03 Mai 2019
"Cardonnel afirma que o desafio não era meramente mudar os titulares do poder. A natureza mesma do poder deveria ser mudada. Ele não poderia ser de dominação, mas de participação de todos. A luta de classes seria superada pela substituição das relações de opressão pelos envolvimentos de justiça e amizade mútua entre os homens", escreve Wellington Teodoro da Silva é professor do Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião da PUC Minas.
O dominicano Thomas Cardonnel teve uma rápida e incendiária passagem pelo Brasil no início dos anos 1960. Nos poucos meses que esteve por aqui, ajudou a cavar sulcos entre mentalidades atualizando o debate teológico. Preocupava-se, sobretudo, com o deísmo abstrato, distante da história. Propunha o Deus vivo, real, contra o deus símbolo, totêmico, expressão da cultura produzido pela mentalidade. O deus-símbolo é problema antropológico. Não é objeto da teologia. Jesus Cristo é um fato histórico. Portanto, não poderia ser reduzido a uma abstração formulada por princípios vagos. Ao cristão cumpria abraçar esse acontecimento-histórico-salvífico. O sentido profundo e transcendente da história do evento Jesus Cristo possui consequências incontornáveis para a vida toda do cristão, incluindo a política.
Compreendia que Deus destrói o princípio das separações e que a morte era o pecado por excelência do cristão. Por meio da ressurreição de Cristo todas as formas de morte deveriam ser vencidas: as muitas formas de escravidão entre os homens; os proletariados; os subproletariados; a prostituição; a submissão no luxo e na riqueza; os diversos tipos de colonialismo econômico e político e a servidão do homem a si mesmo, recusando a abolição dos seus próprios limites.
Ensinava que “Jesus Cristo é a tradução histórica do fundamento ontológico do universo”.[1] Ele não é mero parêntese de bondade que se manifesta para o humano. Constitui-se num conjunto de princípios ordenados da emancipação a se realizar. É fundamento da transformação radical que inicia na história ultrapassando-a no sentido do Absoluto. Deus e o humano afirmam-se mutuamente. Desse modo, negar o humano em sua dignidade e justiça é negar a Deus. Entretanto, o Criador não intervém na história magicamente para resolver todos os problemas. Ele acompanha a criação em sua história sem se impor ou responder nossas questões. Ele apenas segue junto ao seu povo.
A história torna-se ambiente onde Deus convida o humano a participar de sua divindade: “O infinito tornou-se zero, para que o zero se torne infinito.” Além de estar longe de abstrações, o cristianismo não é uma religião da sujeição, mas da salvação que principia na própria história. A fé cristã conduz para a salvação em todos os níveis, incluindo o político e o econômico.
Segundo Cardonnel:
No centro do Cristianismo não descobrimos a ligação a uma vaga ideia de Deus, mas a adesão a um acontecimento ou fato histórico: Deus se torna homem para que todos os homens possam se tornar Deus. (...) O cristianismo não é a contemplação de uma verdade intemporal, mas a história de um Deus que ensina a viver como homens para despertar nos homens o gosto de uma vida de deuses.[2]
No contexto da guerra fria, publica o texto “Deus não é mentiroso como certa paz social” onde combate o anticomunismo histérico, comum no meio católico. Afirma que o mal não residia privilegiadamente no Leste. Ao contrário de muitos que “localizavam geograficamente satã”, assegura que o mal poderia ser encontrado com todo o seu vigor no ocidente capitalista.
O capitalismo liberal reduz a pessoa na lógica atomizante do indivíduo. O comunismo, por seu lado, o sufoca num coletivismo indisfarçado. Por sua vez, o cristianismo recusa um e outro porque compreende que os homens são todos irmãos. Essa categoria supõe um criador – Pai – de toda a humanidade. Isso pode ser um problema. Hannah Arendt propõe que a ideia de Santo Agostinho de organizar a sociedade a partir da ideia de que ela é composta por irmãos é um complicador que fragiliza a política, torna-a rarefeita. A organização política da sociedade de maneira excelente deve ser feita por cidadãos.
Por seu lado, Cardonnel assevera que a condição de irmãos não exclui politicidade em seu sentido forte. A abertura ao transcendente não é fuga ou recusa da história pelo cristão que crê que num Deus histórico que fez opção por vive-la encarnando-se na condição humana. As categorias próprias da política – cidadania – é abraçada sem contradição pelo cristão. Cidadão e irmão não são espécies de centros geográficos onde apenas um pode existir. São realidades existências que podem coexistir sem contradição.
A política é vivida de maneira excelente pelo cristão que compreende que ela não é o seu fim último. A realidade última transcende, ultrapassa a história sem nega-la. Em sua politicidade o fiel vive todo o seu potencial criativo socialmente situado. Essa ação é ato salvífico vez que é meio para que todos possam construir condições justas de vida bem como a promoção da paz. Essa política não pode ser a do indivíduo liberal e tampouco o do coletivismo proletário, refém das grandes e impessoais forças históricas.
Cardonnel identifica e ataca aquilo que ele chama de “perigo idealista”. O cristianismo não é uma religião que contempla idealisticamente uma vaga ideia de Deus. Deus não tem uma opção vaga, sem consequências, pelo humano. A humanidade está inscrita no coração de Deus que leva as consequências de Seu amor aos atos concretos da encarnação de Jesus Cristo e sua morte na cruz. O idealismo é, portanto, um desvio da própria natureza do cristianismo.
Cremos que Deus se revela primeiro como um Libertador. Aquele que liberta de uma opressão concreta. Foi preciso que Israel esperasse muito tempo a época do exílio para que, à luz do Êxodo, os autores inspirados concentrassem sua reflexão sobre uma libertação mais maciça, mais radical, universal, cósmica. Deus nos liberta do nada, e o acontecimento central da história humana, a ressurreição de Cristo, cumpre o nosso destino de conjunto: a passagem do nada ao ser historicamente concretizada para os homens pela passagem da opressão à liberdade, em vista da passagem para todos e cada um, da morte à vida. Esta é a única Páscoa, aquela que devemos anunciar com todo o nosso ser, em palavras e atos. Quando nos criou, e também quando criou os espíritos puros, Deus não nos podia criar senão livres.[3]
Identifica a capacidade de engajamento da juventude brasileira por ocasião da passagem de Sartre no Brasil, em 1960. As repercussões dessa visita foram muito significativas porque, segundo o frade, “independente da metafísica ateia do filósofo francês, não se pode conceber seu pensamento sem um engajamento”.[4] A cultura fragmentada impunha (e segue impondo) a necessidade de a humanidade reunir-se na condição seres criados pelo mesmo Pai. É alto o risco de a vida perder sentido levando às espiritualidades substitutivas como o consumo.
As mudanças necessárias para o “florescimento” de todos deveria acontecer na superação das estruturas do capitalismo e do socialismo existentes naquele contexto de guerra fria.
Cardonnel afirma que o desafio não era meramente mudar os titulares do poder. A natureza mesma do poder deveria ser mudada. Ele não poderia ser de dominação, mas de participação de todos. A luta de classes seria superada pela substituição das relações de opressão pelos envolvimentos de justiça e amizade mútua entre os homens. Bem entendido, ele não negava aluta de classes dizendo que ela era uma construção do imaginário marxista. Ela existe e deve ser superada. No entanto, o marxismo tomou o ser humano muito tarde, após a criação, e o deixou muito cedo, antes da ressurreição. Ele trata apenas de um breve momento da grande epopeia humana.
A mudança da natureza do poder passaria de maneira incontornável pelo Estado. Essa empresa de natureza política revelou-se como a produção humana que mais realizou violência. Ele nunca foi capaz de gerar o bem comum em escala planetária com a mesma eficiência promoveu a guerra. O século XX foi o momento auge do Estado Nacional Moderno e, ao mesmo tempo e por causa dele, foi o período da planetarização das guerras; dos campos de extermínio; da bomba atômica; do arsenal nuclear com poder inimaginável de destruição.
É comum ver debates sobre a maior ou menor presença do Estado na economia, qual a dose ideal, como se o problema passasse pela “quantidade de Estado” e não à sua própria natureza. Como alternativa ao Estado liberal, distante das relações econômicas, violento contra os inimigos do capital e silencioso diante das injustiças do próprio capital, e ao Estado total de matriz soviética, coletivista que impunha sua visão de mundo e história para a sociedade, o catolicismo elaborou e apresentou o Estado de subsidiariedade, produzido pelos jesuítas do Círculo de Koenigswinter.
Divulgado por Pio XI, João XXIII e João Paulo II, esse é o princípio segundo o qual o Estado deve apoiar e nunca dominar sua população. Os mais frágeis deveriam receber proteção especial.
Em seus poucos meses no Brasil, Thomas Cardonnel ajudou a criar rupturas com um catolicismo avalista do poder em um país sem tradição de cidadania e democracia. Ajudou a organizar ideias da salvação a partir de Jesus Cristo como fato histórico concreto. Por causa de Cristo, também deveria ser concreta a mudança das estruturas e da natureza do poder.
ARENDT, Hannah, A condição humana. Rio de Janeiro: Forense universitária, 2003.
CARDONNEL, Frei Thomas; VAZ, Henrique e SOUZA, Herbet José. Cristianismo hoje. Rio de Janeiro: Editora Universitária, 1962.
[1] CARDONNEL em CARDONNEL; VAZ e SOUZA. 1962. p. 29.
[2] CARDONNEL em CARDONNEL; VAZ e SOUZA, 1962. p. 22.
[3] CARDONNEL em CARDONNEL; VAZ e SOUZA. 1962. p. 47.
[4] CARDONNEL em CARDONNEL, VAZ e SOUZA, 1962. p. 28.
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Frei Thomas Cardonnel: mudar a natureza do poder - Instituto Humanitas Unisinos - IHU