24 Outubro 2019
A crônica teimosa do presidente Sebastián Piñera, sua escassa perícia política e o divórcio absoluto do conglomerado de partidos que o apoia – porém também a grande parte da oposição – respeito a dar solução às reivindicações sociais, tem hoje sumido em crises ao sistema política do país austral.
A pior crise desde o início do processo democrático depois da derrota da ditadura militar e que se acrescenta com um governo soberbo, inepto e incompetente como o de Piñera, que mostra condutas próprias de pessoas com deficiência visual e auditiva, mas não mudez. E quando essa falta de silêncio vocal se propaga com sua incontinência verbal, exibida e criticada por seu próprio setor, lhe resta jogar contra ao sustentar que está em guerra contra milhões de chilenos que estão na rua.
Somado ao coro de ministros, porta-vozes e parlamentares, que tratam infrutuosamente de defender uma obra inexistente, uma empreitada que jamais se concretizou, somente parafernália.
O artigo é de Pablo Jofré Leal, chileno, jornalista e analista internacional, publicado por HispanTV, 22-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Estas semanas foram a mostra absoluta do divórcio e esgotamento de uma forma de fazer política sob uma prática instalada por todos os partidos, que foram parte dos diversos governos do duopólio instalado no país desde 1990. Um duopólio que acreditou que o país era uma empresa e bastava o exercício do diretório para que as medidas que se tomavam fossem levadas a cabo por uma população servil, uma sociedade de ovelhas que se agachava no barro de forma indigna. Uma sociedade que suportava burla atrás de burla de ministros que creem que os cidadãos são empregados de algumas de suas empresas. Uma sociedade, que da mão da clássica e sã rebeldia e coragem da juventude lhe disse “não mais” ao governo quando quis aumentar as tarifas do metrô de Santiago (o trem subterrâneo com uma das tarifas mais caras do mundo) que é utilizado por cerca de três milhões de chilenos diariamente.
Uma resposta lógica quando o ministro da Economia Juan Andrés Fontaine anunciou esse aumento: “quem madrugar será ajudado, de maneira que alguém que sai mais cedo e toma o metrô às 7h da manhã tem a possibilidade de uma tarifa mais baixa que a de hoje”. Não contente com isso, o ministro da Fazenda Felipe Larraín defendeu, frente as críticas do aumento dos preços de bens e serviços básicos “Para os românticos (...) as flores tiveram seus preços reduzidos: assim os que querem presentear com flores neste mês, as flores caíram 3,6%”.
Essa juventude, principalmente estudantes secundários começaram a evitar pagar esse meio de transporte gerando uma onda de imitações ao longo de todas as linhas do metrô, pondo a polícia militarizada à rua, com declarações do governo tratando como delinquente essa juventude e definindo, finalmente, na quinta-feira 17 de outubro o fechamento das estações do metrô, deixando dezenas de milhares de pessoas sem forma de chegar a suas casas, que começou a exteriorizar o que estava latente: raiva, indignação, impotência que explodiu em milhões de gritos.
Foi o começo de uma jornada que leva já cinco dias de manifestações, de irritação, de indignação que se acrescentou com o novo desatino do governo de decretar primeiro: Lei de Segurança Interior do Estado, na sexta-feira, 18, o Estado de Exceção, e no sábado, 19, decreta Toque de Recolher, como não se havia ocorrido desde a ditadura militar. Isso é, 30 anos na qual o país viveu sem ter presente essa medida extrema e logicamente com uma juventude nascida posteriormente a ela, que increpa os uniformizados porque se trata de uma juventude nascida na democracia, com todas suas imperfeições e que exige seu direito a se manifestar a denunciar o que considera abusos por parte da autoridade e que os toca diretamente como é o tema da educação. Uma juventude que visualiza em suas próprias casas os efeitos de um “milagre econômico” chileno que somente bem-estar a uma parte pequena da população. Jovens que percebem um futuro cinza. Segundo o último informe chamado Panorama Social da América Latina, elaborado pela Comissão Econômica para América Latina e Caribe (CEPAL), o 1% com mais renda no país possui 26,5% enquanto que 50% dos lares de menores rendas acessa somente 2,1% da riqueza líquida do país.
O governo do presidente Sebastián Piñera Echeñique fez-se de surdo ao clamor cidadão, que vai mais além de terminar com o aumento do transporte, mas sim que se adentra em reivindicações destinadas a mudar a estrutura do modelo: reforma tributária que deixa de favorecer os mais ricos do país, trabalhar por um sistema de pensões que não deixa a capitalização individual à aposentadoria dos chilenos e chilenas. Uma educação onde a equidade seja o fundamento e não aquela onde siga privilegiando um setor mínimo da população. Um setor de saúde onde não exista um serviço para ricos e um para pobres onde somente o ano de 2018 morreram 26.700 chilenos e chilenas por não poderem ser atendidos. Milhões que não tem acesso a especialistas, a farmácias, a um tratamento completo que melhores suas expectativas de vida.
As manifestações que estão se dando, unida a ações de saques e delinquência em múltiplas cidades do país austral, é a mostra do descaso de um modelo político-econômico que já não dá margem, que se esgotou, que não tem bases, não há sustentação ideológica, moral nem política para seguir mantendo em pé esse arquétipo denominado neoliberal. Realidade reconhecida inclusive por pessoas da própria direita como do ex-prefeito de Puente Alto e ex-candidato presidencial Manuel José Ossandón, que chama a criar uma “direita social” e inclusive formar um governo de consenso. “Meu setor está tomando isso como um tema somente delinquência, um tema de violência, é de violência e há delinquência, porém isso tem causas, e se não queremos reconhecer as causas isso não será arrumado. Há demandas sociais que precisam ser atendidas”. Bem sabe essa direita mais “liberal” que é possível que perca o enorme montante que significa o Estado.
Piñera não quer reconhecer as causas, o multimilionário empresário eleito presidente pela segunda vez no Chile, defendeu, no domingo, 20, em uma entrevista na Guarnición Militar de Santiago, capital do Chile que “estamos em guerra contra um inimigo poderoso, implacável, que não respeita nada e nem ninguém, e que está disposto a usar a violência e a delinquência sem nenhum limite” a pergunta que surge é: Quem é esse inimigo poderoso e implacável que não respeita nada e nem ninguém, do qual fala Piñera? Será por acaso o próximo passo acusar publicamente a Venezuela e seu presidente Nicolás Maduro? Ou talvez Cuba, Evo Morales? Ainda que pareça risível, tais teorias saíram dos anfitriões mais radicais da direita nas reuniões feitas por esse conglomerada para tratar de contra-atacar as mobilizações que colocaram o governo nas cordas. O único resultado da mensagem de Piñera foi assimilar suas palavras às pronunciadas pelo falecido ditador Augusto Pinochet.
O que foi destacado mostra a rotunda discrepância, a escassa noção de realidade que tem o governo frente ao que acontece no país. O segundo mandato da direita e a ultradireita no Chile mostrou que as frases soltas, sem fundo social, distantes daquelas preocupações e necessidades da população são sua resposta frente às demandas cidadãs. E se manteve assim durante 29 anos de democracia formal até que a sociedade diga “basta!”. E explora indignada e sai às ruas para exigir seus direitos e exibir a vergonha própria escondida por trás do véu do consumo, da letargia política endossada por uma casta política, em comunhão com empresários, grupos econômicos e meios de informação, que gozaram de todas as benesses que o Chile pode proporcionar.
Uma casta política que nesses protestos foi deixada à beira do caminho, impossibilitada de assumir um papel de liderança porque a população, majoritariamente não confia nela. Não deposita sua confiança em parlamentares, empresários, grupos econômicos, ministros, instituições do Estado como aquelas, que até pouco tempo representavam o escalão mais alto no apreço cidadão e a confiança neles, especificamente Carabineros do Chile. Corpo militarizado, que à luz de uma enorme corrupção interna, sobretudo de seus altos mandos minou essa confiança até convertê-la em um remedo de proteção cidadã.
A população não os perdoa pelo roubo, os milhões de pesos cortados do Estado para enriquecer a alta oficialidade enquanto o corpo de suboficiais e categorias inferiores devem sair à rua e receber o desprezo dos cidadãos. Essa instituição requer mudanças estruturais. Mesma impressão que se tem respeito ao Exército do Chile, involucrado em bilionários escândalos de corrupção vinculados a faturas duplicadas, roubos de recursos por parte de alguns Comandantes Chefe e pago de comissões fraudulentas na compra do material militar. É esse Exército que põe os seus membros à rua para apoiar o trabalho de vigilância da polícia.
O país vive situações que enfraquecem a convivência social, que afetam a vida diária, que implicam na morte de pessoas, seja nas mãos de agentes do Estado, que saíram controlar essas mobilizações como também mortes devido a ações de saques que terminaram com incêndios dos estabelecimentos sujeitos a esses atos delituosos. Segundo as autoridades, foram contabilizados 15 mortos até a segunda-feira, 21-10, - quatro atribuídas à ação de patrulhas militares. A destruição de danos e de dezenas de estações do metrô de Santiago, seis trens, quantificado em uma cifra superior aos 200 milhões de dólares. Destruição de mobiliário público, semáforos, praças, paradas de ônibus, ruas, luminárias.
O governo responde com forte repressão às demandas da população, a que se manifesta de maneira mais pacífica de acordo com suas reivindicações, mas age de maneira ainda benevolente com aqueles que saquearam lojas, grandes, pequenas, redes de supermercados, lojas de roupas, eletrodomésticos nas principais cidades do país. É uma dicotomia perigosa, porque a manifestação é reprimida por melhores condições de vida e faz vista grossa, por vários dias, para a repressão dos elementos que claramente causam danos. A questão que se coloca diante disso. Por que você pretende exacerbar o clima de perigo, confrontar chilenos contra chilenos? Isso porque testemunhamos que parte da população armada com paus e objetos defende o que chamam de seus bens e até mesmo aqueles que, não sendo deles, consideram que fazem parte de seus direitos como cidadãos: acesso à compra sem impedimentos e até limites o trânsito pelo ambiente em que vivem.
Dá a impressão de que a direita mais bélica do governo de Sebastián Piñera quer entrar em uma dinâmica de guerra, criar um inimigo interno e até atribuir responsabilidade nos atos de violência que foram atribuídos à influência do governo venezuelano ou “poderosos inimigos”, repetidos até que a direita chilena não se sinta cansada disso, sugere que certas mentes termocéfalas, dentro do grupo governante, querem dar um golpe brando. Ideia nada louca se seguirem as manifestações, saques e incertezas. Piñera fala sobre um novo pacto social, mas com quem? Com os mesmos que nos levaram a esse sistema desigual? Não há possibilidade de mudança no país, se alguém continuar pensando que essa mudança é um gatopardismo frustrante e traiçoeiro, o lampedusiano “o mudar tudo para que nada mude”.
É por isso que as mobilizações que abalam o Chile passaram do estágio lógico de reivindicação de não ter mais aumentos nos serviços de transporte para um político e concreto: Fora Piñera! Gerando com isso um efeito político de envergadura, que não se encerrará com o fato de Piñera colocar algum ministrou ou funcionário no altar do sacrifício. Ou que chame para um consenso social com aqueles que geram desconfiança na sociedade. Piñera ficou no antigo regime de acreditar que tudo será resolvido entre o presidente do Senado, a Câmara dos Deputados, o presidente do Supremo Tribunal Federal e a figura presidencial. Isso faz parte da antiga política, que morreu nos fogos dos múltiplos incêndios acesos no Chile.
As palavras de Piñera ao país na noite de segunda-feira, 21 de outubro, mostraram que as esperanças de mudança serão fúteis. Mais uma vez, ele concentrou suas palavras na questão da violência. Acusar organizações desconhecidas de serem responsáveis pela violência com meios e recursos gigantescos. A referência de Piñera à dor causada pela violência no Chile é meramente econômica. Não há ideias para o futuro, como aumentar nossas expectativas, como ser mais competitivo como país em correlação com uma mudança socioeconômica que nos permite pensar em remuneração justa, acesso a serviços que são direitos básicos, pensar em nossa aposentadoria como que sua palavra indica “alegria”. Sonhar com um país mais justo e competitivo, com alta produtividade, mas uma população principalmente satisfeita com seu padrão de vida. Nada disso está nas palavras de Piñera.
Nada disso há nas próximas conversas entre a casta política. Quer avançar rumo a um acordo social para encontrar melhores soluções para o temor, em base a 29 anos de experiências políticas traumáticas, é que tudo fica em meras promessas e a tríade entre políticos, grupos econômicos e apoio ideológico comunicacional faça estéril todo esforço de melhora. Isso, até voltar a sair à rua, porém sem freio algum. As palavras finais de Piñera em seu discurso ao país recordaram um referente que não pode ser simulado, assinando a incompetência e a inaptidão de um governo que deve se encomendar à divindade. Piñera se despediu do país afirmando “Deus abençoe o Chile”, rogação que Piñera e seu governo terão que repetir como um mantra, frente aos próximos eventos internacionais a se celebrar no país: a XXV Conferência sobre Mudança Climática da ONU (COP25) ao final de novembro, e a Cúpula da APEC cuja Cúpula de Líderes se realizará nos dias 16 e 17 de novembro.
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Protestos no Chile: um governo cego, surdo, inepto e incompetente - Instituto Humanitas Unisinos - IHU