26 Fevereiro 2018
Ele tem 90 anos de idade. E o poder pessoal que consolidou de forma sistemática durante várias décadas, que atingiu seu pico no início dos anos 90, começou a diminuir.
Mas por cerca de três décadas ele era o homem no Vaticano que ninguém ousava contradizer. Até mesmo os papas com quem atuou eram cuidadosos para ter seu consentimento, devido à lealdade que inspirava a muita pessoas importantes de todos os níveis da Cúria Romana.
Seu nome é Angelo Sodano, o atual decano do Colégio de Cardeais e antigo Secretário de Estado do Vaticano.
A reportagem é de Robert Mickens, publicada por La Croix International, 23-02-2018. A tradução é de Luísa Flores Somavilla.
O desenrolar dos casos de abuso sexual pelo clero e seu encobrimento institucional no Chile, onde foi núncio papal de 1978 a 1988, deve encerrar o capítulo de seu longo reinado como influência no Vaticano de forma definitiva.
Mas não vai apagar seu grande impacto – nem sempre positivo – sobre a Igreja e sua estrutura institucional, às quais dedicou sua longa e prodigiosa vida na carreira de diplomata da Santa Sé.
Um incidente em que seu poder e sua influência foram particularmente determinantes aconteceu em 22 de junho de 2006.
Nesse dia, o Papa Bento XVI anunciou que Sodano seria aposentado (um homem apenas cinco meses mais velho que ele) e o cardeal Tarcisio Bertone, assistente de confiança da época em que o papa era prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé (CDF), assumiria o cargo de Secretário do Estado.
Embora a transição não fosse ocorrer antes de três meses daquela data (em 15 de setembro), foi nesse dia de verão em 2006 – dizem – que Bento XVI causou uma ferida aberta e mortal ao seu próprio pontificado, ao rejeitar o cardeal Sodano.
O cardeal italiano, na época com 78 anos, que era Secretário de Estado desde dezembro de 1990, havia tentado dissuadi-lo de escolher Bertone para o cargo.
Nas semanas que antecederam a aposentaria, Sodano aconselhou Bento XVI a escolher um diplomata experiente, coisa que Bertone, salesiano e canonista medíocre, não era. Um dos nomes da lista de candidatos proposta pelo futuro Secretário de Estado aposentado era o arcebispo Giovanni Lajolo, o "ministro de relações exteriores” do Vaticano na época.
Lajolo era um dos aliados de confiança de Sodano e vinha da mesma região, Piemonte, no norte da Itália. Mas, ainda mais importante, Lajolo também tinha sido núncio papal na Alemanha (1995-2003) e falava a língua materna do Papa, motivo pelo qual seu cardeal-protetor acreditava que ele era uma escolha promissora que Bento XVI poderia aceitar.
Mas o Papa da Baviera rejeitou o conselho de Sodano e insistiu na nomeação de Bertone. Assim, perdeu o apoio vital da maioria dos diplomatas da Cúria Romana no Vaticano, arrastados pela influência de Angelo Sodano, que alimentou a narrativa de que o Papa os havia deixado à margem ao escolher Bertone, que não era diplomata.
Apenas 14 meses depois de se tornar Bispo de Roma, Bento XVI cometeu um grande erro tático.
Daí em diante, seu pontificado cambaleou de uma grande crise para outra, tanto dentro do Vaticano como no cenário mundial. Depois de quase oito anos agonizantes, ele e seu círculo minúsculo de assistentes de confiança estavam isolados. Diante de tudo isso, o já idoso teólogo e papa renunciou.
Mas Sodano (e suas forças) sobreviveram e, no conclave de 2013, por ser decano do Colégio dos Cardeais, um de seus deveres era moderar as discussões pré-conclave e presidir a missa. Sabe-se amplamente que quando a votação começou ele já havia convencido vários outros cardeais a votar em Jorge Mario Bergoglio SJ, que hoje é o Papa Francisco.
Não se sabe ao certo se os votos determinantes para a eleição do papa argentino devem-se a Sodano, mas, ainda assim, esses números foram essenciais. E Francisco estava e continua bem ciente disso.
Ele começou seu pontificado com pleno conhecimento de que Sodano ainda tinha alcance e influência consideráveis sobre o que estava acontecendo na Roma eclesiástica. Também tinha experiência pessoal com o desejo obstinado do antigo Secretário de Estado de promover e punir, principalmente na América Latina, terra natal do Papa, onde, pelo menos desde os anos 70, raramente foram tomadas decisões políticas e feitas nomeações a bispo sem a opinião do diplomata italiano.
E, sem dúvida, a reunião do CELAM (Conselho Episcopal Latino-Americano) de 1992, em Santo Domingo, ainda deve estar presente na memória do Papa. Quando era bispo auxiliar recém-ordenado, ele testemunhou o cardeal Sodano (juntamente com um dos seus protegidos chilenos, o futuro cardeal Jorge Medina Estévez) dando ordens aos bispos e (embora não com sucesso total) tentando ditar o conteúdo do documento final do encontro.
Além da Itália, sua terra natal, é provável que a América Latina seja a região mais amada por Angelo Sodano no mundo. Durante seus mais de 50 anos de serviço à Santa Sé, suas únicas viagens diplomáticas para o exterior foram para lá. Suas primeiras atribuições como sacerdote foram no Equador (1961-63), no Uruguai (1963-65) e no Chile (1965-67). Após outros dez anos em Roma, como Secretário de Estado, ele voltou ao Chile em 1978, ordenado para o episcopado, para atuar como núncio apostólico por mais uma década.
Como já foi dito aqui há cerca de um mês, “mais do que qualquer outro funcionário do Vaticano, ele teve papel decisivo na formação da liderança episcopal do Chile”.
Do surgimento do cardeal Jorge Medina (útil moeda de troca já lançada ao amigo de Medina, Joseph Ratzinger) à ascensão do bispo Juan Barros (o homem envolvido no caso atual de encobrimento de abuso sexual), as impressões digitais de Sodano estão por toda parte.
E isso não acabou após o término de seu mandato como núncio em Santiago.
“Quando se tornou Secretário de Estado, Sodano pôde continuar exercendo influência sobre a nomeação de bispos no Chile (e em outros lugares) como membro da Congregação dos Bispos, cargo que ocupou até 2007”.
Isso inclui a nomeação do atual núncio no país sul-americano, o arcebispo Ivo Scapolo.
O arcebispo, assim como o Cardeal Sodano, é um homem com distinção na instituição. E sente uma obrigação especial e um dever de fazer de tudo para defendê-la – algo que tal clérigo vê como uma causa nobre, mas que a maioria dos católicos passaram a ver como ofensivo e injusto com as vítimas sacrificais.
É muito provável, como já se sugeriu, que o cardeal de 90 anos interveio no caso de Barros e aconselhou o Papa Francisco a não dar ouvidos às recorrentes acusações de que o bispo havia feito vista grossa (ou pior) aos abusos sexuais cometidos pelo mentor de Barros, o antigo padre Fernando Karadima, com uma série de meninos.
Não seria nenhuma surpresa, para dizer o mínimo. O cardeal Sodano tem uma longa história de proteger "os interesses da Igreja” – enquanto instituição.
Ele foi acusado de tentar burlar tentativas de desenterrar a verdade sobre o falecido cardeal de Viena Hans Hermann Groer, que o Vaticano teve de condenar por violência sexual desferida a jovens noviços beneditinos. E as fortes tentativas de Sodano de proteger o fundador psicopata e moralmente corrupto dos Legionários de Cristo, Marcel Maciel, são lendárias. Quem sabe quantas outras vezes ele usou seu poder e status para interromper investigações de crimes cometidos por clérigos parceiros, apenas por se preocupar com “o bem da Igreja"?
Se ele e os outros (mais provavelmente o cardeal Francisco Javier Errázuriz, antigo arcebispo de Santiago e membro do Conselho dos Cardeais do Papa) inicialmente conseguiram convencer o Papa Francisco a não prosseguir as acusações de encobrimento contra o bispo Barros, o tiro saiu pela culatra.
O arcebispo Charles Scicluna, enviado pelo Papa ao Chile para investigar as acusações, deve terminar a sua missão em breve.
O fato de ele ter sido enviado já demonstra que alguém finalmente convenceu Francisco que ele havia recebido informações erradas por um pequeno grupo, uma visão que contrastava com a de muitos bispos do Chile que acreditam que Barros deveria renunciar.
E agora parece que ele finalmente vai se demitir.
É difícil dizer o que vai acontecer com os outros jogadores deste drama que nunca deveria ter acontecido. O arcebispo Scapolo, após quase sete anos como núncio, provavelmente voltará a Roma e receberá um cargo tranquilo na Secretaria de Estado. Ele fará 65 anos neste verão e pode se aposentar antecipadamente.
E o cardeal Errazuriz? De todos os personagens da peça, ele já teve de reconhecer – em maior ou menor escala – que, como arcebispo de Santiago, não acreditou nas vítimas de Karadima. Ele ainda está sendo processado por eles e, portanto, não teria dado crédito às queixas contra o bispo Barros. Na verdade, o cenário mais provável é que ele tenha sido uma das pessoas a dizer ao Papa que as queixas contra o bispo não estavam baseadas em provas e eram caluniosas.
Errazuriz já tem 84 anos. Em abril ele vai terminar seu primeiro mandato de cinco anos no Conselho de Cardeais (C9). Devido à sua idade avançada, Francisco, convenientemente, deve conseguir justificar a substituição do cardeal do conselho papal privado.
Quanto a Sodano, ele ainda está em excelente forma para seus 90 anos de idade. Mas à medida que o "programa de ajuste atitudinal” do Papa continua ganhando adeptos na classe diplomática do Vaticano, especialmente através do apoio e testemunho do Secretário de Estado e cardeal Pietro Parolin, Dom Angelo torna-se uma força cada vez menos reconhecida.
Numa missa na Capela Paulina para marcar o aniversário de 90 anos do Cardeal Sodano em dezembro do ano passado, o Papa parecia sem palavras. Mas depois de alguns minutos fez a seguinte homenagem a ele:
"Vemos no cardeal o testemunho de um homem que fez muito pela Igreja, em várias situações, com alegria e com lágrimas. Mas hoje penso que talvez o maior testemunho que ele nos oferece é o de um homem eclesiasticamente disciplinado (ecclesialmente disciplinato), e isso é uma graça pela qual devemos dar graças”, disse o Papa.
Talvez o Papa Francisco possa nos explicar exatamente o que dizer com aquelas palavras estranhas na ocasião da demissão do cardeal Sodano do cargo de decano do Colégio dos Cardeais. É só uma questão de tempo.
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Tempo de crepúsculo para o 'Poderoso Chefão' do Vaticano. Os casos de abuso sexual do Chile e o homem que já comandou a Cúria Romana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU