04 Agosto 2018
Para esse reconhecido acadêmico é hora de os países latino-americanos fazerem uma transição no uso de recursos naturais. Afirma que é chave mudar nossa relação com o meio em torno.
A reportagem é de Sergio Silva Numa, publicada por El Espectador, em 21-05-2018. A tradução é de Wagner Fernandes de Azevedo.
Eduardo Gudynas é uruguaio. Tem quase 60 anos e boa parte da sua vida se dedicou a analisar os conflitos ambientais na América Latina e os benefícios ou impactos dos chamados extrativismos. Sua produção acadêmica é abundante e com frequência é convidado a diversas universidades. Esteve, para nomear duas, na Universidade de Carolina do Norte e é professor do Global Justice & Environment, em Oslo. Também é diretor do Centro Latino-americano de Ecologia Social (Claes).
Eduardo Gudynas. Foto: Jonathan Camargo | IHU
Há um par de semanas esteve de visita à Colômbia. Primeiro visitou Cauca, onde conheceu experiências de defesa do território dos indígenas nasas e de várias comunidades negras. Depois deu palestras em Bogotá, na Universidad Javeriana e na Universidad Nacional. Antes de sair da capital, ele conversou com El Espectador sobre seus estudos e suas posturas frente ao novo cenário latino-americano.
Parte dos seus estudos se centraram na análise do extrativismo na América Latina. Poderia nos explicar esse conceito?
São apropriações de grandes volumes de recursos naturais para exportar. Se bem estão associados à mineraria, aos hidrocarbonetos e aos monocultivos de exportação. Nem todas as formas de mineração ou agricultura são extrativismos. O extrativismo implica um salto de enorme magnitude na apropriação dos recursos naturais. Se avaliar a balança física do comércio exterior da Colômbia em toneladas de matérias-primas, é o segundo maior déficit comercial ecológico da América Latina, depois do Brasil.
A que se deve?
A que Colômbia exporta muito mais toneladas de minerais, hidrocarbonetos e agroalimentos que as toneladas de insumos ou de bens manufaturados que importa. O déficit maior está no Brasil.
Há algum extrativismo que gere inquietude especial?
Todos geram graves problemas ambientais e sociais. Porém dessa vez estão atados à globalização. O preço dos mercados internacionais, a disponibilidade de investimento ou a demanda são os que determinam se extraem mais ouro ou mais hidrocarbonetos ou se há um boom do café. Isso faz a economia nacional muito dependente.
Desde a época colonial as economias da América Latina estão fortemente atadas à extração de minerais. Ainda que hoje já não joguem esse rol fundamental, muitos países continuam explorando com intensidade. Por que nos ficou tão difícil superar essa dependência?
Quando analiso o que exportam os países latino-americanos, há um primeiro grupo que são os hiperextrativistas. São Venezuela, Equador e Bolívia, onde aproximadamente 90% das suas exportações são recursos naturais, porém mais da metade estão concentrados em um só produto. Isso deprime muito a indústria nacional e a jogam num rol muito subordinado na economia global. Abaixo desses países está a Colômbia, onde aproximadamente 80% das suas exportações são recursos naturais. Ademais, há indícios do que se chama doença holandesa: para mais extrativismos, mais se deprime a indústria nacional.
Porém esse é um conceito polêmico. Para alguns, depois do “boom” das matérias primas houve indícios da doença holandesa. Para outros não. E você, o que opina?
Possivelmente as duas visões tenham alguma razão porque nos países sul-americanos onde estudaram não se reproduz exatamente o que aconteceu na Holanda. Por isso, por exemplo, no Peru os economistas que o estudaram o chamam “doença chola”. Tudo indica que Colômbia tem sua própria variedade de enfermidade. Tem sua própria gripe de extrativismos.
Algum país da região conseguiu superar essa dependência?
Não. Um dos casos mais notáveis é que o Brasil, por exemplo, é o maior país minerador da América Latina. Exporta o triplo que os demais países sul-americanos mineradores juntos. Se a isso se somam a soja e o petróleo, se converte no país mais extrativista da região. O efeito paradoxal, que as vezes é contra intuitivo para o público, é que no Brasil a participação da indústria baixou, e aumentou a exportação de minerais e os monocultivos. Os extrativismos são como um vício.
Por quê?
Uma vez que um país entra numa estratégia de desenvolvimento com um componente forte de extrativismo, tende a avançar mais nesse caminho, e isso deprime sua indústria e outros setores da economia; tem problemas com a taxa de câmbio, com sua moeda nacional e ademais, se endivida. Isso o obrigada a planejar o próximo projeto extrativista para conseguir dinheiro fácil. E isso entorpece a busca de alternativas.
Esses vícios, talvez, se podem ver refletidos nos governos do socialismo do século XXI, que prometeram transformar essa dependência, porém é claro que não alcançaram superá-la. Tanto os mandatários de esquerda como os de direita intensificaram a exploração. Hoje o cenário político está mudando em todos os países. Acredita que agora é mais ou menos viável uma transição para superar o modelo de extração?
Não. De fato, como disse, um aspecto chamativo na análise comparada é que tanto os governos conservadores como os progressistas foram extrativistas. De diferente maneira, mas repetiram o mesmo uso intensivo de recursos naturais. Ninguém quebrou esse padrão de basear-se na exploração da natureza.
Em poucas palavras, é difícil alcançar uma transição.
Não. Essa é outra questão. Em paralelo, há uma mudança muito importante em todos os países. Há novos grupos locais e organizações que denunciam esses impactos. Há uma mudança de atitude na opinião pública contra essa estratégia. Segundo, há um renascimento da crítica independente a partir da sociedade civil e da academia ao que fazem os governos. Então há uma reconstrução do debate sobe o desenvolvimento. Terceiro, temos problemas ambientais globais muito sérios. E quarto, vários desses recursos naturais estão se esgotando. Então, eu te diria que as transições da saída dos extrativismos são urgentes pelo impacto ambiental e social dentro dos países; necessárias para abordar as transformações ambientais globais; indispensáveis porque não pode haver povo que siga sofrendo, e, ademais, são do sentido comum, porque as economias não podem seguir dependendo da decisão dos preços dos materiais no Norte. Temos que nos preparar para a próxima crise de preço de matérias-primas.
Porém uma transição muito difícil agora que estão subindo os preços das matérias-primas...
Sim. As transições pós-extrativistas planejam diferentes cenários. No caso dos hidrocarbonetos, o debate é como utilizar as reservas enquanto reconverto as fontes de energia nacionais. No caso da mineração se planeja se é necessário tirar o recurso minerador e quais são seus efeitos sociais e ambientais, Então, há recursos vinculados ao setor, como pode ser ferro e derivados, ou alumínio e derivados, que podem seguir sendo necessários para o consumo interno sob outros padrões de consumo. Porém há um terceiro item cujo exemplo é o ouro. Está claro que não tem muito sentido seguir extraindo ouro porque no mercado internacional somente uns 10% tem usos industriais. Portanto, essa velha crítica de que se necessita ser extrativista minerador, porque senão não há metais e a civilização colapsa, não se aplica para o caso do ouro. Dos 10% que se usa na indústria, mais da metade se recicla e se reutiliza. Países como a Colômbia ficam com um enorme impacto social e ambiental para um destino que é global e essencialmente de dois tipos de uso: a metade vai à joalheria, especialmente à China, Índia e Arábia Saudita, e a outra metade vaia moedas e lingotes na especulação financeira.
No caso da Colômbia, várias comunidades responderam a essa tradição por meio de consultas populares. Como analisa essas manifestações?
Estou sempre a favor e celebro os processos de consulta e democratização na tomada de decisões sobre os recursos naturais. Isso implica melhores vias de informações para as comunidades, maior participação da academia ao explicar diferentes pontos de vista, diferentes vias de uso nos recursos naturais e o respeito e acompanhamento da classe política.
Há pouco nomearam a Amazônia colombiana como sujeito de direitos. Como avalia essa decisão?
Li cuidadosamente a resolução da Corte Constitucional. Tem aspectos positivos: o primeiro é que reconhece a Amazônia como sujeito de direitos. O segundo é que ordena as autoridades fazer planos para deter o desmatamento na forma imediata. Observo essa decisão com inveja porque não ocorreram em outros países.
Há outros aspectos chamativos. Por exemplo, a quase ausência do diálogo com o reconhecimento de direitos da natureza nos países vizinhos. É como se a jurisprudência ambiental colombiana não dialogara com o resto do que se sucede na América Latina.
Outro ponto é que teria sido mais potente se a Corte também dialogasse com as cosmovisões dos povos amazônicos. Agora, creio que o direito do futuro vai reconhecer a natureza como sujeito. O que vemos são os primeiros ensaios. A meu modo de ver, temos que imaginarmos como cidadãos em uma situação anterior à Revolução Francesa, quando se reuniam grupos de pessoas a discutir uma ideia que para esse momento histórico era inconcebível, como os direitos universais das pessoas.
Porém o cenário mundial parece um pouco adverso. Um exemplo claro são as posturas de Trump.
Antes da Revolução Francesa também era uma catástrofe. Eu só posso falar do que podemos fazer, que estamos comprometidos com a qualidade de vida das pessoas e com a natureza. Estamos em um cenários muito complexo, com muitas restrições, muitas demandas por um tipo de consumismo, acompanhado de atitudes de individualismo e crescentes níveis de violência, que dificultam qualquer abordagem alternativa da natureza. Se não mudarmos nossa relação com o entorno, é inviável seguir em uma civilização humana de qualidade aceitável. Portanto, é necessário mudar essa estratégia. Porém estou convencido de que a mudança de estratégia não vai se dar por meio de discussões técnicas porque, pese a enorme acumulação científica que há sobre a mudança climática ou sobre os impactos do petróleo, ainda tem políticos e acadêmicos que seguem dizendo que não há impacto climático ou não há conexão de contaminação por hidrocarbonetos. Há uma teimosia que tem um profundo enraizamento cultural e isso só vai mudar por meio de uma transformação cultural.
Dentro de pouco tempo teremos novo presidente na Colômbia. O que recomendaria ao vencedor?
Novos governos são oportunidades para transformação. Isso implica estabelecer diálogos com o resto da sociedade, aprofundar os processos de paz que estão em marcha na Colômbia e desandar estratégias de desenvolvimento que são um dos grandes fatores que incrementam os conflitos e a dependência do país. Então, as vias de saída de alternativas aos extrativismos as vejo como indispensáveis. É também necessário democratizar a tomada de decisões e a informação: que seja entendível, acessível. Se requer maior participação das comunidades. E também, do lado da sociedade civil, é necessário uma autorreflexão e uma autocrítica.
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Não tem sentido seguir extraindo ouro. Entrevista com Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU