05 Julho 2019
Manuel Reyes Mate é um dos filósofos espanhóis atuais. Autor consagrado, em suas duas últimas obras, “Karl Marx sobre a religião” e “O tempo, tribunal da história” (Editora Trotta), exerce a denúncia profética e assegura que “o progresso mata e exige vítima”. Também chama Francisco de “ousado”, porque, o seu processo de dessacralização, se enfrenta por séculos de história. Por isso, a seu ver, a Igreja pós-Bergoglio não pode voltar a Ratzinger, porque “ninguém mais vai crer”.
A entrevista é de José Manuel Vidal, publicada por Religión Digital, 27-06-2019. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Seus dois últimos livros são “Karl Marx. Sobre la religión. De la alienación religiosa al fetichismo de la memoria”, da editora Trotta. E, também publicado por Trotta, “El tiempo, tribunal de la historia”. São dois livros relacionados em certo sentido, não?
Sim. São tônicas diferentes, porém estão muito relacionados no fundo. O livro sobre Marx tem uma história, faz mais de 40 anos, Hugo Assmann (teólogo da libertação, brasileiro, faleceu recentemente) e eu embarcamos em uma obra considerável, que era pensar a relação marxismo-cristianismo não somente em Marx, mas sim em toda tradição marxista.
No contexto daqueles anos, o debate máximo-cristianismo era o grande debate não somente de cristãos, era o grande debate cultural da época: todo aquele movimento revolucionário, inovador que se levava, era inexplicável sem a presença de cristãos. Tanto a igreja cristã como os dirigentes comunistas entendiam que eram incompatíveis marxismo e cristianismo. Nós nos propomos a revisar, tanto as explicações do marxismo como do cristianismo, sobre esse ponto para facilitar o encontro e animar uma aproximação.
Isso era antes da condenação à Teologia da Libertação?
Foi antes sim, mas coincide com a origem. Quando nós começamos ainda não havia aparecido a condenação. Porém foi nesse contexto de Teologia da Libertação que se dão esses livros. Formam parte dessa revisão. Dessas perguntas sobre a relação entre marxismo e cristianismo.
Então o livro de Gustavo Gutiérrez foi publicado depois dos livros de vocês?
Sim, foi publicado depois dos nossos. O nosso foi publicado no ano 1974 e são livros feitos entre os anos 70 e 73. E eu acredito que o de Gustavo Gutiérrez deva ser de 74-75, a primeira edição, publicada no Peru. Formam parte do mesmo contexto, porém este, digamos, tem uma caráter mais filosófico.
E agora o retoma?
O editor de então era Alejandro Sierra, dirigia um editorial que tinha um prestígio enorme, “Sígueme”. Hoje é direto de Trotta e me comentou – por que não revisamos aquela edição?
Eu lhe disse – porém, é que o momento já é diferente. Naquele momento o que se levava era o debate entre marxismo e cristianismo e agora o marxismo está em declínio; é um tema que já não me interessa.
Minha primeira reação foi dizer que não, porém pensei e disse “pois que interessante revisar agora esse problema, tendo em conta que não está a pressão política e sim o interesse cultural. Revisar porque pode significar hoje a crítica marxista da religião”.
E embarcamos nessa nova versão com um largo prólogo, que é fundamental porque situa o tema na situação atual caracterizada por uma enorme desorientação. Então o marxismo era guia para muita gente. Hoje não é guia para quase ninguém, porém tampouco há algo que o substitua, e há um grande vazio.
Havia naquela época, se te entendi bem, dois messianismos, um de cada lado. E agora não há. Eles desaparecem ou há outro tipo de messianismo?
O que existe agora é uma grande desesperança. Naquela época havia futuro; era uma sociedade que, apesar de seus problemas, tinha futuro e tinha projetos de longo alcance, simbolizados pelo cristianismo e pelo marxismo. Hoje a sociedade vive muito o presente, sem projetos.
Por isso não nascem modelos?
Claro. E como não há doutrina, tampouco há projetos políticos. Com esse livro o que nos interessava era ver se o marxismo é realmente uma tradição esgotada ou há algo eloquente, ainda hoje.
Algo que posse dizer, que possa dar sentido atualmente. E o que decidiu?
Descobrimos algo fundamental e é toda a evolução que se dá em Marx. Há um jovem Marx que quer comer o mundo. Pertence a uma geração que decretou a morte de Deus argumentando que não ele não soube responder os problemas do tempo e dos homens, todos relacionados com o sofrimento e a injustiça. Assim vai se aproximando a Filosofia.
Porém, conforme vai avançando, vai amadurecendo e diminuindo seus objetivos. Se dá conta que isso de enfrentar o sofrimento humano, a injustiça do mundo, é um tema muito sério. E vai restringindo, estabelece a tese de: “sejamos modestos, o homem não deve se ocupar de mais problemas do que pode responder”. Chega à conclusão de que o que ele pode fazer é analisar e enfrentar aos problemas da exploração da classe trabalhadora. Isso é, os problemas do trabalhador.
Com isso já restringiu muito o seu campo e isso nos parece que merece uma reflexão porque a Filosofia ocupou o espaço que tem na modernidade graças a esse desafio.
Isso lhe deu uma enorme autoridade porque vinha resolver os problemas que a Teologia não pode.
Vimos então como a reflexão marxista se tomou em consideração essa preocupação nossa através de um filósofo muito especial: Walter Benjamin.
Walter Benjamin não é contemporâneo de Marx, morreu em 1940. Pertence já a outra geração, porém sim, está muito atento à pergunta inicial de Marx: a do sofrimento do ser humano.
E que resposta dá?
Ao ver que Marx, em nome de uma racionalidade determinada, diminuiu as pretensões do filósofo inicial, o que vem a dizer Walter Benjamin é: voltemos ao princípio. Analisemos porque o filósofo renuncia a sua ambição. E descobre que essa renúncia tem muito a ver com a perda de um elemento fundamental no jovem Marx, que é o messianismo.
Walter Benjamin disse: repensemos ter uma boa relação entre marxismo e Teologia. Ele chega a propor, em sua famosa primeira tese sobre o conceito de história, uma aliança entre o materialismo histórico e a Teologia, enquanto que Marx havia decidido por uma liquidação da Teologia. Isso empobreceu seu discurso, e o que faz esse marxista moderno de Walter Benjamin é dizer: somente restaurando a relação entre marxismo e messianismo podemos manter a ambição filosófica de enfrentarmos, não a opressão à classe trabalhadora, mas sim o sofrimento do inocente, por exemplo.
O que o marxismo pode dizer à sociedade atual?
O poder do marxismo é dar cargas de ambição à política. A política não somente resolve o dia-a-dia; tem que oferecer um horizonte de esperança à humanidade. Porém, para isso não tem que renunciar às grandes perguntas. E as grandes perguntas tem a ver com a morte, com o sofrimento e com a injustiça. Na medida em que a filosofia política renuncia a essas perguntas, a política se converte em como dizia outro marxista, Max Horkheimer, em um negócio.
A teologia nunca renunciou essas grandes perguntas.
Claro. Walter Benjamin ao final de sua tese, quando forma essa aliança, representa a Teologia como um anão feio e corcunda porque está pesada, digamos, de maus rolos, de responsabilidades históricas, de grandes fracassos e de grandes erros, porém, a resgata dizendo: essa anão feio e corcunda, que mercê uma forte crítica, aliado com o materialismo histórico, poderá fazer frente aos problemas do nosso tempo e do futuro.
É verdade que, dentro das tradições culturais ocidentais, a tradição messiânica é a que cultivou sempre essas grandes perguntas. Que em determinados momentos animara a política e a filosofia. Porém, quando desaparece do horizonte da filosofia e da política, essa cultura se empobrece.
Levadas à prática, tanto o marxismo como o cristianismo, a filosofia e a teologia política católica, fracassaram?
Se pode dizer que a humanidade está longe de ter se realizado. O que temos que analisar é o porquê. E não é difícil chegar à uma conclusão. Europa tem duas almas: Atenas e Jerusalém. Europa está atravessada por uma cultura racionalista; é o que sempre simbolizamos com a ideia de Atenas, porém também com uma tradição messiânica que sempre esquecemos. Ao fim, o Ocidente é pós-cristão, porém um cristianismo e uma cultura muito marcadas por Atenas e de onde, realmente, a influência e a incidência dessa cultura que vem de Jerusalém esteve muito entre parênteses.
E nesse momento, que solução propõe? Depois de ver como evoluiu, por onde teria que ir a Filosofia política para oferecer esperanças?
Eu creio que é muito importante resgatar o conceito de Teologia política para pensar a política. E para pensar a Filosofia.
Na chave de Metz?
Na chave de Metz. A ideia de que as grandes construções políticas irracionais têm uma infraestrutura teológica. E não somente Metz diz isso, é que Max Weber, quando explica a origem da racionalidade moderna, da modernidade, diz: “foi o protestantismo”. Ou quando Hegel explica o que há debaixo da racionalidade diz: “a Teologia”. Ou quando Habermas fala de sua racionalidade comunicativa diz: “eu não me alimento da cultura teológica”. Isso foi assim, o que passa é que não é explícito porque perdemos consciência disso.
A cultura da teologia política não está viva na reflexão política. Não é que essa teologia política tenha receitas, porém sim, que pode dar perspectiva. E isso é o que eu tento fazer no livro “O tempo, tribunal da história”.
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“Esse papa é uma figura de uma ousadia histórica enorme, porque seu processo de dessacralização se enfrenta por séculos de história”, constata Reyes Mate - Instituto Humanitas Unisinos - IHU