13 Mai 2019
Os contratos de trabalho viraram uma coisa de outros tempos, estão na direção de se tornar uma peça de museu? Essa foi a questão central abordada pelo sociólogo francês Christian Azaïs, na abertura do Simpósio ‘Futuro do Trabalho’, realizado na última quinta-feira (9), na Procuradoria Regional da República, em Porto Alegre. Promovido pela Escola Superior do Ministério Público da União, o encontro reuniu procuradores do Ministério Público do Trabalho, do Ministério Público Federal, além de pesquisadores do Brasil e da França, que debateram os impactos das novas tecnologias digitais nas relações de trabalho e suas conseqüências sociais e jurídicas.
Codiretor do Laboratoire Interdisciplinaire pour la Sociologie Économique (LISE), Cnam-CNRS, Hesam (França), e membro do Projeto ANR ZOGRIS “Evolving Employment Norms and Emerging Forms of Inequality Towards a Comparison of Grey Zones”, Christian Azaïs avaliou o tema a partir do conceito de “zona cinzenta” que vem utilizando para abordar o desenvolvimento desse fenômeno nos mercados de trabalho da França e do Brasil
A elaboração desse conceito de zona cinzenta está associada à constatação de que as categorias clássicas da era fordista não dão conta de explicar a variedade e a complexidade das situações laborais e das relações de trabalho vigentes no mundo. Em função disso, o sociólogo defende a necessidade de repensar essas categorias e mudar o olhar e o foco com que enxergamos essas relações de trabalho. A característica comum ao funcionamento dos mercados de trabalho, hoje, no Brasil e na França é a ruptura com o período de estabilidade e pleno emprego e o desmantelamento progressivo das conquistas sociais, embora esse processo se desenvolva de modo diferente nos dois países. Mas, por toda parte, se espalham a flexibilidade, a precarização e a informalização.
Christian Azaïs assinala que esse conceito expressa realidades existentes em diferentes setores. Ele cita como exemplos as zonas de telefonia móvel com uma qualidade ruim de sinal, as zonas de espaço aéreo que fogem ao controle dos radares, os paraísos fiscais do sistema financeiro e diferentes formas de trabalho autônomo, feito a domicílio, feito por trabalhadores que são incentivados a se tornarem empreendedores de si mesmo. Ele também os define como “espaços sociais vazios” ou “espaços de desregulação social de natureza”. Uma zona cinzenta se constrói, entre outros elementos, em cima de patologias sociais como desemprego, recessão e pobreza.
Em resumo, apontou, ela está em ruptura com o quadro estabelecido, constituindo-se em espaço onde se misturam as fronteiras entre “bem e mal, transparência e opacidade, licito e ilícito, direito e não direito, paz e guerra, segurança e ameaça”. No plano do mundo do trabalho, ela carrega consigo um contexto de individualização das normas de emprego, de novas variedades de formas de subordinação e de uma fragmentação – não somente segmentação – do mercado de trabalho. Na França, hoje, por exemplo, há mais de 40 tipos de contrato de trabalho. Incerteza, instabilidade e indeterminação são as palavras chaves das zonas cinzentas, resumiu, recomendando uma regra metodológica básica para estudar essa nova realidade: é preciso afastar-se de qualquer determinismo, já que reina a indeterminação.
As reformas trabalhistas promovidas na França, em 2016 e 2017, explicou ainda o sociólogo, promoveram o enfraquecimento dos sindicatos, o aumento do poder unilateral dos empregadores na definição da jornada de trabalho, a limitação dos benefícios rescisórios em caso de demissão sem justa causa, novos critérios de demissão econômica de assalariados, criação do Plano de “Garantia de Emprego”, que permite a uma empresa de mais de 50 assalariados demitir ao menos uma dezena deles, além da criação de dois dispositivos flexibilizadores: a ruptura convencional individual e a ruptura convencional coletiva. Por outro lado, ressaltou, diferentemente do que ocorre no Brasil, todos os ocupados, se assalariados, têm contratos formais de trabalho, seja por tempo determinado, seja por tempo indeterminado. “A França está longe de tornar informais vínculos ainda regulados por leis, contratos e acordos coletivos de trabalho. Pelo menos, espera-se…”, disse Christian Azaïs.
O sociólogo francês conversou com o Sul21 após a conferência que proferiu em Porto Alegre e enfatizou a necessidade de uma mudança de foco para compreender o novo cenário social e econômico que surge no mundo. “Nós ainda não temos as ferramentas adequadas para analisar essas mudanças que estão acontecendo”.
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 11-05-2019.
A expressão “revolução digital” costuma ser utilizada de forma positiva para designar avanços e novas possibilidades abertas pelas novas tecnologias da informação. No entanto, ela também está ligada a um crescente processo de precarização das relações de trabalho e de direitos. Considerando os direitos que foram sendo conquistados ao longo do século XX, não seria mais adequado talvez tratar esse fenômeno como uma contrarrevolução?
Nas nossas cabeças costumamos considerar a palavra “revolução” como algo positivo, algo que vai para frente. Não é o caso. Há sempre a quebra de uma ordem estabelecida. Isso ocorreu com a Revolução Soviética, com a Revolução Francesa e tentas outras. A ideia era quebrar com o sistema estabelecido e depois, pouco a pouco, as forças vão se juntando para criar algo novo. Hoje, a meu ver, as coisas estão indo muito rápido. Um professor meu, ao falar sobre desenvolvimento, se referia à transformação em um espaço-tempo muito rápido. Sempre dou como exemplo o lema de Kubitschek: cinquenta anos em cinco. Ou seja, você apressa o movimento. Isso traz, forçosamente, questionamentos sociais.
É isso que ocorre, na minha avaliação, com a “revolução digital”. Ela muda rapidamente o cenário, o que exige, por sua vez, uma mudança de foco para compreender o quadro novo que surge. Nós ainda não temos as ferramentas adequadas para analisar essas mudanças que estão acontecendo.
Quando ouvimos hoje relatos sobre a precarização que atinge quem trabalha com aplicativos como o Uber, não podemos refletir sobre eles a partir de categorias clássicas, como a da exploração de mais valia, de Marx, por exemplo? Parece que estamos diante, em escala mundial, de um aumento dessa exploração. Neste sentido, não seria exatamente um novo fenômeno, mas a radicalização de um processo já conhecido, só que com outra roupagem.
Para ser provocativo, eu diria: é e não é. Li um artigo na revista Courrier International que ouviu jovens da França que trabalhavam para o Uber. Eles disseram que, neste trabalho, era a primeira vez que eles tinham reconhecimento enquanto seres humanos, pois não eram discriminados por serem magrebinos ou por não possuir os códigos da vida em sociedade tal qual alguns pensam que ela deve ser. Para eles, o Uber era uma boia de salvação. A alternativa era o desemprego e cair no tráfico de drogas. Ou seja, é aquela velha história: não é tudo bom, nem é tudo ruim.
Eu considero o discurso sobre a responsabilidade social das empresas um engodo. Mas o Uber, para alguns, é ótimo, mas para outros não é. Há entregadores por bicicleta que vangloriam seu trabalho, dizendo que, para eles, também é um meio para fazer uma atividade esportiva. Eles perseguem desafios para ver quem consegue entregar o pedido no tempo mais curto, quem percorre determinada distância em tempo recorde e coisas assim. Então, tem a questão do reconhecimento operando aí. Ao mesmo tempo, como aparece muito claramente, há a questão da exploração.
Na apresentação que fez no simpósio sobre o futuro do trabalho, você trabalhou, entre outras coisas, com a ideia do surgimento de uma zona cinzenta relativa às novas relações de trabalho e emprego na sociedade, que está em ruptura com a ordem estabelecida. O movimento dos “gilet jaunes” na França pode ser considerado como uma expressão política e social dessa ideia de zona cinzenta?
Sim, você tem toda razão. É um movimento heterogêneo que questiona o Estado e a forma de organização, quase que autoritária, do governo francês. E fica claro que o governo atual não tem as ferramentas para lidar com esse fenômeno que foge completamente ao já estabelecido. O presidente achava que, após anunciar algumas medidas, o movimento iria baixar. Não baixou.
Há uma polêmica sobre a natureza desse movimento, se ele pode ser considerado como de esquerda ou de direita. Qual sua posição sobre isso?
Não tem como fazer essa classificação. Esse foi um pouco o discurso do governo que sustentou que se tratava de um movimento infiltrado tanto pela extrema-direita como pela extrema-esquerda, numa tentativa de afastar a população dessa mobilização, fazendo com que ela seja vista negativamente. Só que essa estratégia não colou. O movimento continua. Tivemos semana passada o vigésimo quinto ou vigésimo sexto sábado seguido de manifestações. Precisamos nos afastar de qualquer determinismo para avaliar esse fenômeno já que reina o indeterminismo. Temos que olhar para ele com outro foco.
Mas não há uma disputa envolvendo a esquerda e a direita pelo comando desse movimento?
Para ser sincero, não tenho informações detalhadas sobre isso, mas deve haver, sim. Há sempre um jogo de poder envolvido aí. Dentro do próprio movimento há divergências. Há aqueles que defenderam, por exemplo, que eles deveriam participar das eleições europeias do próximo dia 26 com uma lista própria. Outros acham que esse não é papel do movimento. Isso acontece em qualquer movimento. Há um jogo de atores e de disputa por poder. É aí que deve estar o nosso interesse para se entender a matéria social e o mundo no qual a gente vive.
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“Não temos as ferramentas adequadas para avaliar as mudanças que estão acontecendo”, diz sociólogo francês - Instituto Humanitas Unisinos - IHU