17 Agosto 2019
"Para escutar os Sinais dos Tempos não basta apontar ou fazer breves referências à realidade - conjuntural e estrutural - atual (como fazem as Diretrizes), mas é necessário analisar profundamente essa realidade (com a mediação das ciências humanas e sociais), interpretá-la criticamente (discernir) à luz da razão iluminada pela fé na Palavra de Deus (com a mediação da filosofia e teologia) e libertá-la de tudo aquilo que impede a vida do ser humano e do mundo (da Mãe Terra)", escreve Marcos Sassatelli, frade dominicano, doutor em Filosofia (USP) e em Teologia Moral (Assunção - SP) e professor aposentado de Filosofia da UFG.
Numa leitura atenta das “Diretrizes Gerais da Ação Evangelizadora da Igreja no Brasil” (DGAE 2019-2023) da CNBB - aprovadas em 6 de maio passado na 57ª Assembleia Geral (Aparecida - SP, 1-10/05/19) - notam-se imediatamente algumas “omissões” que falam por si.
Mesmo fazendo - em linguagem atualizada - valiosas reflexões teóricas (como orientações gerais) sobre os desafios do mundo e do Brasil de hoje (a questão da cultura urbana, do meio ambiente, da missionariedade das Comunidades Eclesiais e outras), as Diretrizes revelam de maneira muito clara que, na caminhada pastoral da Igreja no Brasil, está em andamento - embora com muitas resistências - um processo de volta ao modelo de Igreja pré-conciliar. Um retrocesso lamentável!
A primeira omissão é o “esquecimento” do Documento (composto por 16 Mini - Documentos) da II Conferência Geral do Episcopado Latino-americano e Caribenho de Medellín - 1968 (A Igreja na atual transformação da América Latina e do Caribe, à luz do Concílio Vaticano II). Nas Diretrizes não há uma referência sequer a esse Documento. Consequentemente, nem é citado na “Lista das Siglas” dos Documentos da Igreja universal e latino-americana utilizados na elaboração das Diretrizes.
Em 2018 comemoramos os 50 anos do Documento de Medellín. Infelizmente, notou-se na Igreja - com raras exceções - uma indiferença muito grande em relação a essa data jubilar. Em maio deste ano (2019), a “homenagem” que a CNBB - na elaboração das Diretrizes - prestou ao Documento de Medellín foi o seu “esquecimento”. A Assembleia Geral da CNBB poderia ter sido uma oportunidade para - oficialmente - fazer a memória do jubileu desse Documento e retomar seus principais ensinamentos, destacando sua atualidade.
O Documento de Medellín é a aplicação do Concílio Vaticano II, ou melhor, é o próprio Concílio Vaticano II para a América Latina e o Caribe. Como muito bem disse Clodovis Boff, é o Documento fundante da Igreja Latino-Americana e Caribenha enquanto tal. Até então, a Igreja Latino-Americana e Caribenha era a Igreja Europeia transplantada na América Latina e no Caribe. Os participantes da Conferência de Medellín podem ser considerados os Padres da Igreja Latino-Americana e Caribenha.
O Documento de Puebla - 1979 (Evangelização no presente e no futuro da América Latina e Caribe), o Documento de Santo Domingo - 1992 (Nova Evangelização, Promoção Humana e Cultura Cristã) e o Documento de Aparecida - 2007 (Discípulos missionários de Jesus Cristo para que nossos povos Nele tenham vida) só podem ser lidos (analisados e interpretados) à luz do Documento de Medellín e em “continuidade criativa” com ele.
A segunda omissão é o “desaparecimento” das Comunidades Eclesiais de Base (CEBs) do texto das Diretrizes (não da vida, graças a Deus). A palavra CEBs encontra-se somente duas vezes, de passagem e sem nenhuma relevância: uma, quando as Diretrizes afirmam que, “recordando o 14º Intereclesial das CEBs, somos convidados a olhar com alegria e esperança todas as iniciativas que se voltam para as cidades, buscando compreender seu jeito de pensar, sentir e agir” (68); outra, quando dizem que “o empenho por constituir Comunidades Cristãs maduras na fé, deve ser a meta das dioceses, paróquias, CEBs, comunidades novas, movimentos, associações, serviços e famílias” (128).
Que diferença entre as Diretrizes e o Documento de Medellín! No Documento de Medellín, a CEB é “o primeiro e fundamental núcleo eclesial” ou “a célula inicial da estrutura eclesial” (Medellín, XV, 10) e a Paróquia, “um conjunto pastoral unificador das Comunidades de Base” (Ib. 13). As CEBs - na diversidade e beleza de seus “rostos” - são o jeito de ser Igreja que Jesus de Nazaré sonhou, quis e quer. A expressão “de Base” foi acrescentada para nos lembrar que as Comunidades Eclesiais devem (como Jesus de Nazaré) ser “encarnadas” na vida do povo.
As Diretrizes - como é dito na Introdução - “estão estruturadas a partir da Comunidade Eclesial Missionária, apresentada com a imagem da ‘casa’, ‘construção de Deus’ (1Cor 3,9)” (4). Elas, porém, esquecem de dizer que a primeira “casa” de Jesus foi a “manjedoura” de um estábulo. “Não havia lugar para eles na hospedaria (dentro de casa)” (Lc 2,6). Esquecem também de dizer que a Comunidade Eclesial - como Comunidade de seguidores e seguidoras de Jesus - tem lado: o lado dos Pobres, oprimidos, excluídos e descartados. “Quem diz que permanece em Deus, deve caminhar como Jesus caminhou” (1Jo 2,6).
Por ter lado, a Comunidade Eclesial - embora esteja aberta à participação de todos e de todas que praticam a partilha - se constrói a partir dos Pobres (“desde a manjedoura”). É por isso que ela é “de Base”. Se não for “de Base”, não é Comunidade Eclesial e - menos ainda - Comunidade Eclesial Missionária (“em saída”). Existe algo que seja mais “de Base” que a “manjedoura” de um estábulo? Essa é a verdade que, com todas al letras, precisa ser dita e, infelizmente, as Diretrizes não dizem.
A terceira omissão (que é a causa principal das outras duas omissões) é a “falta” da escuta dos Sinais dos Tempos desde os Pobres, ou seja, a partir (na ótica) dos empobrecidos, oprimidos, excluídos e descartados da sociedade e do mundo. Essa escuta deveria ser (mas, infelizmente, não é) a espinha dorsal das Diretrizes.
Para escutar os Sinais dos Tempos não basta apontar ou fazer breves referências à realidade - conjuntural e estrutural - atual (como fazem as Diretrizes), mas é necessário analisar profundamente essa realidade (com a mediação das ciências humanas e sociais), interpretá-la criticamente (discernir) à luz da razão iluminada pela fé na Palavra de Deus (com a mediação da filosofia e teologia) e libertá-la de tudo aquilo que impede a vida do ser humano e do mundo (da Mãe Terra).
Por fim - para renovar a nossa esperança e nos fortalecer como cristãos e cristãs - é necessário celebrar a realidade (analisada e interpretada) no Mistério Pascal de Cristo e o Mistério Pascal de Cristo na realidade.
Sigamos com alegria o caminho que Jesus fez: desde a manjedoura até sua morte na cruz e sua ressurreição! Ele é o Caminho, a Verdade e a Vida!
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Omissões que falam por si - Instituto Humanitas Unisinos - IHU