09 Outubro 2019
Uns veem-no como distopia já em curso. Outros, como utopia catártica. Em comum, a incapacidade para lidar com um real cada vez mais diferente do imaginado. O sintoma não está na obra, mas na estranha recepção de boa parte do público.
O artigo é de Bárbara d’Alencar Dragão, jornalista especializada em Política, Psicanálise e Arte, publicado por Outras Palavras, 03-10-2019.
Que a esquerda, a partidária, aquela dos cálculos eleitorais e das disputas ínfimas, esteja perdida em seus próprios labirintos já não é novidade. Não que a disputa partidária e a volta ao poder devam ser renunciadas em prol de uma pureza pueril, mas quando o horizonte de sentido se reduz aos aspectos meramente eleitorais, a derrota deixa de ser apenas um acidente de percurso.
Com o avanço da era do absurdo, passados os tempos da política sob a forma do ridículo – saudades desse período, ao menos se podia rir! – a realidade tem se tornando cada vez mais insuportável, mesmo para aqueles e aquelas que não estão diretamente ligados aos quadros fixos da briosa esquerda partidária-institucional.
Trata-se dos que, sem filiação partidária, lugares em coletivos fixos, ou militância constante, se reconhecem dentro do campo progressista além dos períodos eleitoreiros. Para estes, a realidade tende a se tornar ainda mais pesada, pois estão longe de certos afetos ilusórios e iludidos, capazes de serem criados apenas pela máquina partidária. Sim, o mesmo maquinário que é capaz de fazer crível a realidade também é, algumas vezes, um poderoso narcótico. O que pode ser mais distante da realidade atualmente do que certas pretensões partidárias à esquerda? O diagnóstico pós-moderno do fim do real, ironicamente, aparece naqueles que talvez mais o tenham negado, já que se apegam a um real que é apenas a compensação de sua perda, a única realidade possível é a marca de seu desaparecimento.
Não há, nestas marcas, apenas o encastelamento partidário – que já é o reconhecimento das incapacidades de lidar com um real cada vez mais diferente daquele imaginado. Há também um enfraquecimento dos laços e uma distância cada vez maior com aqueles que se identificam com as ideias e os ideais de esquerda, mas estão fora dos quadros partidários.
Uma massa de homens e mulheres que, não estando unidos pelos vínculos partidários, nem pelos passos da militância, unem-se por uma sensibilidade comum que perfaz um horizonte de sentido, um sentimento de mundo compartilhado. Estes sentimentos e sentidos eram orientados primordialmente por uma capacidade de apresentar uma razão e uma norma de ação, mesmo no meio de um mundo aparentemente sem razão e cuja norma de ação parecia não ter limite ético.
Contudo, foi-se o tempo em que era possível realizar verdadeiros diagnósticos e apontar razão onde se via apenas a desrazão. A rapidez dos tombos em sequência e a miopia em enxergar os abismos cavados aos próprios pés, tornam cada vez mais impossíveis as capacidades diagnósticas. Por isso, sobram rápidas e superficiais análises de conjunturas; e, se fortalecem eventos imediatistas para liberar as pulsões. Sem essa liberação mínima, seriam impossível certas ilusões. Mas, uma vez ocorrida a liberação, tudo se esvai em uma grande dispersão, entrando em um círculo aparentemente vicioso.
Essas pulsões são liberadas, por exemplo, quando é possível alcançar os trending topics do twitter, sem falar na incontida e ingênua esperança de que um recente passado volte a ser, como que magicamente, não considerando a distância entre o ontem e o hoje. Mas quando tais fugas do real vão aos poucos perdendo a capacidade de anestesiar, o que sobra?
Ora, sobra aquilo que há de anestético na estética: a arte e seu efeito catártico. Não é este o efeito de Bacurau, o filme? Não tem sido ele a catarse para uns, mais anestesia para outros? O fato é que estes efeitos estão diretamente relacionados não com a obra fílmica em si, porém mais profundamente com a perda do real.
O debate acalorado sobre o filme, reduzido simploriamente entre bajuladores e detratores, perde-se em não captar o sintoma expresso pela obra artística, e que não passa pelas consciências e talentos dos seus realizadores. Esta questão sintomática não está na obra em si; mas, do lado de cá, na percepção e recepção, na sensibilidade do público espectador.
Os efeitos causados pela obra em seu público se referem, portanto, muito mais aos espectadores e um horizonte de sensibilidade que vai se esfacelando com as perdas da capacidade de realização e de fabulação do mundo, do que propriamente do filme. Deter-se no enredo e nos efeitos fílmicos da obra é perder o que ela suscita de mais primordial.
Assim, para aqueles que veem no filme uma distopia para falar de um futuro que na verdade é presente, fica a sensação anestésica. Atônitos, se reconhecem sem saber bem o que falar sobre a obra, restando apenas tentar entender a sensação de espanto emudecedor. Este sentimento de perplexidade é idêntico ao que se segue no cotidiano; ampliado na tela fílmica, é capaz de provocar ainda maior estupefação. Não pela capacidade da obra em si, mas porque a estupefação vai se tornando o sentimento dominante do mundo. O filme, como parte integrante deste real, anestesia não por retirar, mas por deixar o espectador ainda mais cativo de sua perplexidade.
Há outros que não veem propriamente uma distopia, identificando no filme uma utopia. São aqueles para os quais, conta mais a catarse do que o puro efeito anestésico. Após a descarga emocional do filme, é hora de assumir no real o que ele propõe. Para o espectador catártico – diferente do anestesiado – o filme apontaria um caminho de resistência, um certo modo de ação. Prova da incapacidade real de orientação da ação, ele confunde o roteiro do filme com uma estratégia hodierna, confunde o ficcional com o factível. Para este, a perda do real é mais desviante, pois ele vê no filme aquilo que nele não está, é o avesso do realismo, porém sem a fantasia criadora. Desse modo, ele não é atônito e perplexo, mas resoluto, tanto que não emudece, mas fala o tempo todo da obra, a desdobra, sem se dar conta daquilo que expressa de si mesmo, quando pensa estar falando apenas de uma coisa. A realidade que vê na obra é a sua ilusão omitida.
Estes dois tipos de espectadores, embora pareçam contrários, expressam o mesmo sintoma: a perda do real, a certeza de um tempo histórico que escapou das mãos sem compensações ou restituições possíveis. Nem o próprio filme lhe pode ser uma restituição, ainda que simbólica; mas no fundo, os dois tipos de espectadores não sabem o que o filme é. Se o próprio filme lhes escapa, mas ainda o real. Um, já o acha tão perdido que identifica presente e distopia; o outro, também já o acha tão distante, que propõe possuí-lo novamente seguindo os “passos do filme”. Um, perde-se entre o filme e o presente; o outro, entre a obra e o futuro. Mas o que ambos não conseguem ver com certeza é a realidade, o hoje.
Nem distópicos, nem utópicos: na verdade, atópicos. Sem lugar, em um mundo que os expulsa de dentro de si mesmo, mostrando que um dia este mesmo mundo não fora completamente deles, conforme tinham imaginado. Não vivemos em Bacurau, mas onde estamos? E preciso fazer esta pergunta novamente, não para entender o sentimento de pertença, mas a pertença do sentimento.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Bacurau e a esquerda anestesiada - Instituto Humanitas Unisinos - IHU