19 Outubro 2019
Costa-Gavras retorna à trincheira que é o seu cinema, desta vez para documentar o naufrágio da Grécia por causa de sua crise da dívida soberana, a partir de 2009. O filme é baseado nas memórias do carismático ex-ministro Yanis Varoufakis sobre sua luta com o establishment europeu, e especificamente com o Eurogrupo (ministros das finanças do euro) e a Troika (Comissão Europeia, Banco Central e Fundo Monetário Internacional, FMI), em 2015.
Assim como o livro, o filme tem como título Adults in the room, em referência à frase que a então diretora do FMI, Christine Lagarde, utilizou em uma das reuniões do Eurogrupo e Troika: as conversas com a Grécia demandavam - disse – “adultos na sala”. A produção do sempre combativo Costa-Gavras foi apresentada em Veneza, onde o cineasta conversou com meia dúzia de meios de comunicação, incluindo La Vanguardia.
A entrevista é de Fernando García, publicada por La Vanguardia, 18-10-2019. A tradução é do Cepat.
Em suas últimas declarações, demonstrou-se incomodado com a esquerda europeia. Por quê?
Provavelmente, isso que chamamos de esquerda europeia não foi coerente nos últimos tempos. Alguns dirigentes se aproximaram com grande facilidade da direita e, inclusive, da extrema direita. Parece que não há mais fronteiras claras. A verdade é que em muitos países europeus essa esquerda não esteve à altura das expectativas durante a crise. É o caso da Grécia e da França de François Hollande. De qualquer modo, nós, cidadãos, associamos a esquerda às pessoas, quando, na realidade, é uma filosofia.
Mas, o que aconteceu na Grécia, o pecado original, corresponde a diferentes partidos e aos bancos ...
Antes da crise, a Grécia era governada por partidos dos dois lados que permitiram que a dívida aumentasse sem parar. A primeira vez que ouvi falar a esse respeito faltavam dois anos para que a crise explodisse. Foi em 2007, quando o embaixador da Grécia em Paris me disse que nosso país estava indo para uma catástrofe. Sabia-se, mas ninguém queria ouvir! A dívida aumentava de maneira alarmante e nada se fazia. A Europa tinha uma responsabilidade. França e Alemanha vendiam armas, submarinos e helicópteros para a Grécia sem perguntar pela dívida. “Já vocês pagam”, diziam. Em certas ocasiões, subornaram ministros que acabaram na prisão.
Considera que as regras da União Europeia impossibilitam a prática de políticas de esquerda, conforme seria possível deduzir de seu filme?
A Europa foi construída apenas com base na economia e no mercado. Não existem políticas comuns em Cultura, Educação e problemas sociais, exceto em uma parte mínima para se justificar. Nos últimos 15 anos, isso piorou com as políticas de Mariano Barroso e Jean-Claude Juncker, que foram presidentes muito, muito ruins da Comissão Europeia.
Até que ponto os diálogos das reuniões tensas relatadas são reais?
O conteúdo das reuniões é completamente autêntico. Varoufakis reuniu o material, desde o início da crise, com base em anotações que digitava rapidamente, durante as reuniões, porque não havia atas.
Ou seja, o que acontecia e acontece lá dentro é um grande segredo.
Sim. E isso porque o Eurogrupo é uma espécie de governo econômico da Europa. Pois, conforme diz no filme o ministro alemão, Wolfgang Schäuble, em determinado momento, o que eles decidissem seria aceito por toda a União Europeia. E o Eurogrupo é um órgão sem existência legal (é uma reunião informal).
Acredita que a União Europeia é muito firme na economia e frouxa em outras coisas?
O problema, conforme digo, é que se tornou um supermercado. A Europa deveria ser muito mais o que Macron disse em seu famoso discurso na Sorbonne, em setembro de 2017 (uma Europa mais politicamente integrada), que é o que os primeiros presidentes também propuseram. Mas, nos últimos 15 anos, assumiu essa tendência de supermercado. Barroso diz o que se quer ouvir, mas depois faz o contrário. E Juncker transformou seu país em um paraíso fiscal para o qual foram transferidas 340 grandes empresas para não pagar nada à Europa e muito pouco a Luxemburgo. Como respeitar uma Europa com um presidente assim? Penso que a nova presidente, que é mulher e alemã (Ursula von der Leyen), representa uma esperança. Conforme Macron e outros defendem, acredito que chegou a hora de uma grande mudança na União Europeia.
A crise cuja gestão é contada em seu filme é uma tragédia grega moderna?
Claro que sim. Quatrocentos mil gregos tiveram que abandonar o país para sobreviver e não voltarão porque agora estão melhor. E o país que deixaram é e será mais pobre, não por alguns anos, mas por gerações. O que aconteceu entre 2009 e 2016 foi uma catástrofe social.
Enquanto isso, ressurgiram os populismos, o racismo e a xenofobia. A Europa retrocedeu?
Não. A sociedade sempre avança. Nos últimos anos, mudou drasticamente, sobretudo com a revolução digital. O racismo não retorna, sempre esteve aí, é permanente. Sempre houve antimuçulmanos, antissemitas. O problema é que existam partidos e setores que impulsionem ou façam aflorar essas atitudes.
Como os líderes que você mostra à frente dos órgãos econômicos da União Europeia?
O filme não busca culpados. Não acredito que sejam pessoas más, mas pessoas que fazem o seu trabalho defendendo algo, mesmo que isso vá contra a sociedade. Nesse caso, esse algo é o euro.
Seu cinema é sempre muito político. Considera que seus filmes podem mudar o mundo?
O cinema mudou a sociedade desde o começo. Porque o cinema é capaz de nos tornar mais próximos, ao nos mostrar como os outros vivem. Mas, pretender que os filmes que são feitos irão mudar a sociedade seria uma loucura. Todos os filmes são políticos. Até o mais estúpido. A arte tem uma relação com as pessoas, e isso é uma responsabilidade.
Qual a sua avaliação do novo panorama criado com a Netflix e outras plataformas?
A Netflix tem muito de positivo e negativo. O bom é que por 10 ou 15 euros mensais você pode assistir a todos os tipos de filmes. O ruim é que você não sabe quantas pessoas assistem o filme, nem tem participação nos direitos. As plataformas não pagam impostos nos países onde operam e existe o risco de que a produção independente desapareça. Mas, será preciso lutar.
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“A Europa é apenas um mercado, sem políticas culturais e sociais”. Entrevista com Costa-Gavras - Instituto Humanitas Unisinos - IHU