18 Mai 2018
É o que se chamaria de um documento ‘maior’ vaticano, preparado pelas duas mais importantes Congregações do Vaticano, a da Doutrina para a Fé e a do Desenvolvimento Humano Integral, sobre a economia e os mercados financeiros.
A reportagem é de Maria Antonietta Calabró, publicada por Huffington Post, 17-05-2018. A tradução é de Luisa Rabolini.
O título é em latim ("Oeconomicae et pecuniariae questione"), mas o conteúdo é extremamente atual. Trata das necessárias correções para os mercados financeiros e para as dinâmicas da economia globalizada que colocaram em destaque, já a partir de 2007, uma fragilidade intrínseca e até mesmo disfuncional do ponto de vista estritamente econômico, pelas quais se criam assimetrias que beneficiam poucos cada vez mais ricos e descartam a maioria da população mundial. Com a criação de um mecanismo de crises recorrentes e cada vez mais devastadoras.
O dedo aponta especialmente contra o sistema global offshore que é a alavanca desse sistema econômico-financeiro doente, ao qual são dedicados três capítulos do documento. Depois, há um apelo às Business Schools das mais prestigiadas universidades onde se formam os operadores que são chamados a participar do sistema, pedindo que seja parte do currículo também a formação ética dos estudantes, ao passo que agora toda instância ética é, de fato, percebida como extrínseca e contraposta à ação empreendedora.
Existem três peculiaridades do Documento dos dois dicastérios vaticanos.
A primeira é que "essas considerações" foram aprovadas - e isso é expressamente ressaltado no final - pelo papa Francisco na Audiência concedida ao Secretário da Congregação para a Fé.
Em segundo lugar, a redação do Documento não foi do Dicastério do Desenvolvimento Humano, mas da Congregação para a Doutrina para a Fé, e as "Considerações" foram decididas na Sessão Ordinária desse dicastério, e isso enfatiza que não se trata de posições meramente sociais, mas que elas estão ancoradas no juízo da fé da Igreja.
A terceira é que o documento foi "concluído" em 6 de janeiro, Epifania do Senhor, ou seja, já há quatro meses estava escrito e pronto, mas só foi divulgado nesta quinta-feira, e foi apresentado durante a manhã em uma conferência de imprensa na Sala de Imprensa do Vaticano. Aguardamos para saber se o motivo para esse intervalo de tempo será esclarecido.
Aqui, então, os principais conteúdos do texto.
"A recente crise financeira poderia ter sido uma ocasião para desenvolver uma nova economia mais atenta aos princípios éticos e para uma nova regulamentação da atividade financeira, neutralizando os aspectos predatórios e especulativos, e valorizando o serviço à economia real. Embora muitos esforços positivos tenham sido realizados em vários níveis, sendo os mesmos reconhecidos e apreciados, não consta porém uma reação que tenha levado a repensar aqueles critérios obsoletos que continuam a governar o mundo. Antes, parece às vezes retornar ao auge um egoísmo míope e limitado a curto prazo que, prescindindo do bem comum, exclui do seus horizontes a preocupação não só de criar, mas também de distribuir a riqueza e de eliminar as desigualdades, hoje tão evidentes."
"O bem-estar deve ser portanto avaliado com critérios bem mais amplos que o produto interno bruto de um País (PIB), levando em consideração também outros parâmetros, como por exemplo a segurança, a saúde, o crescimento do “capital humano”, a qualidade da vida social e do trabalho. E o ganho pode ser sempre buscado, mas não “a qualquer custo”, nem como referência totalizante da ação econômica. Por tal motivo, cada progresso do sistema econômico não pode considerar-se tal se medido somente mediante os parâmetros da qualidade e da eficácia em produzir ganhos, mas deve ser medido também mediante a base da qualidade de vida que produz e da extensão social do bem-estar que difunde, um bem-estar que não pode limitar-se somente aos seus aspectos materiais. Cada sistema econômico legitima a sua existência não somente mediante o mero crescimento quantitativo das trocas econômicas, mas documentando sobretudo a sua capacidade de produzir desenvolvimento para todo o homem e para cada homem. Bem-estar e desenvolvimento exigem-se e sustentam-se reciprocamente, exigindo políticas e perspectivas sustentáveis para além do breve prazo".
"Nenhuma atividade econômica pode sustentar-se longamente se não é vivida em um clima de uma sadia liberdade de iniciativa. Porém hoje é também evidente que a liberdade de que gozam os atores econômicos, se compreendida de modo absoluto e distante da sua intrínseca referência à verdade e ao bem, tende a gerar centros de supremacias e a inclinar na direção de formas de oligarquias que no final prejudicam a eficiência mesma do sistema econômico".
"Deste ponto de vista, é sempre mais fácil perceber que diante do crescente e pervasivo poder de importantes agentes e grandes redes econômicas-financeiras, aqueles que deveriam exercer o poder político, ficam desorientados e impotentes pela supranacionalidade daqueles agentes e pela volatilidade dos capitais por eles gestados. Eles fadigam assim em responder à sua originária vocação de servidores do bem comum, transformando-se em sujeitos a serviço de interesses estranhos àquele bem. Tudo isto torna urgente mais do que nunca uma renovada aliança, entre agentes econômicos e políticos, na promoção daquilo que serve ao completo desenvolvimento de cada pessoa humana e de toda sociedade, conjugando ao mesmo tempo as exigências da solidariedade com aquelas da subsidiariedade".
"Todavia, é também evidente que aquele potente impulsionador da economia que são os mercados, não é capaz de regular-se por si mesmo. De fato, estes não sabem nem produzir aqueles pressupostos que consentem seu desenvolvimento regular (coesão social, honestidade, confiança, segurança, leis...), nem corrigir aqueles efeitos e aquelas externalidades que resultam prejudiciais à sociedade humana (desigualdade, assimetrias, degradação ambiental, insegurança social, fraudes...). Além do mais, para além do fato que muitos de seus operadores sejam individualmente animados por boas e retas intenções, não é possível ignorar que hoje a indústria financeira, por causa da sua difusão e da sua inevitável capacidade de condicionar e, em certo sentido, de dominar a economia real, é um lugar onde os egoísmos e as imposições violentas têm um potencial excepcional de causar danos à coletividade. A intenção especulativa, particularmente no âmbito econômico-financeiro, arrisca hoje de suplantar todas as outras intenções importantes que integram a substância da liberdade humana. Este fato está deteriorando o imenso patrimônio de valores que funda a nossa sociedade civil como lugar de pacífica convivência, de encontro, de solidariedade, de regenerante reciprocidade e de responsabilidade em vista do bem comum. Neste contesto, palavras como “eficiência”, “competição”, “liderança”, “mérito” tendem a ocupar todo o espaço da nossa cultura civil, assumindo um significado que termina por empobrecer a qualidade das trocas, reduzida a meros coeficientes numéricos”.
“A cultura do descarte exclui grandes massas da população, privando-as de um trabalho digno e tornando-as ‘sem perspectivas e sem vias de saída’: ‘Já não se trata simplesmente do fenômeno de exploração e opressão, mas duma realidade nova: com a exclusão, fere-se, na própria raiz, a pertença à sociedade onde se vive, pois quem vive nas favelas, na periferia ou sem poder já não está nela, mas fora. Os excluídos não são “explorados”, mas resíduos, ‘sobras’”.
"Exatamente de tal desígnio especulativo nutre-se o mundo das finanças offshore, que, mesmo oferecendo também outros serviços lícitos, mediante muitos e difusos canais de evasão fiscal, quando não de evasão e de lavagem de dinheiro fruto do crime, constitui um ulterior empobrecimento do normal sistema de produção e distribuição de bens e de serviços. É árduo distinguir se muitas de tais situações deem vida a casos de imoralidade próxima ou imediata: certamente é evidente que tais realidades, do momento em que tiram injustamente a linfa vital da economia real, dificilmente podem encontrar uma legitimação, seja do ponto de vista ético, seja do ponto de vista da eficiência global do sistema econômico mesmo. Antes, aparece sempre mais evidente um grau de correlação não transcurável entre os comportamentos não éticos dos operadores e os resultados falimentares do sistema no seu complexo: é inegável que as carências éticas exacerbam as imperfeições dos mecanismos do mercado. Em todos os casos a manipulação fiscal dos principais atores do mercado, em especial dos grandes intermediários financeiros, representa uma injusta subtração de recursos da economia real, é um dano para toda a sociedade civil. Considerada a não transparência daqueles sistemas, é difícil estabelecer com precisão a quantidade de capitais que transitam nos mesmos; todavia foi calculado que bastaria uma mínima taxa sobre as transações realizadas offshore para resolver boa parte do problema da fome no mundo: porque não tomar com coragem a direção de uma semelhante iniciativa?
Além do mais, foi acertado que a existência das sedes offshore favoreceu também uma enorme saída de capitais de muitos países de baixa renda, gerando numerosas crises políticas e econômicas, e impedindo aos mesmos de tomar finalmente a direção do crescimento e de um saudável desenvolvimento. A tal propósito, ocorre notar que, muitas vezes, diversas instituições internacionais denunciaram tudo isto e não poucos governos nacionais buscaram justamente limitar o efeito das sedes financeiras offshore.
Existiram muitos esforços positivos nesta direção, especialmente nos últimos dez anos. Todavia, até agora não conseguiram impor acordos e normativas adequadamente eficazes neste sentido; os esquemas normativos propostos, também da parte de reconhecidas organizações internacionais, foram frequentemente inaplicáveis ou tornados ineficazes, por motivo das notáveis influências que aquelas sedes financeiras conseguem exercitar, considerando o grande capital que dispõem, em relação a tantos poderes políticos as enormes quantidades de capital à sua disposição contra muitos poderes políticos. Tudo isto, enquanto constitui um grave dano a boa funcionalidade da economia real, representa uma estrutura que, assim como hoje é configurada, resulta de tudo inaceitável do ponto de vista ético. Portanto, é necessário e urgente que a nível internacional sejam estabelecidos oportunos remédios a tais iníquos sistemas; primeiramente praticando em cada nível a transparência financeira (por exemplo, com a obrigação da prestação de contas públicas pelas empresas multinacionais, das respectivas atividades e dos impostos pagos em cada país onde operam através de próprias sociedades subsidiárias); e também com sanções rígidas a serem impostas em relação àqueles países que repetem as práticas desonestas referidas acima (evasão e elusão fiscal, lavagem de dinheiro).
O sistema offshore, especialmente para os países cujas economias são menos desenvolvidas, terminou por agravar o débito público dos mesmos. Nos países cujas economias são menos desenvolvidas, acabou agravando a sua dívida.
Para tal propósito, é desejável que especialmente as instituições universitárias e as business schools, ao interno de seus currículos de estudos, num sentido não marginal ou acessório, mas essencial, prevejam cursos de formação que eduquem a compreender a economia e a finança à luz de uma visão completa do homem, não reduzida a algumas de suas dimensões, e de uma ética que a expresse. Uma grande ajuda neste sentido é oferecida, por exemplo, pela Doutrina social da Igreja.
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Não ao offshore. Papa Francisco contra o sistema mundial offshore e as assimetrias que beneficiam poucos e descartam a maioria - Instituto Humanitas Unisinos - IHU