos de povos indígenas e servidores que foram sendo construídos ao longo de décadas. A trama cotidiana que borrar as fronteiras entre o assistencialismo e a assistência social, entre a tutela e a autonomia é opaca e, por vezes, difícil de desfazer. Reconhecer o estatuto fundamentalmente ambíguo da Funai no dia a dia da política indigenista brasileira deve ser o motor de reflexão para uma prática político-administrativa mais crítica, capaz de proteger e promover os direitos constitucionais dos povos indígenas.
Outro dos grandes aprendizados, fruto desse período, foi o reconhecimento da importância de nos relacionarmos com os povos indígenas como nações, ainda que “domesticamente dependentes”, para utilizarmos um termo que descreve o estatuto jurídico dos povos indígenas norte-americanos. Antropólogos que se debruçaram sobre a instituição indigenista brasileira foram felizes ao denominar a Funai como uma espécie de “Itamaraty para dentro do Brasil”. Minha experiência como indigenista me diz que a comparação não é desprovida de sentido. Adentrar numa terra indígena é sempre uma experiência única, e mesmo povos vivendo territorialmente próximos uns dos outros podem ter culturas e línguas significativamente distintas. Há sempre um protocolo a ser seguido para ser bem recebido e poder desenvolver seu trabalho. Há sempre regras implícitas e explícitas a serem observadas, hierarquias a serem respeitadas e negociações a serem realizadas.
Digo mais ainda – a Funai deveria ter sua própria escola de formação de indigenistas especializados, aos moldes do Instituto Rio Branco, e seus funcionários deveriam ser regiamente pagos, tais como nossos diplomatas de carreira. Falo em um curso preparatório para tal fim por quê penso que não há curso de graduação algum, mesmo o de antropologia, que prepare os indivíduos corretamente para servirem como indigenistas especializados. Estes servidores devem saber um pouco de tudo: administração, direito público, economia, agronomia, biologia, política de saúde, de educação, orçamento público, informática, além de manejar o facão ou a motosserra, acampar, pescar, dirigir veículos e barcos, para ficarmos em apenas alguns dos conhecimentos úteis nos desenrolar das atividades propostas. Falo, também, em melhores condições salariais e de trabalho, por quê, vamos ser sinceros, os funcionários da Funai correm riscos reais em seu cotidiano laboral, e qualquer pessoa pensa duas vezes antes de assumir um cargo tão exposto a pressões de indivíduos e grupos poderosos e tão modestamente remunerado.
Por fim, aprendi a admirar, ainda mais, a resistência dos nossos povos indígenas e dos indigenistas comprometidos com a causa indígena. Lidar com povos indígenas no cotidiano é estar diante de grupos que foram massacrados, vilipendiados, desmoralizados e brutalizados ao longo dos séculos e que, mesmo assim, não apenas sobreviveram, mas adentraram o século XXI mais organizados e combativos. Além do mais, em meu contato com os povos indígenas, impressionou-me a capacidade destes grupos de lançarem mão de inovações tecnológicas sem perder suas tradições e costumes. Em resumo, eles aperfeiçoaram ao ponto mais alto suas estratégias de resistência neste nosso mundo à beira do colapso.
Nesse exato momento em que estou escrevendo esse texto, centenas de indigenistas estão espalhados pelos rincões mais inacessíveis do país, lidando com as mais desafiadoras e diversas situações possíveis. Estão sozinhos e sozinhas contra madeireiros, garimpeiros, mineradoras e toda sorte de agentes públicos e privados que almejam auferir vantagens juntos aos povos indígenas. Um deles, por quem nutro especial apreço e admiração, deve estar no meio de uma mata fechada, à procura de um senhor indígena que se perdeu na floresta. Para ele, que é tratado como um membro da família pelo povo indígena da região, procurar por seu “avô” extrapola seu dever profissional e se transforma numa missão vital. Esse sujeito, que aprende com os povos indígenas há mais de trinta anos, não vai escrever nenhum texto que irá viralizar na internet, mas com certeza é um braço vital do estado brasileiro que teria muito a ensinar a todos nós se apenas tivesse mais voz.
A Funai não merece o ódio de Jair Bolsonaro, nem o desprezo de Sérgio Moro. Tampouco merece o presidente que tem. Como apontei em outro texto, a Funai está morrendo e, infelizmente, suas chances de sobreviver são a cada dia menores.
É preciso resgatar, já, essa instituição que é um patrimônio do estado brasileiro, e dar condições de trabalho aos seus servidores e suas servidoras que, apesar dos pesares, estão lá, na labuta, todos os dias, aprendendo tanto quanto eu aprendi por lá.
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O que eu aprendi na Funai - Instituto Humanitas Unisinos - IHU