05 Abril 2018
A Igreja católica na China é considerada pelo governo uma influência externa, apesar da longa tradição na história desse país. Deste, e de outros temas, pôde falar o padre Joseph Shih, com o jesuíta Antonio Spadaro, em uma entrevista realizada em San Pietro Canisio, a residência dos jesuítas junto ao Vaticano.
O padre Joseph Shih, nascido na China e ordenado jesuíta em 1957, tem uma longa trajetória como docente na Universidade Gregoriana, e conhece em primeira mão o cristianismo na China e mais concretamente a relação do governo atual com a Igreja católica na China.
Na entrevista, ficam evidenciados dados significativos sobre a vida dos fiéis católicos na China e da relação entre China e o Vaticano. O padre Shih destaca que os fiéis de todas as crenças aumentaram e que a católica é, nesse momento, uma das cinco grandes religiões do país. De fato, os valores do socialismo tradicional são compatíveis com o Evangelho. Portanto, é indispensável, hoje em dia, chegar a um ponto de tolerância recíproca entre a Igreja católica na China e o governo.
Apesar da perseguição aos cristãos na China, o padre Shih espera que no futuro os católicos na China possam viver sua crença plenamente e sem censuras.
A entrevista é de Antonio Spadaro, publicada por Religión Digital, 03-04-2018. A tradução é do Cepat.
Meu encontro com o padre Joseph Shih aconteceu na portaria da residência dos jesuítas San Pietro Canisio, a dois passos do Vaticano. La Civiltà Cattolica já publicou dois artigos seus [1], mas eu nunca havia tido um encontro com ele. É um homem de 90 anos que me recebe amavelmente, sorrindo. Seu rosto carrega as marcas de muitas histórias vividas, e as impressões que ficaram comunicam uma experiência de serenidade, de paz profunda.
Pergunto a seu respeito e me responde. “Meus pais tiveram cinco filhos e cinco filhas. Todos nasceram e cresceram em Xangai”, disse-me. E prossegue: “Eu nasci em Ningbo e passei minha infância com minha avó materna, no campo. Não me recordo quando cheguei a Xangai. Recordo-me, sim, que estudei na Escola São Luís e no Colégio Santo Inácio, em Zikawei. Ia à missa todos os dias, na igreja paroquial. Após o ataque a Pearl Harbor, no dia 7 de dezembro de 1941, os jesuítas canadenses que trabalhavam em Xuzhou se concentram na residência de Zikawei. Alguns deles vinham regularmente à missa, em minha paróquia. Quando em 1944 terminei os estudos no Colégio Santo Inácio, já havia amadurecido o desejo de me tornar jesuíta. Entrei na Companhia de Jesus no dia 30 de agosto de 1944. Fui ordenado sacerdote no dia 16 de março de 1957, nas Filipinas”.
Pergunto-lhe qual foi sua formação, quais etapas teve e se viajou pelo mundo. Responde-me que esteve em Roma e depois na Alemanha e Áustria. Posteriormente, foi chamado novamente a Roma, para estudar e, mais tarde, para ensinar na Pontifícia Universidade Gregoriana. Para sua preparação à docência cursou um ano e meio de estudos em Harvard. Depois, passou mais de seis meses viajando pela África para observar os efeitos da independência nacional na Igreja católica daquele continente.
Mais tarde, o prepósito geral dos jesuítas, o padre Pedro Arrupe, lhe aconselhou que também fosse a América Latina realizar o mesmo tipo de estudo. E assim conheceu Brasil e Argentina. Em Roma, ensinou na Universidade Gregoriana, durante 35 anos, e trabalhou na Rádio Vaticano, durante 25 anos, na seção chinesa. “Tinha o padre Michael Chu - prossegue -, que vinha celebrar a missa dominical que transmitíamos para a China. Com regularidade, o padre Berchmans Chang enviava seus artigos de teologia e de espiritualidade. O padre Michael Chu tinha uma caixa postal que servia para debatermos com nossos ouvintes a respeito dos problemas da Igreja na China”.
Desde 2007, ou seja, quando o padre Lim Hwan, jesuíta, foi encarregado de dirigir a seção chinesa da Rádio Vaticano, o padre Shih deixou Roma. “A partir de então – relata –, passo a maior parte de meu tempo em Xangai. Sei que minha função é a de ser uma testemunha para a Igreja católica, que é una onde quer que esteja: em Xangai ou em Roma é a mesma Igreja, una, santa, católica e apostólica”.
O Papa Francisco tem um especial interesse pela vida da Igreja na China e pelo futuro dos católicos chineses. Acompanha-lhes na oração e os segue com amor de pai. Como se percebe, lá, esta atenção particular do Papa?
Dos três Papas recentes, o que eu mais conheço é São João Paulo II: amava sua pátria, simpatizava-se com o Terceiro Mundo e compreendia a história da Igreja na China. Durante seu pontificado, empenhou-se em promover a reconciliação entre a Igreja e o Governo chinês. Lamentavelmente, por causa de seu papel na queda do comunismo na Europa, o Governo chinês não confiava muito nele. O Papa Bento XVI escreveu uma carta à Igreja católica na China [2] para lhe apontar o caminho a seguir, para sair de suas duas dificuldades atuais. Compôs também uma oração dedicada à Virgem de Sheshan para convidar os católicos de todo o mundo a orar pela Igreja na China. Nós, católicos chineses, estamos agradecidos e sentimos respeito por ele. O Papa Francisco é muito querido: todos apreciam seu estilo e percebem seu amor paterno.
No plano social e econômico, a China mudou muito nos últimos anos e experimentou um desenvolvimento rápido e impressionante. Junto à sociedade mudou também a vida da Igreja? Qual é sua experiência pessoal?
Sim, a vida da Igreja mudou junto com a sociedade. Com efeito, os católicos chineses viviam em sua maioria nas áreas rurais, ao passo que agora os jovens dos povos vão buscar trabalho nas cidades. Muitas vezes, seus pais os acompanham para cuidar dos netos. Desse modo, as aldeias se esvaziam. As igrejas perdem seus paroquianos. Os velhos católicos estão dispersos.
Por outro lado, embora nos últimos anos os chineses se tornaram mais ricos, não por isso se sentem mais felizes. Mais ainda, estão um pouco inquietos. Agora, devem se preocupar em encontrar trabalho, comprar uma casa, oferecer uma boa educação a seus filhos e em assegurar uma velhice digna. Em meio a tantas preocupações, surge de maneira espontânea o sentimento religioso. Não é de estranhar que, nos últimos anos, os fiéis das diferentes religiões na China aumentaram de forma significativa. A Igreja católica não é a exceção.
Agora, eu vivo em Zikawei, que tempos atrás era um povoado cristão. Naquele momento, em torno da Igreja de Santo Inácio, que é a igreja paroquial, viviam as famílias cristãs. Agora, Zikawei se tornou um centro comercial da cidade de Xangai. As casas velhas foram demolidas. Os antigos habitantes se mudaram para outros lugares. Na atualidade, na tarde do sábado e durante o domingo, são celebradas sete missas na Igreja de Santo Inácio, que sempre está cheia. Na primeira missa do domingo, ainda se notam alguns velhos paroquianos de Zikawei, ao passo que em todas as demais missas os que participam são quase todos fiéis novos, vindos de diferentes partes do país, entre eles muitos jovens e intelectuais.
O atual contexto sociocultural na China se distingue por um variado leque de experiências. Um enfoque simplista conduziria ao erro e resultaria incapaz de ponderar as nuances e a complexidade da China. É necessário ir além dos preconceitos e das aparências. Em síntese, devemos ser pessimistas ou otimistas? Como a comunidade católica na China vive este momento histórico?
Eu sou otimista. Antes de tudo, porque acredito em Deus. Deus é o Senhor da história humana. Seja como for que história avance, ela nunca se separa do plano salvífico de Deus, cujo fim é a glória de Deus e a salvação dos homens. Além disso, como você disse, é necessário ir além dos preconceitos e das aparências. Caso não nos obstinemos em nossos preconceitos e saibamos olhar para além das aparências, descobrimos que os valores fundamentais do socialismo sonhados pelo Governo chinês não são incompatíveis com o Evangelho no qual acreditamos. E se a Igreja em nosso país consegue estabelecer uma tolerância recíproca com o Governo, podemos viver e atuar em nosso país. Por isso, não sou pessimista, mas, sim, otimista.
Tanto na Igreja, como na opinião pública internacional, se fala muito do diálogo que está ocorrendo entre a Santa Sé e a República Popular da China. Um observador inteligente nota que a finalidade das conversas é de natureza essencialmente pastoral, antes que política, social e diplomática. Naturalmente, todo encontro exige, por um lado, a purificação da memória e, por outro, a vontade de escrever uma página nova da história. Como nós, católicos, estamos nos empenhando para viver, em primeiro lugar, a reconciliação e promover a comunhão na Igreja?
Na China, o Governo não reconhece mais que cinco grandes religiões. A cada uma delas impõe organismos de controle. A Igreja católica é uma dessas cinco grandes religiões, mas nem todos na Igreja católica aceitam esta realidade.
Por isso, do ponto de vista do Governo, há duas partes na Igreja católica. O Governo reconhece a parte que aceita suas leis e não reconhece a outra, que as rejeita. Refiro-me às leis acerca das atividades religiosas. Os meios de comunicação ocidentais falam de “Igreja oficial” ou patriótica e de “Igreja clandestina”, que é a não reconhecida pelo Governo. Os católicos que vivem na China conhecem estas definições, mas sabem distinguir entre a política religiosa do Governo e sua própria fé. Para eles, na China não há mais que uma só Igreja, a saber, a Igreja una, santa, católica e apostólica. Nesta única Igreja estão duas comunidades distintas, cada uma com seus bispos e seus sacerdotes.
Entre eles, há disputas frequentes, que não são por conta de diferenças na fé, mas que são muito mais expressão de conflitos de interesse religioso. Além disso, após os insistentes apelos do Papa João Paulo II, as duas partes já começaram a se reconciliar. Uma prova muito eloquente disso foi a ordenação episcopal de dom Xing Wenzhi, em 2005. Agora, como a Santa Sé está dialogando com o Governo chinês, os que se opõem acentuam de maneira exagerada e intencionada a diferença entre a “Igreja oficial” e a “Igreja clandestina”, e a exploram sem escrúpulos para impedir o diálogo que está acontecendo. Isso não ajuda a vida e a missão da Igreja na China.
Em casos análogos, muitas vezes, foi dito que é necessário ter um “sadio realismo”. Como se aplica este princípio à realidade chinesa?
O Governo chinês é comunista. Esta é uma realidade que certamente não mudará durante muito tempo. Contudo, mesmo assim, a Igreja na China deve ter alguma relação com o Governo chinês. Qual relação? De oposição? Seria um suicídio. De compromisso? Também não, porque a Igreja perderia sua própria identidade. Então, a única relação possível é a de tolerância recíproca.
A tolerância é distinta do compromisso. Este cede qualquer coisa ao outro, e faz isto até o grau em que o outro considere satisfatório. A tolerância não cede, nem exige que o outro ceda. Mas, a tolerância recíproca entre a Igreja e o Governo chinês tem uma premissa: que a Santa Sé não se oponha ao Governo. Com efeito, se a Santa Sé se opusesse ao Governo, a Igreja na China seria obrigada a escolher entre um e outro e, necessariamente, escolheria a Santa Sé. Desse modo, a Igreja desagradaria o Governo chinês. Se a Santa Sé não se opõe ao Governo, é possível se perguntar: tolerará este último a Igreja na China? Só posso dizer que a Igreja católica na China existe e funciona. Isto significa que, de alguma maneira, a tolerância já está sendo experimentada.
À luz deste “sadio realismo”, como se pode interpretar a sofrida história humana e eclesial de dom Tadeo Ma Daqin, bispo auxiliar de Xangai?
Dom Ma Daqin foi ordenado bispo no dia 7 de julho de 2012. Naquele momento, era um bispo aceito pelas duas partes: pela Santa Sé e pelo Governo chinês. Não obstante, por causa da declaração com a qual deixou a Associação Patriótica, foi obrigado a se retirar de Sheshan e nunca mais pôde exercer a função episcopal. Em junho do ano passado, publicou em sua página web um artigo no qual se manifestou estar arrependido de ter abandonado a Associação Patriótica. Mais recentemente, no dia 6 de abril passado, em um dia de Páscoa, foi à província de Fujian e celebrou publicamente a missa com o bispo “ilegítimo” Zhan Silu. Por isso, os meios de comunicação ocidentais começaram a falar de sua “mudança de postura” e de sua “traição”.
Eu conheço muito bem o bispo Ma Daqin. Ele não mudou de postura, nem se rendeu. Acredito, ao contrário, que se “despertou”. Veja, muitos dizem que amam a China, mas tem uma ideia abstrata do país. Amam, talvez, a China de Confúcio ou a de Jiang Jieshi (Chiang Kai-shek). Para o bispo Tadeo Ma Daqin, amar a China quer dizer amar a China concreta, ou seja, a China atual, a China governada pelo Partido Comunista. Além disso, já não acredita que a Igreja deva se opor necessariamente ao Governo chinês. Mais ainda, compreendeu que, para poder existir e atuar na China de hoje, é necessário que a Igreja se faça ao menos tolerável aos olhos do Governo.
Em suma, dom Ma Daqin é um bispo chinês com um sadio realismo. Com efeito, o fato de que tenha ido a Mindong e que tenha concelebrado com o bispo “ilegítimo” Zhan Silu tinha como objetivo uma reconciliação com o Governo chinês. Dom Ma Daqin é um bispo chinês que vive na China, e embora agora se encontre em prisão domiciliar, está tentando uma aproximação com o Governo. Espero que a Santa Sé o apoie e o deixe tentar. A reconciliação entre a Igreja na China e o Governo é o ponto no qual João Paulo II insistiu muito durante seu pontificado. Agora, o bispo Ma Daqin está procurando realizá-la. Que São João Paulo II o abençoe do céu!
São muitos os bispos, sacerdotes e leigos que nas últimas décadas sofreram para dar testemunho da fé e do amor à Igreja. O que ensina sua fidelidade à Igreja de hoje e às novas gerações?
Sua pergunta me recorda um sermão que pronunciei no XII domingo do tempo comum. Nesse domingo, é feita a leitura do Evangelho de Mateus [3]. Em minha homilia disse: “As palavras que vocês ouviram foram ditas por Jesus a seus discípulos. Ao ouvi-las, podemos ter a impressão de que Jesus foi muito severo, muito severo. Com efeito, disse que não devemos temer aqueles que podem matar o corpo, mas não a nossa alma, mas devemos temer, ao contrário, aqueles que mandam nosso corpo junto com nossa alma para o inferno. Devemos saber que Jesus, que quer nos salvar, não pode salvar aqueles que não tem a coragem de confessar a própria fé. Por outro lado, Jesus nos afirmou que não devemos temer. Deus, que preocupa até pelos passarinhos ou por um fio de cabelo de nossa cabeça, também pensa em nós”.
Os muitos bispos, sacerdotes e leigos que nas últimas décadas sofreram por dar testemunho da fé e por seu amor à Igreja compreenderam e seguiram este ensinamento de Jesus. Agora, também transmitem isto a nós e às novas gerações, com seu exemplo pessoal. Além disso, “o sangue dos mártires é semente de novos cristãos”. Graças a seus méritos, hoje, os católicos na China gozamos de uma certa medida de paz e em nossas paróquias cresceu o número dos que participam nas missas. Estamos agradecidos por isso.
Que desejo e esperança gostaria de formular pessoalmente para o caminho dos católicos chineses?
Espero que não sejam como alguns que vivem fora da China e se preocupam com o destino dos católicos na China de uma maneira incongruente, prejudicando a Igreja. Desejo e espero que os católicos na China não se vejam obrigados a ir para outra parte, tornando-se assim hóspedes ou refugiados. Espero, ao contrário, que os católicos chineses possamos viver uma vida autenticamente cristã em nosso país.
Na atualidade, está ocorrendo o diálogo entre a Santa Sé e o Governo chinês. É meu desejo e esperança que a Santa Sé não desafie o Governo com um ideal muito alto e carente de realismo, coisa que nos obrigaria a escolher entre esta e o Governo chinês.
[1] Ver: J. Shih, «Il metodo missionario di Matteo Ricci», en La Civiltà Cattolica, 1983, I, pp. 141-150; íd., «La Chiesa cattolica in Cina. Una testimonianza», ibíd., 2016, II, pp. 369-374.
[2] Bento XVI, Carta aos bispos, presbíteros, pessoas consagradas y fiéis leigos da Igreja católica na República Popular da China, Roma, 27 de maio de 2007. Ver também: La Civiltà Cattolica, «Nota esplicativa sulla lettera di Benedetto XVI ai cattolici cinesi», en La Civiltà Cattolica, 2007, III, p. 107.
[3] Mais precisamente Mt 10,26-33.
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
“Francisco é muito querido na China: todos percebem seu amor paterno”. Entrevista com o jesuíta chinês Joseph Shih - Instituto Humanitas Unisinos - IHU