28 Agosto 2017
O sociólogo polonês Zygmunt Bauman criou uma metáfora poderosa ao descrever as sociedades atuais como “líquidas”. Mas na América Latina, mesmo no século XXI, continuamos a viver em países, em cidades, em sociedades que ainda têm muito de “sólidos” e onde aparecem apenas traços e faixas de “liquidez”. A realidade nos diz que vivemos em sociedades “viscosas”. A análise é de Eduardo Gudynas, em artigo publicado por revista Envío, 24-08-2017. A tradução é de André Langer.
As referências a uma “modernidade líquida” foram repetidas em toda a América Latina após o falecimento, em 09 de janeiro, de Zygmunt Bauman. E por alguns momentos parecia que o nosso continente era um dos melhores exemplos da fluidez moderna postulada pelo sociólogo polonês. Sem dúvida, é bem-vindo que se divulga e celebre sua obra, mas também é importante não cair no simplismo de transplantar essas ideias. É necessário insistir em um pensamento próprio que não copie Bauman, mas dialogue com ele. E se fizermos isso, suspeito que concordamos em que a modernidade sul-americana atual é viscosa.
A metáfora da “modernidade líquida”, título do livro que Bauman publicou em 2000, tornou-se muito popular e expandiu-se para outros temas: “amor líquido”, “vida líquida”, “medo líquido”, títulos de seus livros seguintes, publicados, respectivamente, em 2005, 2006 e 2007.
Na obra de Bauman, tanto em seus conceitos como em suas metáforas, há uma infinidade de ideias provocativas. Mesmo assim, sempre devemos ter presente que sua obra responde à conjuntura dos países industrializados, em particular dos europeus.
Em sua juventude, Zygmunt Bauman, nascido em 1925, trabalhou na agência militar de segurança interna. Depois ingressou e foi docente na Universidade de Varsóvia. Sofreu perseguição por sua ascendência judaica e abandonou a Polônia para viver em Israel e depois na Inglaterra. Desde então foi professor na Universidade de Leeds.
As circunstâncias da experiência de vida de Bauman são muito diferentes daquelas que conhecemos na América Latina. Reconhecendo essa particularidade da obra de Bauman, assim como a de outros intelectuais, podemos tomar imagens ou ideias para aprofundar as nossas próprias circunstâncias.
Bauman descreve a modernidade que observa como “líquida”, em contraposição a uma fase anterior, que seria “sólida”. A fase “sólida” descansava em certezas. Nela se mantinham a ordem e a certeza, contava-se com códigos morais e a sociedade se apegava a metas civilizatórias. Pelo contrário, a partir do contexto do final do século XX, e a partir do Norte, Bauman anuncia que a modernidade tornou-se fluida, com uma prevalência da incerteza e do relativismo moral e com a desconfiança nos grandes sonhos civilizatórios, privilegiando um certo hedonismo. Bauman descreve dessa maneira os tempos da privatização, da desregulamentação e do desenvolvimento da globalização.
Se alguém se atém a muitos dos textos sobre Bauman que circularam após a sua morte, dá a impressão de que a América Latina também está vivendo dentro dessa modernidade “líquida”.
É necessário pensar isso com mais atenção. Sem dúvida, observamos vários elementos dessa condição líquida: o individualismo e o relativismo. Mas em nosso continente continuam muito presentes vários atributos da modernidade sólida. Consideremos um único aspecto como exemplo. Em seu livro sobre este tema, no capítulo sobre espaço/tempo, Bauman afirma que a modernidade passada, a sólida, “foi a época da conquista territorial”, e acrescenta que a “riqueza e o poder estavam fortemente arraigados à terra, que eram maciços enormes e inamovíveis como as jazidas de ferro e as minas de carvão”. Não é esta uma imagem que nos é muito familiar hoje na América Latina? Nossos políticos não continuam a insistir em que a riqueza nacional está nos minerais ou no petróleo escondidos no subsolo ou na fertilidade da terra?
A conquista dos territórios e a obsessão para demonstrar o poder estatal por meio da sua imposição continuam muito presentes entre nós. A nova fronteira da conquista está na imposição dos extrativismos do minério, do petróleo e agrícola, de modo especial avançando sobre as florestas tropicais ou sobre os Andes. Também está em marcha uma nova conquista de territórios que se mantinham a salvo do capitalismo extrativista, como as terras indígenas e camponesas. Isso desencadeou grandes conflitos locais em todo o continente e também no México e na América Central.
O Estado ou as empresas continuam a se impor sobre as comunidades locais, especialmente as camponesas e indígenas. Nos últimos meses de seu governo, no Equador e a partir do progressismo, o governo de Rafael Correa impôs a mineração de cobre nas terras amazônicas dos indígenas shuar. E na Argentina, a partir do conservadorismo, a administração de Mauricio Macri reprime e desaloja os indígenas mapuches que resistem à expansão da pecuária em Chubut, suas terras na Patagônia. Situações similares se repetem em outros países.
É porque na América Latina, mesmo no século XXI, continuamos a viver sob uma dinâmica de conquista territorial e de conquista das riquezas que se encontram em jazidas de minérios ou de petróleo ou nos solos agrícolas.
Bauman dá um passo a mais em sua teoria ao dizer que todo aquele território que se estendia nos lugares mais distantes “era considerado terra de ninguém, espaço vazio, e o espaço vazio era um estímulo para a ação e uma censura para os ociosos”. Mesmo ao descrever dessa maneira um quadro próprio do século XIX, devemos nos perguntar novamente se situações como essas não persistem neste início do século XXI latino-americano.
Não podemos esquecer Alan García, presidente peruano que afirmava que a floresta amazônica estava quase vazia e que os poucos que nela moravam eram preguiçosos... comparando-os a “cães de horticultor” [que não comem as hortaliças e não deixam comer.]. Também não podemos esquecer o atual governo boliviano, que ignora ou minimiza os efeitos da expansão da fronteira petrolífera sobre áreas naturais, terras indígenas e de povos não contatados.
Tudo isso indica que a nossa modernidade é mais sólida do que se acreditava. O que nos cerca na América Latina parece ser, ao contrário, uma mistura de componentes que, de acordo com a terminologia de Bauman, seriam sólidos e líquidos. Vivemos em uma modernidade viscosa.
O continente conta ainda hoje com estratégias de desenvolvimento ancoradas na terra, tanto quando se trata de governos conservadores como progressistas. Existe uma cultura, com suas crenças, imagens, mitos e narrativas, que assume estar imersa em uma enorme riqueza ecológica que pode, e deve, ser aproveitada intensamente, e que entende que qualquer obstáculo contra esse propósito expressa pensamentos retrógrados e perigosos que podem ser justificadamente combatidos ou anulados.
Embora, salvo exceções, na América Latina não tenha havido uma massiva industrialização que se expressasse em um fordismo pujante, o que é outro atributo da modernidade sólida, em muitos países, o papel do Estado segue repleto de vícios herdados do século XIX, com uma dinâmica política endurecida, repleta de caudilhos e com uma sociedade que tolera o autoritarismo.
Na América Latina, apesar da “solidez”, também se expressam os componentes de uma modernidade fluida, que aceita o individualismo e o relativismo e um hedonismo amarrado ao consumismo e a aberturas a uma pluralidade moral. Existem também grupos sociais que desfrutam da hiper conectividade e das estéticas globalizadas.
Todos os componentes sólidos e líquidos estão misturados, mesclados, provocando inclusive expressões próprias que não se repetem em nenhum outro lugar do mundo. Isso explica a viscosidade das nossas modernidades crioulas.
É importante notar que esta condição heterogênea não é devida ao fato de que estamos em trânsito de uma modernidade sólida, como etapa passada, evoluindo para uma modernidade mais líquida. Não estamos diante de uma evolução linear.
A modernidade latino-americana organiza-se e reproduz-se de outra maneira. O que nos caracteriza é a nossa própria interação entre fenômenos sólidos – como os relatos de um maravilhoso progresso, a necessária conquista da Natureza e uma rigidez na moralidade pública – e as dinâmicas líquidas, como o individualismo, o relativismo moral privado, a substituição do ser cidadão pelo ser consumidor, a falta de proteção e a insegurança e, evidentemente, a globalização.
Sem dúvida, os elementos centrais da modernidade, a busca do progresso e o dualismo Sociedade-Natureza, permanecem, mas na versão latino-americana organizam-se de maneira diferente daquela descrita pelo Bauman, e o resultado é a mistura dos componentes, a viscosidade.
Além disso, a viscosidade da nossa modernidade não é homogênea no continente e nem mesmo dentro de cada país. A modernidade que se celebra nos bairros de classe alta da cidade de São Paulo não é a mesma que se vive nas comunidades do sul do México.
Uma particularidade das modernidades viscosas latino-americanas é que estão imersas em uma variedade de formas de violência.
Nesta questão, as abordagens de Bauman são diferentes. E embora ele incursione em questões como a maldade e o Holocausto, talvez sejam mais conhecidas as suas proposições sobre o Unsicherheit, termo alemão que integra as ideias de incerteza, insegurança e falta de proteção. Ele explora essa questão em seu livro Em busca da política (2001), uma obra conceitualmente mais densa e com menos metáforas e, por isso, muito mais provocativa.
A violência latino-americana atinge níveis de tragédia em alguns países, por exemplo, no México. Algo similar se repete em todos os nossos países. A criminalidade urbana é escandalosa em cidades centro-americanas e também na Venezuela e no Brasil.
Estas violências vão muito além dos roubos urbanos, de policiais de gatilho fácil ou de guerras entre quadrilhas de narcotraficantes. Elas penetram em todos os âmbitos da cotidianidade e em todos os rincões do território.
As próprias estratégias de desenvolvimento, e em especial os extrativismos, são impostas através do emprego da violência. Algumas vezes é uma violência sutil: forçar a aprovação de determinados projetos econômicos. Também pode ser uma violência muito direta, como a onda de assassinatos de líderes sociais locais.
O recente relatório da Global Witness aponta que Honduras é o país mais perigoso do mundo para os ativistas ambientais, e mais de 120 pessoas foram assassinadas ali por oferecerem resistências a corporações das áreas da mineração, da energia ou companhias madeireiras que desmatam as florestas, ou ao desmatamento.
Essa proliferação da violência, sua persistência por tão longo tempo e sua diversificação, são aspectos de uma forte solidez, que sem dúvida contém a incerteza, a insegurança e a falta de proteção que preocupam Bauman, mas que também transcendem por todos os lados estes três aspectos que ele atribui à violência.
É por estas razões que a obra de Zygmunt Bauman não pode ser transplantada para a América Latina, como se todo o continente seguisse, ou devesse que copiar, o mesmo caminho histórico dos países do Norte. Apesar disso, seus escritos oferecem provocações conceituais e imagens muito úteis para refletir sobre a nossa realidade.
Este ir e vir, lendo Bauman para retornar às nossas circunstâncias, é, possivelmente, a melhor homenagem à obra deste sociólogo. A novidade não está em repetir nem copiar, afirmando apressadamente que a América Latina é contemplada com algumas das imagens líquidas de Bauman. A novidade é aproveitar essa imagem para desenvolver as nossas próprias análises. Podemos usar algumas das suas ideias, mudando umas ou descartando outras, e criar novas sínteses. E é aí que reside o interesse por Bauman.
Tudo isso permite argumentar que o nosso continente está mergulhado em modernidades viscosas, onde o velho e o novo se misturam. Mas, independentemente de qual imagem usamos, fica claro que a vida social latino-americana continua a ser delimitada pela modernidade.
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Somos líquidos... ou viscosos? Artigo de Eduardo Gudynas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU