23 Outubro 2019
Com as ruas tomadas e as universidades fechadas, as centrais trabalhadoras declararam greve geral de 48 horas para somar força ao protesto, que desafia a repressão.
A reportagem é de Marta Dillon, publicada por Página/12, 23-10-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
A cordilheira é tingida ao pôr do sol como se estivesse corando quando os relógios começam a se aproximar do toque de recolher. Parece inclinada de vergonha sobre La Alameda, parece que buscará o abraço dos milhares de manifestantes que ocupam a avenida principal de Santiago de Chile, radiantes de orgulho por resistir na rua frente aos carros patrulheiros, as forças policiais e militares que exibem as armas largas, as máscaras e capacetes que escondem suas caras e os gases lacrimogêneos para amedrontar aqueles que não se amedrontam porque se organizam. Todo o dia houve assembleias nas universidades, na porta dos ministérios, na rua, nos centros de estudantes, nos sindicatos. Se discute ao mesmo tempo que se toma a rua, se organizam cuidados coletivos ao mesmo tempo que se desafia o medo. Se declara uma greve geral de 48 horas ao mesmo tempo que a greve se desenvolve de muitas maneiras, ao mesmo tempo, sempre na rua.
As escolas públicas fechadas, as privadas livradas do seu arbítrio. As universidades fechadas por decisão de suas autoridades, para evitar que se convertam em ratoeiras agora que o “Estado de Emergência” permite que as Forças Armadas entrem nos seus recintos para reprimir ou prender, docentes, funcionários e estudantes. As ruas tomadas desde o meio-dia, já há cinco dias.
Em Concepción, uma das cidades mais atingidas pela repressão, ontem à tarde agitou uma festa eletrônica contra o toque de recolher. Nos bairros populares do sul de Santiago se dançou a cueca. Em todos os lados soaram panelas e as bicicletas levantaram o transporte público.
Ainda que alguns grêmios já realizaram jornadas de paro – os portuários de Valparaíso, por exemplo – a Central Única de Trabalhadores e Trabalhadoras (CUT) junto à articulação Unidad Social na qual participam outras organizações sociais declarou uma greve de 48 horas que começa hoje e que prepara uma mobilização massiva desde a Praça Itália até a estação Los Héroes a partir das 10:30 da manhã. A revolta agita o Chile que não pode terminar de contar seus mortos e mortas. O Ministério Público Nacional entregou a identificação de 7 dos 15 que reconhece, 8 corpos mais foram encontrados incinerados em uma fábrica e um supermercado. Na região metropolitana, ademais, há três denúncias formais de abuso sexual por parte dos policiais a pessoas detidas. Forçar as pessoas a se desnudarem parece ser uma prática recorrente das forças repressivas.
Não somente Santiago está ensanguentada, mas, no entanto, a rua não fica abandonada. O medo mudou de lado, dizem as paredes e isso é uma vibração que sacode mais que os terremotos e uma demanda mais clara que a água do degelo que baixa dos altos cumes: baixem as armas.
Camilo Piñeros, estudante de medicina de sexto ano, é parte da auto-organização de profissionais e estudantes da saúde para atender pessoas feridas, que sabem que vão chegar porque já contaram centenas desde sexta passada. “Nos dividimos em macro regiões: oriente, oeste, norte e sul, localizamos lugares de recolhimento de materiais de primeiros socorros e estamos 'conectades' – com “e”, sim, porque aqui é regra entre estudantes – por whatsapp”. Agora que se aproxima da hora em que as armas tem permissão governamental para disparar esperam com calma porque sabem como responder em caso de emergência.
Na Praça Itália, centro nevrálgico de Santiago, há jovens e velhas, trabalhadoras formais e trabalhadores informais, dirigentes sindicais, donas de casa, professores de todos os níveis, estudantes, artistas, pais, filhos. Uma incontável quantidade de pañuelos verdes feministas e outro tanto dos amarelos, os que dizem “No + AFP” – denunciando o roubo que é a previdência privada. Há, sobretudo, uma rebeldia que não se acalma nem com as balas, nem as mortes que choram coletivamente, nem com os gases que nunca deixam de coçar na garganta. A decisão é certeira e foi tomada nas assembleias e na própria rua sem nenhuma abordagem orgânica: isso não vai parar até que os milicos e “os pacos” (carabineiros) não saiam da rua. Está pintado em cada parede desta imensa cidade e anda de boca em boca. Com as armas na rua não há nada que falar com as instituições e muito que mobilizar para sacudi-las.
“Vim com minha filha de 9 anos porque ela estava assustada. Assustada com os milicos, assustada com os gases, com as gangues. São cinco dias de mobilização e a trouxe para que não tenha medo. Porque o povo que luta não teme, e aí está, contente com seu apito”, disse Camila que é enfermeira e ontem participou da assembleia frente ao ministério da Saúde que seguiu com a mobilização de profissionais e estudantes do setor para Plaza Italia. Ao seu lado, quatro estudantes do último ano de obstetrícia com os aventais brancos que usam em suas práticas, nenhuma tem mais de 24; todas estão endividadas, calculam, até 2040. Porém agora querem falar de outra coisa, querem falar do colapso do sistema de saúde. “80% da população usa a saúde pública, porém o investimento não é suficiente para cobrir nem 30%. Os hospitais não podem colapsar agora com os ferides porque os hospitais estão colapsados já faz tempo. Temos que hospitalizar em salões, não há especialistas; onde deveria haver 20 profissionais, há 10... isso é violência estrutural, não se trata dos famosos 30 pesos, se trata de 45 anos de políticas econômicas neoliberais que levam nosso dinheiro ao setor privado para depois fugi-lo”. Essa é a descrição de Iara, Camila, Paula e Evelyn do funcionamento das Administradoras de Fundos de Pensão, um lento roubo de toda a população “para depois cobrar uma aposentadoria ínfima”, insiste Iara.
Faltam 17 minutos para o toque de recolher e desde os bairros altos, esses que aqui se chamam “pijos” porque é onde as casas são amplas e os automóveis também – como as dívidas –, centenas de bicicletas descem pela avenida Providencia. “Evade”, dizem os cartazes que levam colados nos guidões. É uma palavra-chave que também se pinta sobre as paredes e nos vidros das paradas dos coletivos – “las micros” – sobre La Alameda. Foi o que começaram a fazer há mais de uma semana os estudantes das escolas secundárias, evadir (pular a catraca) contra o aumento do metrô. Uma ação direta, que explodiu esse “Chile despertou!”, que não para de tomar cor.
Evadir é o primeiro ato de liberdade imaginado para quem entra nesse “curral de vacas” para a expropriação de seu tempo e seus saberes por mais da metade da vida – o que significa estudar neste país. Você precisa ter muito dinheiro para fazer em uma carreira técnica, terciária ou profissional, sem contratar um crédito com garantia do estado que pague os estudos e que será devolvido quando os primeiros salários começarem a ser recebidos. “Sou professora de Educação Física, recebi em 2014, tive que pedir 6 milhões de pesos para estudar, acabarei pagando 20 milhões, no passo que ando, será em 2036”. Porque, embora Álvaro Barrientos queira adiantar parcelas de seu CAE, ele mal consegue sustentar a vida cotidiana sem incorrer em outras dívidas. Ele está sentado em uma praça na comuna de Providencia, embora a militarização da cidade que já dura cinco noites esteja se aproximando, há um microfone aberto e uma banda tocando, centenas de pessoas na grama, crianças brincando com as panelas dos protestos e um sentimento que não se assemelha à fúria, mas outra palavra que também vem do cartaz do graffiti: dignidade.
Vonni Basulado, jovem estudante de pedagogia em matemática, sentada na mesma praça que se ocupou porque “es vecines” também se organizaram por whatsapp depois de se encontrar na rua para recuperá-la, destaca. “É contra a precariedade da vida e a favor da dignidade. Isso não se termina. Que roubem os milicos e depois igual vai estar difícil, porque o povo cada vez está mais informado, sem que há problemas estruturais: a educação, a saúde, as AFP e já não queremos mais remendos”.
Javiera Manzi é porta-voz da Coordinadora Feminista 8M, parte da organização da greve transnacional que modificou os 8 de marços no país desde 2017. Ontem, foi protagonista de duas assembleias, a primeira, de coordenadora. A segunda, na Federação de Estudantes do Chile, convocou mais de 60 organizações sociais, sindicatos, mapuches, feministas e de territórios. Ali, como em cada assembleia das quais vem sendo organizadas por setores ou por territórios, se puseram em comum as avaliações do atuado e da imaginação do que está por vir. “A violência se expressa de maneira diferenciada sobre nossos corpos de mulheres e dissidências, nossa luta é anticapitalista e antipatriarcal e queremos que nossas demandas estejam em primeira linha. Nós fizemos a primeira greve feminista neste ano e foi a mobilização mais massiva desde a ditadura. Nos juntarmos com outras organizações é uma necessidade agora porque não é o momento de se fechar, mas sim de se abrir. As assembleias são instituidoras de uma autoridade que fundamos juntes e por esse caminho é que queremos seguir transitando”, disse agitada entre o final de uma atividade, com o som de das panelas de fundo e outra assembleia em seu bairro que também a espera.
O que segue depois dessas mobilizações, desta insurreição que não parece poder ser acalmada com medida ou com “remendos”, como dizem os estudantes sobre o resultado das mobilizações de 2011 pela reforma educativa? “Necessitamos uma Assembleia Constituinte porque a Constituição atual é uma armadilha neoliberal, uma trama jurídica que obstaculiza as reformas que necessitamos no Chile”, disse Benjamín Núñez, estudante de Direito, apenas terminada a assembleia tripartite da Universidade do Chile, onde participaram funcionários/as, estudantes, não docentes, trabalhadores e trabalhadores a honorários – um equivalente a microempreendedor individual ou terceirizados – que na UdeCH são mais de 10 mil. “Porém não pode ser uma assembleia com representantes de partidos políticos, tem que ser uma grande discussão política aberta, um gabinete aberto para que todos e todas possamos desenhar o território que queremos”.
O movimento na rua é autoconvocado, porém não está acéfalo, faz soar as panelas, porém não lhe faltam palavras; é urgente, mas tem o tempo que precisa para parar a vida cotidiana e colocar ali o berço da desobediência. Os prazos que a rua pôs estão expressados nas paredes e com essa poesia própria da revolta diz: “Até que valha a pena viver”.
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Chile. O orgulho de resistir tomou as ruas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU