26 Abril 2019
"Mais do que reduzir todo o mal do mundo à ausência de Deus, não seria mais útil perguntar-se que imagem de Deus tinham os abusadores, dado que a utilizavam para silenciar sua consciência após a realização daqueles que Bento XVI chamou de 'atos pecaminosos e criminosos'"?
A pergunta é de Andrea Lebra, em artigo publicado por Settimana News, 25-04-2019. A tradução é de Luisa Rabolini.
Para ser de um teólogo da envergadura de Joseph Ratzinger, o texto sobre os abusos sexuais perpetrado na Igreja contra pessoas não apenas menores parece-me pecar, pelo menos, por uma inadequação desconcertante. Surge até mesmo a dúvida de que as "notas" do Papa Bento XVI sejam autênticas, se comparadas com o conteúdo e o estilo de sua "carta pastoral", escrita em 19 de março de 2010 aos católicos da Irlanda.
Em primeiro lugar, parece possível que o documento - dividido em três partes – tenha sido escrito não depois, mas antes do encontro sobre a proteção de menores na Igreja realizada no Vaticano, de 21 a 24 de fevereiro de 2019.
Na parte introdutória, afirma-se, de fato, que as notas foram reunidas "no lapso de tempo que vai do anúncio do encontro dos presidentes das conferências episcopais ao seu verdadeiro início", com o objetivo declarado de "fornecer algumas indicações que poderiam ser de ajuda neste momento difícil", contribuindo para" tornar a Igreja credível novamente como luz do povo e como uma força que ajuda na luta contra os poderes destruidores".
Se for esse o caso, por que o documento, apesar de ter sido escrito antes de 21 de fevereiro, não foi levado em consideração durante os trabalhos do mencionada encontro e foi publicado seis semanas após sua conclusão em uma revista alemã “depois de contatos com o secretário de Estado, cardeal Pietro Parolin, e com o próprio santo padre”? Talvez porque tenha sido considerado, devido ao tom catastrófico que o caracteriza, de pouca relevância para propiciar, em nome da "concretude" e no contexto de uma discussão "sinodal, sincera e aprofundada", medidas efetivas que possam enfrenar com parrésia e coragem. um mal que deve ser transformado "em uma oportunidade de conscientização e purificação" da Igreja?
O texto criminaliza a revolução sexual de 1968 em termos drásticos. A ela seriam imputáveis filmes e manifestos publicitários pornográficos, excessos no modo de vestir que provocam agressividade e violência, liberdade sexual que não tolera mais nenhuma norma, demissão do estado clerical, colapso das vocações sacerdotais, colapso espiritual, colapso da moral católica, dissolução da autoridade doutrinária da Igreja em matéria moral ... Aliás, teria sido precisamente a "revolução de 1968" a considerar como "permitida e conveniente" a pedofilia (I, § 1).
Que a Igreja nunca tenha acertado suas contas com a revolução sexual, especialmente aquela masculina, ligada ao movimento de 1968, favorecendo assim numerosos bolsões de perversão, é amplamente conhecido. Mas não é justamente graças a essa revolução que as vítimas tiveram a coragem de denunciar os abusos?
Não é também graças a essa revolução que, no plano cultural e social, se formou uma concepção da sexualidade, concebida, em homenagem aos princípios da igualdade e da dignidade, como manifestação da liberdade da pessoa contra qualquer possível condicionamento ou abuso?
Não é graças a essa revolução que todos os crimes de natureza sexual foram considerados um crime contra a pessoa e não mais contra a moral?
Joseph Ratzinger identifica na década de 1960 o início do fenômeno dos abusos e afirma que a questão só se tornou problemática na segunda metade dos anos 1980 (II, § 2).
Afirmações que parecem ser negadas por todos os estudos científicos disponíveis em várias línguas e em todo o mundo.
Como pode um estudioso como ele ignorar que o fenômeno dos "estupradores de crianças", embora sistematicamente escondido, esteve presente ao longo de toda a história da Igreja, tendo-se ocupado dele em várias ocasiões Concílios e Sínodos, como Elvira (305), Ancira (314), Lateranense IV (1215), Trento (1563)?
O texto Crimen sollicitationis publicado em 1962 pelo ex-Santo Ofício, que se refere à prática de sollicitatio a turpia, não retoma talvez um texto de 1922, que por sua vez se refere à constituição Sacramentum poenitentiae do Papa Bento XIV do 1º. de junho de 1741?
Investigações judiciais competentes talvez não apontaram que milhares de abusos ocorreram na década de 1950 para continuar até os anos 2000?
Portanto, não seria mais correto afirmar que somente em nossos dias se começa, por um lado, a superar o véu do silêncio que reinou durante séculos em torno de tudo que diz respeito à sexualidade dos clérigos e dos religiosos e, pelo outro, a fechar a era do acobertamento e da proteção sistemática da casta clerical?
No longo artigo escrito por quem, como Bento XVI, foi entre os primeiros a receber e dialogar com numerosas vítimas, associando a elas os conceitos de "pecado e crime", é decididamente estranho que falte qualquer referência a elas.
Apenas uma vez aparece o termo "vítima" (III § 2), no contexto do episódio blasfemo, além de licencioso, da jovem que ajuda no altar e é abusada pelo celebrante, geralmente acompanhando o abuso com as palavras da consagração "este é o meu corpo que é dado por vós".
Como é possível que o papa emérito não tenha considerado obrigatório, como ele havia feito no ponto n. 6 da "carta pastoral" aos católicos da Irlanda, dedicar às vítimas desses "atos pecaminosos e criminosos" mesmo que uma única palavra para pedir-lhes perdão pela confiança traída e pela violação da dignidade?
A partir dos 15 anos, tive relações sexuais com um padre. Isso durou por 13 anos. Eu fiquei grávida três vezes e ele me obrigou a abortar três vezes, simplesmente porque ele não queria usar preservativos ou métodos contraceptivos. No começo eu confiava tanto nele que não sabia que ele poderia abusar de mim. Eu tinha medo dele e toda vez que me recusava a fazer sexo com ele, me batia. E como eu era completamente dependente dele economicamente, sofri todas as humilhações que ele me infligia. Tínhamos essas relações tanto na sua casa, na aldeia, como no centro de acolhimento diocesano. Nessa relação eu não tinha o direito de ter "namorados"; toda vez que eu tinha um e ele ficava sabendo, ele me batia. Era a condição para que me ajudasse economicamente ... Ele me dava tudo o que eu queria, quando eu aceitava ter relações sexuais; caso contrário ele me batia (Testemunho apresentado em 21 de fevereiro de 2019, durante o encontro "A proteção de menores na Igreja", por uma mulher vítima de abuso).
Outra anomalia: o documento não só não faz referência ao encobrimento dos abusos pela autoridade eclesiástica (denúncia presente na carta pastoral aos católicos da Irlanda), mas teoriza que a condenação dos abusos teria sido dificultada devido ao "assim chamado garantismo” de origem "conciliar" (II § 2) destinado a salvaguardar prioritariamente os direitos dos acusados.
Parece ficar subentendido que seria culpa do Concílio Vaticano II se quem cometeu crimes de tal gravidade não tenha sido processado conforme exigido pela lei penal e pelo direito canônico.
A condenação dos abusos foi dificultada por esse tipo de "garantismo", ou teria sido pelos acobertamentos sistemáticos, de parte das autoridades eclesiásticas competentes, dos autores dos crimes justificadas por uma certa concepção do caráter ontológico do sacramento do ministério ordenado que, de fato, não tolera que tais pecados sejam imputados àqueles que o receberam?
Como Joseph Ratzinger pode ignorar o que - corretamente - o Papa Francisco está continuamente repetindo, ou seja, que “é difícil entender o fenômeno dos abusos sexuais contra menores sem a consideração do poder, já que eles são sempre consequência do abuso de poder, da exploração de uma posição de inferioridade do abusado indefeso que permite a manipulação de sua consciência e de sua fragilidade psicológica e física"?
Para um católico, o mais difícil é conseguir falar sobre abuso sexual; mas uma vez que tenha tomado coragem e comece a contar - no nosso caso, estou falando de mim - a primeira coisa que pensei foi: vou contar tudo à Santa Madre Igreja, onde me ouvirão e me respeitarão. A primeira coisa que fizeram foi me tratar como mentiroso, virar as costas e dizer que eu, e outros, éramos inimigos da Igreja. Esse é um esquema que não existe apenas no Chile: existe em todo o mundo, e isso deve terminar (Testemunho apresentado por um homem vítima de abusos em 21 de fevereiro de 2019, durante o encontro "A proteção dos menores na Igreja").
O documento afirma que o motivo dos abusos na Igreja "reside, em última instância, na ausência de Deus", da qual até cristãos e presbíteros prefeririam não falar hoje, por se tratar – isso – de um discurso que pareceria não ter utilidade prática (III, § 1).
Além disso, acrescenta-se que a própria pedofilia seria considerada "inteiramente correta" pela sociedade ocidental "na qual Deus na esfera pública está ausente e para a qual ele não tem mais nada a dizer", “e no qual, precisamente por esse motivo, perde-se cada vez mais o critério e a medida do humano" (III § 1).
Essa é uma análise muito severa que pode ser usada para explicar o mistério do mal absoluto, mas não é suficiente para explicar a dimensão que na Igreja atingiu o fenômeno dos abusos sexuais por parte dos "ministros de Deus".
Como é possível que a análise de Joseph Ratzinger ignore completamente o diagnóstico corajoso, pacato e compartilhável das causas dos abusos cometidos por sacerdotes e religiosos encontrado no ponto n. 4 da "carta pastoral" escrita pelo Papa emérito Bento XVI aos católicos da Irlanda? Onde, entre os fatores que contribuíram para tragicamente devastar "as vidas das vítimas e de suas famílias" e para obscurecer "a luz do Evangelho a um ponto tal que nem mesmo haviam chegado chegou séculos de perseguição", Bento XVI enumera não apenas "procedimentos inadequados para determinar a idoneidade dos candidatos ao sacerdócio e à vida religiosa" ou "a insuficiente formação humana, moral, intelectual e espiritual nos seminários e nos noviciados", mas também "uma tendência na sociedade para favorecer o clero e outras figuras de autoridade e uma preocupação equivocada pelo bom nome da Igreja e para evitar os escândalos, que resultaram na não aplicação das penalidades canônicas em vigor e na falha em proteger a dignidade de cada pessoa”.
Mais do que reduzir todo o mal do mundo à ausência de Deus, não seria mais útil perguntar-se que imagem de Deus tinham os abusadores, dado que a utilizavam para silenciar sua consciência após a realização daqueles que Bento XVI chamou de "atos pecaminosos e criminosos"?
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"Artigo Ratzinger": a reação de um leigo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU