03 Março 2019
Estará nas mãos do episcopado brasileiro resgatar uma tradição profética recente ou optar por cair em um triunfalismo fundamentalista, alimentado por doses cavalares de formalismo litúrgico e distanciamento da vida concreta do povo, escreve Jorge Alexandre Alves, sociólogo, professor do IFRJ, participante do Movimento Fé e Política, em artigo publicado por ISER-Assessoria, 28-02-2019.
Eis o artigo.
O catolicismo brasileiro está diante de uma encruzilhada política. Nesse momento histórico complicado, se avizinham as eleições para CNBB, com rumores de mudança em seus estatutos. Estará nas mãos do episcopado brasileiro resgatar uma tradição profética recente, que fez da Conferência dos Bispos uma das instituições mais respeitadas do Brasil na defesa dos direitos humanos, e de grande credibilidade no dinamismo de suas ações – como a Campanha da Fraternidade. Ou optar por cair em um triunfalismo fundamentalista, alimentado por doses cavalares de formalismo litúrgico, distanciamento da vida concreta do povo, salpicada com generosas pitadas de pentecostalismo.
Neste último caso, estará a Igreja do Brasil jogando fora mais de cinquenta anos de vanguarda pastoral e protagonismo social, iniciados em 1952 por iniciativa do grande dom da Igreja Católica no Brasil, o arcebispo Hélder Câmara. Ao mesmo tempo, ela poderá se abraçar de vez com o que se tem de mais reacionário no catolicismo e na sociedade. Fascismo na política, moralismo nos costumes e um modelo de Igreja clerical e autorreferencial. Tudo isso em franca oposição ao magistério do Papa Francisco e da sua agenda social.
Entre o episcopado, há uma cautela excessiva na abordagem dos grandes temas nacionais. Quando confrontados por detratores, silenciam. No sigilo dos bastidores, muitos leigos pensam que falta ousadia e coragem. No clero, sobretudo dentre os mais jovens, não poucos conferem mais importância aos paramentos e vestes que ressaltem a sua condição clerical do que a animação pastoral e o serviço ao povo de Deus. Estes preferem ostentar sua condição de padre com batina e clergyman se escondendo do povo através dos formalismos e das normativas eclesiásticas. Coisas essas muito criticadas pelo Papa, totalmente avesso ao clericalismo e ao triunfalismo. Não é incomum que sacerdotes considerem a CNBB e suas iniciativas, especialmente a Campanha da Fraternidade, como coisas muito “políticas”…
Quem viu ou conviveu com bispos como Luciano Mendes de Almeida, Antônio Fragoso, Adriano Hypólito, Paulo Evaristo Arns, Tomás Balduíno, Waldyr Calheiros ou Aloísio Lorscheider, sente muita diferença. O profetismo pessoal destes e de muitos outros, que oferecia uma pronta resposta aos desafios que se impunham à Igreja e à sociedade, foi substituído por um “profetismo institucional”. Este, por sua vez, é muito precavido nos termos e nas expressões. Embora os pronunciamentos sejam acertados, estão sempre um passo atrás dos acontecimentos. A reação parece lenta demais em um mundo marcado pela comunicação digital permitida pela internet e pelas redes sociais. Claro que temos hoje bispos-profetas, como Dom Adriano Ciocca, Dom Joaquim Mol, Dom Evaristo Spengler, Dom Erwin Krautler ou Dom Antônio Carlos Cruz. Mas, no conjunto do episcopado atual, estes representam uma “minoria abraâmica”, para ficar nas palavras de Dom Hélder Câmara.
Do ponto de vista eclesial, a eleição na CNBB marcará também os rumos de uma Igreja no Brasil que parece vacilante diante do magistério de Francisco. Não se percebe aquele entusiasmo efusivo de outrora – e com outros pontífices – em relação aos ensinamentos e orientações vindas do Papa. Na verdade, há uma recepção morna às diretrizes vindas do Bispo de Roma. Inicialmente, verifica-se que os discursos e as falas oficiais são respeitosas, e sempre se faz referência à colegialidade episcopal, à obediência ao Bispo de Roma, ao caminhar “cum et sub Petro”. São poucos os grupos que criticam abertamente o Papa Francisco aqui no Brasil. No entanto, mudanças cotidianas são pouco sentidas e o modelo de formação presbiteral ainda é o mesmo de outros tempos. Os escândalos de abuso sexual em várias partes do mundo indicam que alguma coisa precisa ser feita nesse sentido. Da mesma forma, o perfil de parcela de boa parte do episcopado brasileiro está mais próximo de João Paulo II e Bento XVI do que de Francisco.
Dessa forma, os documentos papais, primorosos em sua crítica e proféticos em sua denúncia, trazem as sementes de um cristianismo mais sintonizado com as práticas de Jesus, e resgatam um caminho eclesial que foi abandonado por mais de trinta anos, cujo início se deu com João XXIII através do Concílio Vaticano II. No entanto, encontram pouco eco nas dioceses organizadas sob o modelo da grande paróquia católica. Fala-se até muito de Francisco, as emissoras católicas reproduzem suas missas, repercutem suas viagens, mas pouco se aprofunda o conteúdo de seus textos, suas pregações e suas homilias. Ao mesmo tempo, aqueles que mais reivindicam maior presença da mensagem de Francisco nos ambientes católicos são exatamente os que hoje são atacados por muitos de seus irmãos na fé. São chamados de hereges, de vergonha da Igreja, de anticristãos, de falsos católicos e de comunistas. Os comentários feitos nas postagens dos encontros e assembleias da Pastoral da Juventude no Facebook são um triste exemplo disso.
De toda a forma, à frente da barca de Pedro está um Pontífice que dá sinais expressivos a respeito da direção que a Igreja deve tomar. Sua agenda social se resume nos três “T’s”: Terra, teto e trabalho. Bergoglio canonizou Dom Oscar Romero e recentemente substituiu um cardeal arquiconservador por um padre perseguido por este mesmo bispo e que foi aluno de Gustavo Gutierrez, um dos mentores da Teologia da Libertação. Recentemente, o Papa mandou retirar a suspensão “ad divinis” do poeta e padre nicaraguense Ernesto Cardenal, também muito identificado com a Teologia Latinoamericana.
O Sínodo da Família sinalizou uma abertura pastoral aos recasados. O Sínodo sobre os jovens reforçou o protagonismo juvenil. Em sua última exortação sobre a santidade, Gaudete et Exsultate, o papa insiste em um modelo de santidade que se solidariza com a dor dos outros. Ao mesmo tempo, rejeita certa presunção de santidade baseada no sentir-se “superior aos outros por cumprir determinadas normas” ou por ser fiel “a um certo estilo católico” (n. 49). Também rejeita certa visão de santidade baseada na “obsessão pela lei” e na “ostentação no cuidado da liturgia, da doutrina e do prestígio da Igreja (n. 59).
Na semana passada, Francisco promoveu um encontro com 114 bispos presidentes de conferências episcopais para discutir o abuso sexual na Igreja. A magnitude desse encontro o torna sem precedentes na história da Igreja, fazendo desse momento uma espécie de “pré-conclave” ou de “mini-concílio”, nas palavras do historiador italiano Alberto Melloni. O Bispo de Roma foi duplamente destemido: por “tocar o dedo na ferida” de forma objetiva, transparente e sem subterfúgios; e porque, em nome da justiça, arriscou um grande debate público a partir do qual poderia surgir uma oposição mais direta a seu pontificado, capaz de influir em sua própria sucessão.
Consequentemente, não podemos desconectar o magistério papal da realidade eclesial brasileira. Ventos contrários as mudanças propostas por um papa que “veio do fim do mundo” ecoam aqui também. Muitos não se conformam com seu espírito de abertura e com a sua eclesiologia. Dentro e fora da Igreja também, porque o Papa é um crítico severo do livre-mercado, da exploração dos trabalhadores e da situação dos migrantes. Francisco hoje talvez seja o único líder em escala mundial que pode ser chamado de estadista. E isso incomoda muita gente.
No Brasil, não é diferente. Talvez seja essa uma explicação parcial sobre a sensação de “empurrar com a barriga” muitas vezes sentida em relação às diretrizes do Bispo de Roma em nosso país. Claro que ninguém admite isso, mas em muitos lugares, se não fosse pela menção na Oração Eucarística, um desavisado nem saberia o nome do atual Vigário de Cristo. O Papa pede um novo modelo de Igreja, de leigo, de padre, de bispo e de ação pastoral. Isso causa desconfortos e constrangimentos para quem entende que a Igreja ideal para o século XXI é aquela proposta pelo Concílio de Trento, quinhentos anos atrás.
Fora dos muros eclesiais, Francisco hoje causa arrepios nos serviços de inteligência do atual governo. Um dos generais responsáveis pelos arapongas admitiu publicamente que padres, bispos e agentes de pastoral estão sob vigilância, espionados pela Abin por causa do Sínodo da Amazônia. Sem desconsiderar a preocupação em relação as críticas que podem ser feitas na reunião de outubro próximo à atual gestão, desgastando ainda mais a imagem já corroída do país, o governo atirou no Sínodo para acertar na eleição da CNBB. Por isso, sua importância.
Se levarmos em consideração os apoios (explícitos e velados) que parte da hierarquia católica manifestou nas eleições passadas, seria um enorme alívio para Bolsonaro e seus aliados que um “amigo” ocupasse a presidência da conferência episcopal. E as redes sociais, os fatos ocorridos ao longo da campanha e as informações de bastidores são reveladoras sobre quem são os “parceiros católicos” do presidente da República. É aqui que reside a encruzilhada de poder que envolve o episcopado brasileiro. É muito difícil que haja um prelado que seja, ao mesmo tempo, alinhado com a eclesiologia de Francisco e afinado com as ideias bolsonaristas. Logo, um aliado do governo federal na presidência da CNBB certamente seria alguém que, no mínimo, se sente desconfortável com as orientações e com o modelo de Igreja que o Papa propõe.
É claro que, se nefasta possibilidade ocorresse não seria uma oposição frontal, aberta e pública. Nas falas públicas, o que seria visto são o apelo à unidade da Igreja e à solicitude para com o Pontífice Romano. Portanto, é necessária sensibilidade no olhar para perceber as nuances presentes nos jogos de poder da política eclesiástica. Olhar o cenário internacional da Igreja e os movimentos realizados no Brasil podem nos indicar quem seria o “amigo” do Planalto.
Indícios já existem. Há algum tempo, o cardeal Burke – o principal opositor do Papa – esteve em algumas cidades brasileiras, duas delas tem algo comum: o mesmo bispo esteve ou está nelas. Outro indício se apresentou nesse início de ano. Dizem em alguns salões paroquiais que uma grande diocese brasileira realizará um evento (ou este ocorrerá em seu território) em abril com o Cardeal Gerhard Müller, que recentemente publicou um “manifesto da fé”. Na verdade, foi uma forma rebuscada de fazer críticas contundentes ao magistério de Francisco. Se os rumores forem confirmados, teremos outro opositor do Papa em uma grande cidade do país há poucos dias da assembleia-geral dos bispos que possivelmente definirá novos estatutos e que escolherá um novo presidente, secretário-geral (ou serão secretários?) e comissões episcopais. Talvez a oposição ao Bispo de Roma fique evidente demais para o titular dessa diocese a ponto dele ser o anfitrião do evento. Mas ele pode ser ou chancelado por um preposto ou promovido pelos mesmo grupos que “realizaram” a turnê brasileira de Raymond Burke há alguns anos.
Enfim, haverá chance para um aliado do planalto ocupar a presidência da conferência dos bispos? As citações eclesiásticas feitas pelo ex-governador do Rio de Janeiro terão efeito sobre a assembleia da CNBB em abril? Em breve teremos as respostas.
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A encruzilhada do catolicismo brasileiro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU