08 Janeiro 2019
No artigo a seguir Eduardo Gudynas faz um balanço de 2018 e também uma reflexão sobre a situação continental e mundial, em parte recordando a teoria crítica de Frankfurt. Gudynas é analista no Centro Latino Americano de Ecologia Social (CLAES), de Montevidéu.
O texto foi publicado por www.ambiental.net, 26-12-2018, e enviado para o IHU pelo autor. A tradução é de Graziela Wolfart.
Há circunstâncias nas quais parece que a esperança some e ficamos presos em uma estagnação onde “tudo o que vive está sob condenação”. Essa foi a dura advertência que há mais de meio século escreveram Max Horkheimer e Theodor Adorno nas últimas linhas de sua “Dialética do Iluminismo” (1). No contexto da segunda guerra mundial e da revelação do holocausto, os dois filósofos alertaram que essa humanidade que abraçou a ciência e a razão, ao contrário de suas aspirações, caminhava até a barbárie e a destruição.
Os aspectos centrais dessa questão persistem na atualidade e merecem ser analisados ao finalizar o ano de 2018. Somos testemunhas de uma crise social e ambiental em todas as escalas, desde a planetária, passando à continental e chegando em cada país. A pobreza está de volta em cada esquina, e pode ser vista claramente nas grandes cidades (2). Estamos atravessados por uma fratura cultural que faz com que aqueles que vivem de um lado muitas vezes não possam compreender o castelhano dos que estão do outro lado. Comemos alimentos cheios de química, bebemos águas muitas vezes contaminadas, e respiramos um ar tóxico.
Estamos imersos em um mar de impactos, uns pequenos outros maiores, mas quase todos persistentes e repetidos. A situação é tão dramática que parece que os que hoje são os mais jovens podem perder anos de esperança de vida devido à contaminação (3). A riqueza ecológica latino-americana desaparece diante de nossos olhos; calcula-se uma perda aproximada de 89% nas populações de espécies na América Latina nas últimas cinco décadas, o que é o pior registro para todo o planeta (4).
Nas comunidades campesinas e indígenas estas degradações são particularmente dolorosas, já que elas estão localizadas no centro da articulação entre a sociedade e a natureza, e sofrem simultaneamente com todos esses problemas.
Nenhuma destas questões são desconhecidas. Tudo foi analisado, medido, experimentado, contabilizado e descrito. Sabemos disso. Está explicado em castelhano, inglês e muitos outros idiomas; em milhares de artigos, livros e vídeos. Cada semana se somam novos relatórios que reafirmam a gravidade da situação social e ambiental. Mas toda essa acumulação de informação científica e os alertas das organizações civis que se especializam nesses temas, continuam sendo insuficientes ou incapazes para uma mudança substantiva nos caminhos de nossa civilização. É difícil sustentar a esperança sob estas circunstâncias.
O congelamento da esperança, na análise de Horkheimer e Adorno, estava enquadrado na estupidez. Recordemos que essa palavra alude, em castelhano, a uma “estupidez notável” em compreender as coisas, e isto é justamente o que acontece. Apesar de ter toda a evidência em mãos sobre as severíssimas consequências do que está acontecendo, os governos, as empresas e boa parte da sociedade parecem não compreender, como se não temessem o que os rodeia, e persistem em manter estilos de vida que reproduzem a deterioração.
Este componente da estupidez já não pode ser negado graças aos delírios que observamos com Donald Trump nos Estados Unidos, dizendo entre outras coisas que a mudança climática não existe ou que é uma invenção dos chineses. Isso continua mais evidente nas declarações de Jair Bolsonaro e membros de sua equipe no Brasil. Mas sendo sinceros, já temos outros exemplos dessas tolices em praticamente todos os países, onde sempre é possível encontrar declarações infelizes de presidentes, ministros, empresários ou acadêmicos que desnudam sua ignorância sobre os problemas ambientais ou a crise social. Neles se mistura a estupidez com a ignorância, mas tampouco é raro que a mentira que busca alguma vantagem seja disfarçada de tolice. De um modo ou outro, a estupidez já não se dissimula.
Navegamos na estranha condição onde são milhões os que se divertem em ver quem é mais estúpido, se os Trumps ou os Bolsonaros em cada um de nossos países. Enquanto isso a crise avança, sem pausa. Denunciamos ou festejamos o estúpido, mas com ele ficamos imóveis e em alguma medida nós também fazemos o papel de bobo. Por mais que se coloquem os vídeos das besteiras no Facebook ou se encaminhem aos amigos no WhatsApp, nada disso garante solucionar os problemas, nem está servindo para evitar votar em outro estúpido na próxima eleição.
Sob essa imobilidade, os problemas sociais e ambientais continuam acumulando. Diferente das avaliações econômicas, o início do próximo ano não implica reiniciar do zero os indicadores ou a contabilidade, mas, por exemplo, o desmatamento deste ano se soma ao dos anos passados, os atrasos educativos são agregados entre si, e desta maneira, cada impacto social ou ambiental se acumula sobre os anteriores. Como são tantos e sua acumulação já se aproxima a dois séculos, a atual discussão científica agora aponta para a possibilidade de um colapso ecológico em escala planetária em um futuro próximo (5). Se justificam então as falas de Horkheimer e Adorno de que tanta estupidez termina em condenar a tudo o que está vivo.
É evidente que o vizinho da esquina não tem que ser um especialista em políticas sociais, nem a vizinha da próxima quadra ser expert em conservação da biodiversidade. Todos eles de uma ou outra maneira esperam, e em muitos casos confiam, que exista uma liderança política para enfrentar estes temas. Nesse esquema ideal são os políticos, como legisladores ou ministros, que devem promover mudanças nas políticas e na gestão, articular-se com os saberes de acadêmicos e atuar sobre o mundo empresarial. Devemos aceitar que essa estrutura não funciona por muitos e diversos fatores, sem deixar de reconhecer que há uma derrota da política em vários países (ainda que de tipo diferente, possivelmente os casos mais extremos ao finalizar 2018 se encontrem sobretudo na Nicarágua e na Venezuela).
A estupidez em entender a problemática socioambiental assola não só os políticos profissionais como também boa parte do empresariado e inclusive a academia. Estamos diante de uma estupidez sistêmica, já que ao estar tão disseminada termina arrastando quase todos. Inclusive quem aparenta ser inteligente e sagaz pode terminar em conflitos políticos que levam a resoluções erradas na gestão governamental, como alertava Rick Lewis, editor da revista “Filosofia Agora” (6). Inclusive onde realmente prevalecem os tolos, serão aproveitados para que sobre eles se enfoque a atenção, enquanto que os que não têm nada de estúpidos controlam a economia e a política escondidos nas penumbras.
A estupidez contribuiu ao giro que converteu a razão em uma antirrazão, para seguir com a lógica de Horkheimer e Adorno, e que em seus tempos descreviam como uma luta no alto pelo poder fascista enquanto que o resto devia se adaptar a qualquer custo à injustiça para sobreviver. Se poderá argumentar que aquele diagnóstico da dupla de filósofos era adequado para um mundo imerso em uma guerra mundial, mas não seria de todo aplicável à atualidade. Mas vale a pena se perguntar se aquele contexto é realmente muito diferente do que aconteceu neste jovem século XXI.
A paralisia da estupidez sistêmica atual também combina com outro significado da palavra “estúpido”, um pouco mais antigo, e que invoca o ficar aturdido, paralisado. 2018 é encerrado em um atordoamento generalizado em múltiplos campos e temas; o último deles ocorreu com o encontro governamental de mudança climática, onde não se conseguiu nenhum acordo concreto e efetivo, e ao contrário, se repetiu todo tipo de bobagens.
Sem dúvida há muitas resistências e conflitos, e eles têm uma enorme importância em salvaguardar comunidades ou naturezas. São, além disso, exemplos de alternativas possíveis. Mas apesar deles, neste ano como nos anteriores, a situação se agravou um pouco mais. Se somam às circunstâncias das quais já não é possível um retorno, como ocorre com o assassinato de jovens em bairros populares, o mercúrio acumulado no corpo das crianças amazônicas, ou a extinção de uma espécie em uma selva tropical. Não existe reparação, compensação ou remediação possível para a morte, seja a da natureza como a dos humanos, não podem ser separadas uma da outra. Quando morre a Natureza também morre parte de nossa essência como humanos. Estamos tão aturdidos ou somos tão tolos que não nos damos conta disso. É tempo de reagir.
1. Dialética do iluminismo, M. Horkheimer y T.W. Adorno, Sudamericana, Buenos Aires, (1944) 1987.
2. A pobreza em número absoluto de latino-americanos vem crescendo desde um mínimo recente em 2014, com 168 milhões de pessoas, a 187 milhões em 2017; em porcentagem da população passou de 28,5% a 30,7% no mesmo período; Panorama Social da América Latina 2017, CEPAL, Santiago.
3. Air pollution reduces global life expectancy by nearly two years, 20 de novembro de 2018, Phys.org,
4. Calculado para 1040 populações de 689 espécies (mamíferos, aves, anfíbios, repteis e peixes); é o pior indicador em todo o mundo; Living planet report 2018: aiming higher, Zoological Society London y WWF, Gland.
5. Por exemplo Trajectories of the Earth system in the Anthropocene, W. Steffen e colab., Proceedings National Academy Sciences 115 (33): 8252-8259.
6. The world’s biggest problem is stupidity, R. Lewis, Telegraph, 15 de dezembro de 2011,
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A estupidez social e ambiental condena toda a vida. Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU