22 Mai 2018
"Este novo documento Vaticano exige que não ignoremos os profundos e persistentes problemas revelados pela crise financeira mai grave desde a Grande Depressão", escreve Massimo Faggioli, professor de teologia e estudos religiosos na Universidade de Villanova, e autor de Catholicism and Citizenship. Political Cultures of the Church in the Twenty-First Century (Liturgical Press, 2017), em artigo publicado por Commonweal, 18-05-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
Dois dias depois do aniversário do documento Rerum Novarum (1891), escrita pelo Papa Leão XIII, dois dicastérios da Cúria Romana — a Congregação para a Doutrina da Fé e o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral — publicaram um documento intitulado Oeconomicae et pecuniariae quaestiones: Considerações para um discernimento ético sobre alguns aspectos do atual sistema econômico-financeiro. Seus trinta e quatro parágrafos vão dos princípios morais gerais a propostas concretas para reformar o sistema financeiro internacional.
Endereçado "a todos os homens e mulheres de boa vontade", o documento apresenta uma análise do sistema financeiro, considerando a crise que começou em 2007. A grande mensagem do documento é que a indústria financeira é incapaz de se governar adequadamente; uma "adequada regulação" exige intervenção governamental. E da forma como se apresenta, o sistema é inseguro. Isso agrava a desigualdade e se sustenta na exploração dos fracos e dos pobres. A documento chega a denominar os produtos financeiros conhecidos como derivados de "uma espécie de bomba relógio, prontos a deflagrar mais cedo ou mais tarde a falta de confiabilidade econômica e a contaminação da saúde dos mercados”.
Oeconomicae et quaestiones pecuniariae começa por reafirmar a visão católica da sociedade como uma rede de relações "entre os indivíduos, mas também ‘as macrorrelações como relações sociais, econômicas, políticas” (par. 2). O documento insiste na importância da "liberdade, verdade, justiça e solidariedade" em um sistema econômico-financeiro que muitas vezes parece operar em um vazio ético, no qual o único imperativo é a maximização dos lucros.
Além disso, reconhece que o sistema atual produziu enormes riquezas, ao mesmo tempo apontando para o quanto são mal distribuídas, já que grande parte vai para uma pequena minoria dos investidores. Ele trata da crise financeira de dez anos atrás como uma oportunidade perdida de " repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo" (par. 5). A economia necessita de liberdade de iniciativa, mas essa liberdade "tende a gerar centros de supremacias e a inclinar na direção de formas de oligarquias" (par. 12). Não há como corrigir esta tendência sem uma regulação maior: "é evidente que aquele potente impulsionador da economia que são os mercados, não é capaz de regular-se por si mesmo” (par. 13). Isso abre portas à política, mas os líderes políticos não podem regular a economia sem uma visão de longo prazo do bem comum: "poderes políticos e poderes econômico-financeiros devem sempre permanecer distintos e autônomos e, ao mesmo tempo, direcionados, para além de afinidades nocivas, à realização de um bem que é tendencialmente comum e não reservado somente a poucos e privilegiados sujeitos” (par. 21). O documento critica abertamente a "desregulamentação maciça" dos mercados financeiros e pede "uma coordenação supranacional entre as diversas arquiteturas dos sistemas financeiros locais” (par. 19) e "uma coordenação estável, clara e eficaz entre as várias autoridades nacionais de regulação dos mercados" (par. 21).
É um documento político no sentido de que chama — mais uma vez — a política a fazer seu trabalho e resistir a esses interesses em prol do bem comum.
A CDF e o Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral recomendam "delinear uma clara definição e separação, para os intemerdiadores bancários de crédito, do âmbito da atividade de gestão de crédito ordinário e dos recursos destinados ao investimento e aos negócios” (par. 22). Descrevem, ainda, novos produtos financeiros exóticos, como o credit default swap, contratos assegurando o risco de falência, que causou tantos problemas durante a crise financeira, como parte de "uma espécie de canibalismo econômico" (par. 26). Uma série de parágrafos no final do documento é dedicada a uma crítica detalhada às "operações offshore" e aos paraísos fiscais.
É o primeiro documento publicado em conjunto por dois dicastérios no pontificado de Francisco. O cardeal Turkson, prefeito do Dicastério para o Serviço do Desenvolvimento Humano Integral, teve um papel importante na elaboração de Laudato Si’ e confirma aqui sua importância no desenvolvimento da mensagem de Francisco em questões sociais e econômicas globais. O fato de a CDF ser um dos dois dicastérios responsáveis pelo documento confere peso teológico ao ensino social de Francisco na economia, dificultando para os críticos católicos minimizar esse ensinamento como mera "prudência". Desde a saída do Cardeal Müeller, em julho de 2017, o papel da CDF ficou mais visível neste pontificado (por exemplo, com a carta Placuit Deo), sinal da boa relação entre o Papa e o novo prefeito, o jesuíta espanhol Luis Ladaria Ferrer. Na conferência de imprensa de Oeconomicae et pecuniariae quaestiones, Ladaria reconheceu que se trata de um novo tipo de documento para a CDF.
Isso não significa que surgiu do nada. Na verdade, o documento vem da tradição da doutrina social católica moderna, especialmente após as evoluções do Concílio Vaticano II sobre a doutrina: não apenas Laudato Si’, do próprio Francisco, mas também o trabalho de seus antecessores. Caritas in veritate (2009), do Papa Bento XVI, tem um papel particularmente importante e é a fonte mais citada do documento, com muitas de suas baseadas na encíclica, escrita logo após a crise.
Oeconomicae et pecuniariae quaestiones reitera e desenvolve um dos pontos principais da doutrina de Francisco sobre a Igreja no mundo atual — ou seja, a aparente impotência do poder político diante de interesses financeiros profundamente arraigados. É um documento político no sentido de que chama — mais uma vez — a política a fazer seu trabalho e resistir a esses interesses em prol do bem comum.
Há um conflito claro entre a agenda libertária e capitalista de livre mercado e as propostas do Papa por mais regulação - tanto em nível nacional quanto internacional. Mas este documento não se enquadra no espectro liberais versus conservadores. Não apenas porque o apoio à regulamentação adequada da economia por autoridades políticas faz parte da doutrina social católica pelo menos desde Rerum Novarum (que não pode não ser considerada uma inovação de modernistas irresponsáveis), mas também porque Oeconomicae et pecuniariae quaestiones não se encaixa perfeitamente nas ortodoxias comuns da economia política. Ninguém diria que é marxista, dada a ênfase na importância da liberdade de iniciativa. Ao mesmo tempo, critica de forma contundente, mesmo que implícita, o neoliberalismo que domina a opinião da elite da Europa e dos Estados Unidos desde os anos 90.
Portanto, será interessante ver como este documento vai ser recebido nos círculos católicos que já se aliaram aos interesses da elite financeira — como em Washington, em Wall Street e nas faculdades de administração. A desregulamentação da economia, a idolatria dos "criadores de riqueza" e um foco muitas vezes hipócrita em "valores" e virtudes pessoais como as únicas soluções possíveis para os problemas econômicos estruturais — são todos sintomas do neoliberalismo que têm permeado a cultura teológica do catolicismo estadunidense. Este documento desafia diretamente uma cultura e um sistema educacional que se tornaram subservientes às altas finanças. Critica principalmente as faculdades de administração, estendendo às faculdades de administração de universidades católicas, que não são muito diferentes das seculares.
Oeconomicae et pecuniariae quaestiones confirma a intenção de Francisco de expandir o protagonismo moral da Igreja Católica em direção a um espectro mais amplo de questões. Condena mais radicalmente - e frequentemente - os males econômicos e financeiros do que João Paulo II ou Bento XVI. Esse foco é parte integrante de seu pontificado e uma das razões pela qual enfrenta oposição.
Este novo documento Vaticano exige que não ignoremos os profundos e persistentes problemas revelados pela crise financeira mai grave desde a Grande Depressão. Grande parte do resto do mundo, bem como o partido que agora está no governo dos EUA, prefere esquecer ou tratar como uma anomalia. Os bispos dos Estados Unidos — o centro do capitalismo global — não conseguiram produzir um documento como este, apesar das propostas de alguns bispos na reunião de outono de 2015 da Conferência dos Bispos dos EUA. Em relação a questões socioeconômicas, Bento XVI e Francisco estão em uma relação muito mais de "continuidade" do que a Conferência dos Bispos dos EUA pode afirmar estar com qualquer um deles.
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Primeiro as pessoas, depois o lucro: um documento do Vaticano sobre o sistema financeiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU