17 Setembro 2019
"O que importa está alhures, naquilo que esses ícones pop da cinefilia fazem com todas as bestas armadas das telas", escreve João Ladeira, professor na Universidade Federal do Paraná, doutor em Sociologia pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro – Iuperj e mestre em Comunicação pela Universidade Federal Fluminense – UFF.
O sucesso de maior repercussão no cinema brasileiro recente talvez importe por razões que ultrapassam os motivos pelas quais até agora foi tão admirado.
Há algo curioso nas críticas sobre Bacurau (2019, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles), e o mais interessante parece ter sido o fato de que elas não necessariamente viram o filme. Falou-se de tudo nesses textos: o comentário da obra sobre o momento que vivemos; a resistência; a opressão e a violência; o extermínio de minorias. Em si, o filme pareceu menos importante.
Na Folha de S. Paulo, surgiu uma comparação com a brutalidade do sequestro, em agosto, de um ônibus na ponte Rio-Niterói. O Globo narrou o quanto os cineastas teriam se inspirado no Gueto de Varsóvia para compor seu filme; e as declarações de ambos – ao menos aquelas apropriadas por esses grandes jornais – não se esforçaram em relativizar a primazia do mundo concreto.
Se apenas a realidade importa, o cinema soa como coisa menor. Presume-se, então, que a violência no interior dessa arte não tenha história. De fato, no audiovisual, demanda-se sempre certa primazia para as coisas da vida. Em momentos de crise (como o nosso) a sensação se acirra: mas Bolsonaro vai passar e a obra de nossos cineastas, não.
Muito menos o próprio cinema. Foram poucos os comentários sobre o diálogo de Bacurau com um gênero muito específico, escasso no Brasil: o filme B de terror e ficção científica, cujas marcas parecem bem mais nítidas que as do faroeste do qual tanto se falou. Novamente, as declarações dos cineastas voltam à tona, pois suas entrevistas não editadas concederam mais destaque para tal estilo.
Ambos expressaram a vontade de compor um filme de gênero, como na conversa com o podcast Saco de Ossos. Certas cenas soam abertamente cômicas: drones em forma de discos voadores; assassinos se entregando ao sexo após a violência; um matador vivido por Udo Kier, esse eterno vilão. São imagens de um gênero difícil de levar a sério. Todavia, a crítica de Bacurau preferiu se negar ao riso.
Por quê? A resposta passa por um traço caro ao cinema: pois tal arte vive não pela correspondência com a realidade, mas por imagens destiladas durante décadas. É um ofício estranho esse de criar tais imagens através de uma técnica que tem o mundo todo como repertório, permitindo que qualquer fração do real caiba na tela comente para reapropriá-la.
Foi graças a tal amplitude que a cinefilia capturou essas imagens, saturando-as, manuseando-as como se pudesse enchê-las após as ter esvaziado, apenas para logo depois esgotá-las mais uma vez, sempre em direção a novas capturas. Porém, como se as contradições nunca terminassem, retorna-se à indispensável referências às coisas, que ganha vida para nos enganar.
Como parte da exploração cinéfila, assassinos em série deixam de ser retratos de tragédias concretas. Quando param de refletir fatos, tornam-se patrimônio do cinema. Mas não é casual que, a partir daí, enxergue-se neles signos sobre a própria vida. E, mais uma vez, vem a pretensão de comentário ou de alegoria. Eles devem dizer algo: ou talvez sejamos nós que precisemos demasiado disso.
Contudo, há uma outra opção. Não poderiam essas imagens bastar por si mesmas? Assim, elas tangenciariam a abstração, exatamente nesse ofício para o qual toda abstração é inviável. É um movimento difícil. Mas a repetição desses filmes de terror transforma monstros e assassinos em ícones, tornando-os recursos disponíveis para sua recombinação.
E eis que, exatamente quando recuperam a própria representação, tais imagens descartam a correspondência com o mundo. Para isso, precisa-se de ícones amplamente conhecidos, e o conjunto de temas do horror soa perfeito. Há algo em Bacurau muito mais importante que engajamento: é um tipo de experiência como aquela que a Arte Pop tentou construir.
A flexibilidade que permitiu a Bacurau se transformar num marco da crítica ao nosso tempo decorre da diversidade de perspectivas disponíveis, fruto dessa busca por signos: logo aqui, numa circunstância na qual esses signos talvez nem sejam o mais importante.
Pois existe de tudo um pouco nas imagens do horror. Há o moralismo de Paul Morrisey, para quem as drogas e a juventude eram valores vazios, consequência de uma sociedade sadia que não conhece a doença, simulando-a ao invés de encará-la. Seus monstros celebravam a contracultura como fraqueza, e por isso o sangue se tornava tão importante.
Existe também a dualidade de Taxi Driver (1976, de Martin Scorsese), da reflexão humanista-cristã de seu diretor sobre a alienação, por um lado, à exaltação da violência do roteiro de Paul Schrader, por outro. Mas há também a pretensão de inverter a normalidade, já discutida nessa coluna ao retomar a trajetória que levou a filmes como As Boas Maneiras (2017, de Marco Dutra e Juliana Rojas).
Por que procurar em Bacurau – no faroeste que ele não é – a defesa de uma civilização se esvaindo frente à barbárie, invertendo, então, a mítica do próprio gênero: a conquista de um território onde se vai impor tal civilização? O que importa está alhures, naquilo que esses ícones pop da cinefilia fazem com todas as bestas armadas das telas. Dói abandonar uma chance de falar sobre o presente, mas, talvez, seja outro o dado libertador.
Direção: Kleber Mendonça Filho, Julio Dornelles
Elenco: Sonia Braga, Udo Kier, Bárbara Colen, Thomas Aquino, mais
Gênero: Ação | Suspense |Western
Nacionalidade: Brasil | França
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Os muitos êxitos de Bacurau - Instituto Humanitas Unisinos - IHU