01 Outubro 2019
"Tanto a questão ambiental como a questão dos trabalhadores do final do século XIX. Se a Igreja ficasse em silêncio, pelos seus silêncios um dia poderia ser chamada a prestar contas, não ao tribunal das mídias, mas ao de sua consciência".
O comentário é de Lucio Brunelli, publicado por L'Osservatore Romano, 30-09 e 01-10-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Por que um Papa deveria se preocupar com mudanças climáticas e biodiversidade, sobre plástico e Amazônia? Um Papa não deveria nos falar apenas de Deus e deixar esses assuntos para os especialistas? Basta dar um giro pelas mídias sociais para descobrir o quanto seja difundida essa objeção, às vezes expressa de forma mais ou menos grosseira, outras vezes de maneira mais astuta e sutil. É curioso que um papa como Francisco - que acorda todas as manhãs quando ainda está escuro para orar, como um monge, e a primeira coisa que ele sempre pede a você é orar por ele - seja representado por alguns de seus detratores como um papa secularista, pouco dedicado ao seu verdadeiro ofício, de homem de Deus, para perseguir temas profanos. Seja má-fé, ignorância ou preocupação sincera, a pergunta inicial permanece. Nunca um papa havia dedicado uma encíclica inteira à salvaguarda da criação, nunca havia sido convocado um sínodo mundial dos bispos sobre a Amazônia. Que relevância esses temas têm com a confirmação e o testemunho da fé católica em que consiste a missão do sucessor do apóstolo Pedro?
No final do século XIX, outro papa, Leão XIII, publicou a Rerum Novarum, uma encíclica sobre a "questão dos trabalhadores". Nenhum pontífice antes dele havia dedicado um documento magistral solene a esse tópico não religioso, mas socioeconômico. O ano era 1891, quase meio século havia se passado desde a publicação do Manifesto de Marx e Engels. A segunda revolução industrial estava mudando a face da Europa: o mundo do campo cadenciado pelos ritmos da natureza e pelos badalos dos sinos das igrejas estava começando a desmoronar, nascia a fábrica, o trabalho operário, um movimento socialista ateu e anticlerical, as cidades ferviam de recém-chegados vindos do campo, novas oportunidades e novas terríveis injustiças. George Bernanos escreveu: “A famosa encíclica de Leão XIII, vocês a leem calmamente, com um olhar superficial, como qualquer pastoral de quaresma. Em sua época, meu jovem, parecia que a terra estava tremendo sob nossos pés". Pode ter parecido estranho para alguns católicos da época ler em uma encíclica – ou seja, um ato de magistério tão solene - raciocínios competentes e sinceros sobre a necessidade de estabelecer um salário mínimo, um teto na jornada de trabalho e condições mais dignas no emprego das crianças. Tudo isso hoje parece óbvio para nós (ou quase), mas em 1891 um patrão podia contratar legalmente crianças de 10 anos em sua fábrica. Leão XIII certamente não era um revolucionário, mas o mero pedido de intervenção do Estado para garantir um limiar mínimo de direitos para os trabalhadores lhe custou a acusação de "papa socialista". Não apenas pelos pasquins da direita, como La Riforma de Francesco Crispi, mas também do Corriere della Sera, que viu nos pedidos cautelosos do papa uma violação perigosa dos princípios sagrados do laissez-faire econômico: “vemos a inutilidade, os perigos ou os danos da excessiva ingerência do estado, especialmente na determinação da jornada de trabalho". Imaginem só. Teríamos que esperar mais de vinte anos, após a Rerum novarum, uma lei que fixaria o limite máximo da jornada de trabalho em oito horas.
Mas por que um papa devia se preocupar com salários e horas de trabalho? Leão XIII não deveria nos falar apenas sobre coisas altamente espirituais, deixando a questão dos trabalhadores - de conditione opificum - à exclusiva competência de empresários, economistas e sindicalistas? Se a Igreja não tivesse falado, hoje estaríamos aqui para apontar o dedo para os silêncios da Igreja diante daquele inédito e convulsionante fenômeno social que o Papa Pecci descreveu com palavras corajosas e verdadeiras: "um número muito pequeno de muito ricos impôs à infinita multidão dos proletários um jugo pouco menos que servil". Se a Igreja não tivesse falado, não teriam surgido, na Itália e no mundo, sociedades de ajuda mútua, cooperativas, bancos rurais, que não foram a panaceia, mas em muitas partes do país trouxeram uma melhoria real nas condições de vida dos trabalhadores e de suas famílias. Alguém se converteu à fé em Cristo, único Salvador, graças às palavras daquele idoso papa? Nós não sabemos. A conversão é um mistério, um dom que normalmente é comunicado através de encontros pessoais, não por atos de magistério. Mas certamente as palavras do Papa e o que se seguiu também foram um testemunho: da humanidade do cristianismo, de um Deus que em Jesus se move por compaixão pelos homens, sobretudo dos mais miseráveis.
Hoje, a salvaguarda da criação pode parecer uma questão muito menos dramática e mais "elitista" em comparação com a questão dos trabalhadores no século XIX. Mas os efeitos das devastações ambientais e das mudanças climáticas já estão afetando a vida de milhões de pessoas no planeta e certamente as piores consequências - se nada for feito para evitá-lo - recairão sobre nossos filhos e os filhos de nossos filhos. Estima-se que até 2050 os migrantes climáticos - populações forçadas a deixar seus territórios devido a transtornos climáticos - serão de 200 milhões: todos os portos do mundo poderão ser fechados, mas será difícil controlar seus movimentos e se considerar seguros em nossa casa. Mas, mesmo independentemente do efeito estufa, a poluição ambiental está atingindo pontos preocupantes: um estudo da Universidade de Victoria (Canadá) estima que todo ser humano ingere 39.000 a 52.000 partículas de plástico (microplásticos) por ano, e certamente não é bom para a nossa saúde. Sim, sabemos isso, há uma parte (na verdade, uma minoria) de cientistas que não acreditam nas teorias mais catastróficas. Uma parte da opinião pública, geralmente de humor político conservador, vai atrás deles e solta piadas assim que chega um dia mais frio, sobre aqueles que levam adiante as teses do aquecimento global. É correto levar em conta as diferenças, evitar fundamentalismos verdes, mas não é mais possível fechar os olhos diante da realidade. O Papa Francisco escreve na Laudato Si': "Sobre muitas questões concretas, a Igreja não tem motivos para propor uma palavra definitiva e entende que deve ouvir e promover um debate honesto entre os cientistas, respeitando as diversidades de opiniões. Porém, basta olhar a realidade com sinceridade para ver que há uma grande deterioração da nossa casa comum (...) Nunca maltratamos nossa casa comum como nos últimos dois séculos”. Alguém tem dúvidas?
Obviamente, pode causar certo efeito ler em um texto oficial do magistério referências ao uso nocivo de aparelhos de ar condicionado. Como se falar assim de maneira concreta fosse considerado uma diminuição da sacralidade da figura do vigário de Cristo, uma banalização de sua mensagem, e não uma virtude de falar claramente. João Paulo II não teve vergonha de entrar em detalhes sobre as causas humanas dos novos preocupantes fenômenos climáticos: “O esgotamento gradual da camada de ozônio e o efeito estufa atingiram dimensões críticas devido à crescente difusão das indústrias, das grandes concentrações urbanas e dos consumo energéticos. Despejos industriais, gases produzidos pela combustão de combustíveis fósseis, desmatamento descontrolado, uso de alguns tipos de herbicidas, resfriadores e propulsores: tudo isso - como sabemos - danifica a atmosfera e o meio ambiente. Muitas mudanças meteorológicas e atmosféricas resultaram, cujos efeitos variam de danos à saúde à possível submersão futura das terras baixas" (Mensagem para o Dia Mundial da Paz, 1 de janeiro de 1990).
E deve significar algo se Bento XVI, em um de seus discursos mais pessoais e pensados - no auditório do parlamento federal alemão – fez de improviso um elogio aos verdes, movimento muito distante de sua visão de Igreja sobre outros temas morais, como o aborto: “O surgimento do movimento ecológico na política alemã a partir dos anos 1970, embora talvez não tenha aberto totalmente as janelas, foi e continua sendo um grito que anseia por ar fresco, um grito que não pode ser ignorado nem deixado de lado, porque seria demasiada irracionalidade. Os jovens perceberam que algo está errado com nossa relação com a natureza; que a matéria não é apenas um material para a nossa produção, mas que a própria terra traz em si a sua dignidade e nós devemos seguir suas indicações" (Berlim, 22 de setembro de 2011).
Sobre essas questões, os últimos papas não apenas valorizaram os pensamentos de outras pessoas. Eles trouxeram uma contribuição original, ditada pela sensibilidade católica e apreciada pelas mentes mais livres do movimento ambientalista, também da cultura secular e agnóstica. Eles adicionaram a categoria de ecologia humana e de ecologia integral. Não existe apenas uma natureza da criação a ser respeitada e salvaguardada, há também uma natureza do homem a ser reconhecida e protegida. A ordem da criação remete a uma ordem da natureza humana, com suas exigências primordiais e suas feridas originais, por sua vez remetendo a um mistério maior, aquele de Quem quis e amou essa ordem. Francisco, em particular, desenvolveu o dado sobre as consequências sociais dos transtornos ambientais: são sempre os mais pobres que pagam as consequências de natureza violada, o caso da migração climática e dos povos de uma Amazônia saqueada pelas multinacionais, ensina dramaticamente.
Tanto a questão ambiental como a questão dos trabalhadores do final do século XIX. Se a Igreja ficasse em silêncio, pelos seus silêncios um dia poderia ser chamada a prestar contas, não ao tribunal das mídias, mas ao de sua consciência. "Os cristãos - escrevia João Paulo II - percebem que suas tarefas dentro da criação, seus deveres para com a natureza e o Criador são parte de sua fé". Mais uma vez, trata-se de não deixar que a sociedade fique sem a voz da Igreja pelo que ela é: uma voz humilde, politicamente inerme, mas objetivamente livre de interesses e de esquemas ideológicos, portanto mais livre e credível. E, juntamente com a voz, sua contribuição ativa, porque, diferentemente da antiga questão dos trabalhadores, a luta pela salvação do planeta exige não apenas ações políticas coletivas (infelizmente hoje muito carentes), mas também uma revolução nos estilos de vida individuais. Desde a escolha dos alimentos até o consumo de água, da responsabilidade de evitar o desperdício ao tratamento de resíduos. Revolução individual que exige uma educação, convincente, atraente, sem retórica.
Mas, retorna a objeção inicial, podemos reduzir a essa "conversão ecológica" a conversão à qual o Evangelho nos chama? Não. São realidades e dimensões distintas e diferentes. A conversão cristã tem dinâmica própria, não provém dos esforços humanos, mas da graça de Deus, humanamente nasce por sermos "chamados, olhados, acariciados: o afago de Jesus" e produz uma "paz que o mundo não conhece". Você pode ser o pior poluidor do mundo e ficar tocado por um encontro que muda imprevisivelmente a direção e o gosto da sua vida. Mas certamente, se a conversão para Cristo for real, você acabará não olhando mais da mesma forma o rio que flui placidamente, as flores no campo, os peixes de escamas prateadas e mais ainda os teus similares que se alimentam graças àquela água e usufruem daquela maravilha.
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Os Papas e o meio ambiente. Se a Igreja ficasse em silêncio - Instituto Humanitas Unisinos - IHU