22 Novembro 2018
“Em nós, tão incapazes de amar, é quase impossível que nosso amor triunfe sobre a nossa ira. Temos tanta capacidade para condenar, como incapacidade para compadecer com quem condenamos”, escreve José I. González Faus, jesuíta, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 21-11-2018. A tradução é do Cepat.
Compreendo bem o escândalo e a indignação que esse título pode suscitar. Do mesmo modo, eu sou o primeiro indignado. Mas, esse escândalo pode nos ajudar a compreender o impacto da mesma frase quando Jesus a disse em referência aos “publicanos e prostitutas”.
A terminologia de Jesus já não nos escandaliza: hoje não há publicanos (ao menos com esse nome), e as prostitutas são hoje, em 90%, vítimas do tráfico de pessoas, coisa que não ocorria então, enquanto que a meretriz de Lucas, capítulo 7 parece ser uma prostituta daquelas “de alto standing”. (Prescindindo agora de se há identificação ou não com “a Madalena” do capítulo seguinte, pergunta que em minha opinião não tem respostas científicas, mas apenas sentimentais).
Pelas duas razões, os termos da denúncia de Jesus já não ferem nossos ouvidos. Mas, se situamos essa terminologia de Jesus em sua época, resultam ser dois dos qualificativos moralmente mais escandalosos. Compreende-se, assim, a reação de “vontade de acabar com ele”, que Jesus provocava nos doutores e cumpridores. E o que pode nos provocar, hoje, sua paródia em meu título.
Porque, por outro lado, as vítimas são para Deus mais sagradas e mais dignas de cuidado do que possam ser para o melhor de nós. E a pedofilia e os corruptos provocam mais dor e indignação em Deus do que possam provocar em qualquer um de nós e a todos os bem-pensantes de nossos dias. Aqui, aparece o que o teólogo japonês Kazoh Kitamori qualifica como a dor de Deus e que define assim: “o amor de Deus triunfando sobre sua ira”.
Em nós, tão incapazes de amar, é quase impossível que nosso amor triunfe sobre a nossa ira. Temos tanta capacidade para condenar, como incapacidade para compadecer com quem condenamos. Aquilo de “odiar o pecado e amar o pecador” aplicamos a nós e a nossas pequenas (ou grandes) infidelidades. Mas, se tentássemos praticar isso, teríamos que acrescentar a tudo o que estamos condenando (e com plena razão!) outra palavra dirigida a esses exemplos de baixeza moral: pedófilos e corruptos. Uma palavra mais ou menos como esta:
Condenamos seus atos, mas não queremos condenar vocês. Não sabemos quantas vezes se cumpre aquilo de que o verdugo de hoje foi uma vítima de ontem. Não podemos ser juízes de ninguém, porque isso seria nos erguermos como deuses. Também para pedófilos e corruptos segue havendo, hoje, uma possibilidade e uma oferta de reabilitação e de perdão. Também para vocês continua vigente a palavra bíblica: “ainda que os pecados de vocês sejam vermelhos como escarlate (e são), podem se tornar brancos como a neve”.
Nos mundos do ETA e das FARC colombianas ocorreram histórias estremecedoras de reconciliação e de abraço entre vítimas e verdugos. Não tiveram publicidade porque o bem não faz barulho e a publicidade do mal gera muito mais renda. Mas, devolvem ao gênero humano uma qualidade humana e uma possibilidade de admiração maiores que todo o desprezo que merecemos com tanta frequência. E se somos cristãos, sabemos que por um pedófilo ou um Bárcenas arrependido haverá no céu mais alegria que por todos nós.
Levar a sério as palavras de Jesus não significava, portanto, coonestar os publicanos e as prostitutas. Mas, sim, é um chamado para não nos sentirmos superiores a eles. Contam que o grande Francisco de Assis, diante de qualquer crime ou atrocidade moral de que tinha notícia, costumava exclamar: “eu em seu lugar talvez tivesse feito o mesmo”. Era uma maneira de não se sentir melhor, mas, ao contrário, simplesmente privilegiado, mais afortunado e, precisamente por isso, mais responsável. E apenas se tentamos nos aproximar dessa maneira de sentir, evitaremos nos colocar acima deles.
Algo disso era intuído pelo gênio de Nietzsche em sua denúncia da moral como hipocrisia. Mas, essas palavras do louco de Basileia nós as aplicamos apenas quando os outros nos falam de moral. Não quando nós moralizamos. Com o que acabamos dando-lhe a razão sem querer.
E deixando Nietzsche, o mesmo é o que Paulo de Tarso quer dizer nos capítulos 9-11 de sua Carta aos Romanos, falando da relação entre judeus e pagãos. Não nega nada da bondade e de certa superioridade daqueles (“deles são as promessas, etc.”). Contudo, ao aplicarem essa superioridade a eles próprios e não à eleição de Deus, ficaram atrás dos pagãos, e Deus se valeu desse pecado deles para abrir as portas aos de fora: consideraram-se filhos de Jacó e acabaram sendo filhos de Esaú, disse Paulo, fazendo menção a esses dois irmãos bíblicos. Para acrescentar, em seguida, que se agora os pagãos se sentem superiores aos judeus, deixarão de ser a igreja de Jacó para passar a ser a igreja de Esaú. E Deus se volta então aos judeus. E assim Deus se vale do pecado de todos, para salvar a todos.
Paulo não tinha o dom da expressão clara: era muito impetuoso para ser diáfano. Por isso, enreda algo em suas explicações e prefere terminar com mil exclamações de assombro sobre os desígnios e a sabedoria de Deus, que lhe permitem calar. Contudo, acredito que ao menos podemos intuir por onde vai. E me permito acrescentar, se é útil para alguém, que o comentário a esses capítulos 9-11, no livro de Xavier Alegre sobre a Carta aos Romanos, parece-me dos melhores, não só desse livro de Alegre, mas do que se escreveu sobre esses capítulos.
De qualquer modo, não devemos nos sentir melhores, mas, ao contrário, apenas mais agradecidos e mais responsáveis. E não parece que se tentássemos sentir algo disso, seria muito mais fácil a convivência humana que hoje está se degradando a níveis alarmantes?
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“Os pedófilos e os corruptos nos precederão no Reino dos Céus”. Artigo de José I. González Faus - Instituto Humanitas Unisinos - IHU