13 Agosto 2019
"Estamos a poucas semanas do Sínodo da Amazônia, evento a ser celebrado em Roma no próximo mês de outubro. Naturalmente, falar da Igreja na Amazônia equivale a falar da 'inculturação' da Igreja, já que a cultura da Igreja medieval (à qual a Igreja atual quer ser fiel) e as culturas dos povos da enorme selva amazônica são realidades culturais tão distintas (e, não em poucas coisas, tão distantes) que inevitavelmente põem problemas teológicos, que, de rebote, afetam toda a teologia e a Igreja inteira", escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 11-08-2019. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
A carta que há poucos dias viemos a conhecer do cardeal Pell, fazendo-se de vítima inocente quando, na realidade e segundo os juízes, é um delinquente corruptor de menores (por isso está encarcerado), esta carta – como ia dizendo – confirma que, efetivamente e neste momento, existe na Igreja um bloco que clérigos importantes que, seguindo o lamentável exemplo do cardeal Müller, pensam, sem escrúpulos, em dizer e propagar que o Papa Francisco está tão equivocado que pode ser qualificado de “herege”.
E se efetivamente a Igreja está governada por um “herege”, a situação é grave. Muito grave. Porque, se isso for verdade, o papa tem que deixar a Igreja; ou somos nós os que precisamos abandoná-la. A não ser que estejamos diante de um grupo de homens “importantes” – ou vai saber o que são – que ocultam a sua falta de vergonha com um manto escuro de “ortodoxia”.
Pois bem, sendo esta a situação, o que pensar e o que fazer neste estado de coisas? Naturalmente que não será eu quem vai dizer o que temos que pensar ou o que devemos fazer. Limito-me a informar alguns dados que, talvez, ajudem algumas pessoas neste momento que vivemos.
Antes de mais nada, quero esclarecer que estou inteiramente de acordo com o professor Reyes Mate quando afirma que o Papa Francisco está tendo a liberdade e a coragem de “dessacralizar” séculos de história, que conduz a Igreja afirmando e sustentando aquilo que Yves Congar qualificava como o “aspecto senhorial” do mundo eclesiástico. Tenho a impressão de que este papa não é “clerical”. Não nos esqueçamos de que toda a ideia de “clérigo” indica privilégio e prepotência, conceito e experiências que nada têm a ver com o Evangelho.
Nem a mensagem de Jesus se pode transmitir a partir destes lugares. Tampouco pode se pôr a falar de Jesus quem se empenha em colocar-se acima dos outros. Jesus confrontou os seus discípulos precisamente por isso. Eis uma miséria humana na qual incorrem muitos “homens de Igreja”.
Isso é tanto mais frequente quanto mais alto se sobe na “escada clerical”. Como a Igreja está organizada, quem nela sobe sem dúvida alguma (e seguramente sem que a própria pessoa se dê conta do que está fazendo com sua vida) pode ser chamado de “trepador de escadas”. São homens que se apegaram totalmente ao sistema clerical. E assim, naturalmente, alcançam fama e glória, sobretudo nas “sacristias”. Porém, ao mesmo tempo, eles afastam a Igreja de sua razão de ser. O que significa – entre outras coisas – que a convertem num museu de antiguidades, que a cada dia interessa menos e à qual diariamente pessoas fazem menos caso.
Mas nada do que foi dito é mais forte do que aquilo que eu gostaria de defender aqui. Afirmei que, neste momento, estou com o papa mais do que nunca. Por que exatamente agora? Estamos a poucas semanas do Sínodo da Amazônia, evento a ser celebrado em Roma no próximo mês de outubro. Naturalmente, falar da Igreja na Amazônia equivale a falar da “inculturação” da Igreja, já que a cultura da Igreja medieval (à qual a Igreja atual quer ser fiel) e as culturas dos povos da enorme selva amazônica são realidades culturais tão distintas (e, não em poucas coisas, tão distantes) que inevitavelmente põem problemas teológicos, que, de rebote, afetam toda a teologia e a Igreja inteira.
Compreende-se assim porque este Sínodo é tão importante e por que está dando tanto o que falar. Entre outras razões, importa porque, nas comunidades cristãs amazônicas, certos problemas que na Europa ou nos EUA encontram uma solução, são aí vividos com mais urgência.
Os dois problemas, que estão dando o que falar, são o celibato dos sacerdotes e a ordenação sacerdotal de mulheres. Pois bem. A primeira coisa que devemos dizer sobre estes temas é que, se falarmos com exatidão, com conhecimento do que estamos dizendo e com liberdade, nem o celibato dos sacerdotes nem a ordenação sacerdotal de mulheres são problemas teológicos.
O Novo Testamento nada diz sobre o celibato dos sacerdotes nem sobre se as mulheres podem ou não podem receber o sacramento da Ordem. Estes assuntos não são problemas teológicos. São temas históricos e culturais.
Eles devem ser resolvidos em cada momento da história e em cada cultura, não segundo o que pensavam os escolásticos medievais, mas segundo aquilo que mais necessitam os cristãos. Jesus fundou a Igreja não para que fosse fiel à escolástica ou ao medievo, mas para que fizesse presente o Evangelho em cada tempo e em cada cultura, segundo os “tempos” e as “culturas” que o necessitarem. O que não é “inventar” ou “acomodar” o Evangelho conforme nos convém ou nos interessa. É exatamente o contrário: “acomodarmos” o Evangelho e não converter em “dogmas de fé” o que são meros “fatos históricos”, sendo vivido e ajustado àquilo que necessitam os povos e as culturas, em cada momento e em cada situação da história e da sociedade.
Todavia, existe algo que seguramente é o mais importante e que possivelmente não poucos clérigos ignoram. As afirmações da Sessão VII do Concílio de Trento – sessão que o concílio dedicou aos sacramentos – não são nem dogmas nem doutrina de fé. Pois, como consta nas Atas do Concílio de Trento (vol. 5), os “padres conciliares” não chegaram a concordar na questão capital, a saber: se o que condenavam eram “heresias” ou se tratava de simples “erros”. Nisso se centrou o debate da Sessão VII. No entanto, não puderam entrar em acordo. Por isso, a introdução desta sessão limita-se a dizer: “para eliminar os erros e extirpar as heresias…” (Conc. Trid., vol. 5. Denz. – Hün. 1600).
“Não sejamos mais papistas que o papa”. Pode o papa ser ofendido qualificando-o de “herege” por não coincidir com a nossa maneira de qualificar o clero e com o nosso empenho em manter o clericalismo, que já não tem a importância e o significado que teve em séculos passados?
Se não são dogmas de fé nem temas básicos sobre os sacramentos, serão os assuntos mais discutidos e discutíveis, como são aqueles em torno do celibato dos sacerdotes ou o possível sacerdócio de mulheres?
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“Neste momento, com o Papa mais que nunca.” Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU