30 Janeiro 2018
“O que assusta (e realmente dá medo) é que a Igreja foi se afastando cada vez mais do Evangelho. E acabou se tornando uma religião, com seus poderes e seus privilégios. Nós, simplesmente, corrigimos a página suprema de Jesus”, escreve José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo publicado por Religión Digital, 25-01-2018. A tradução é de André Langer.
É um fato bem conhecido que o Papa Francisco é um homem controverso. Ele tem admiradores e detratores. Pessoas que o admiram e gostam dele, assim como há pessoas que o desprezam e até o odeiam. Além disso, a impressão mais generalizada é que a maioria dos admiradores encontra-se nas classes populares, ao passo que os detratores são, ao contrário, clérigos de todos os níveis, pessoas de mentalidade fundamentalista e tradicional, destacando não poucos líderes políticos, por mais que nos eventos públicos tenham que representar o papel que lhes corresponde.
A pergunta lógica, que surge diante dessas reações contrapostas, no caso deste papa, é inevitável e lógica: por que essa admiração e essa rejeição?
Em geral, acontece que as pessoas se destacam, especialmente quando isso acontece em áreas da vida em que as pessoas se apaixonam e está em jogo o sucesso ou o fracasso em problemas de notável interesse, inevitavelmente ocorre (ou se provoca) o entusiasmo de grandes multidões ou, pelo contrário, a rejeição daqueles que (por qualquer motivo) se sentem ameaçados.
É isso que acontece com o Papa Francisco? Por que as massas populares o aclamam, ao passo que os setores que lidam com o poder e o dinheiro, olham-no com suspeita, não confiam em como faz as coisas ou o rejeitam ou o desprezam abertamente? Em suma, o que está acontecendo na Igreja com este papa?
A coisa mais óbvia, que todo o mundo nota, é que este papa dispensa todos os protocolos, solenidades e distinções que o afastam das pessoas. Ele gosta da simplicidade, da espontaneidade e de tudo quanto possa aproximar das pessoas, especialmente quando se trata de pessoas marginais ou marginalizadas, por qualquer motivo. Não se tem conhecimento de um papa tão próximo das pessoas simples, como é o caso de Jorge Mario Bergoglio. Isso ninguém coloca em dúvida.
Embora também seja verdade que este tipo de comportamento pontifício não agrada a alguns altos funcionários da cúria romana e, em geral, a muitos (talvez demais) dons do episcopado. Há, nesses altos postos de comando clerical, digníssimos senhores que querem manter distância em suas relações com pessoas comuns e vulgares. E é claro, quem gosta de pedestais não gosta de ser visto nos chinelos de andar em casa.
Mas este não é o fator determinante nos sentimentos de afeto ou rejeição do Papa Francisco. Na minha opinião, o problema que este papa apresentou à Igreja (e ao mundo) não se reduz a protocolos, tradições ou formas simples de presença pública. Nem mesmo se reduz ao fato de que este papa não tenha usado seu “poder ordinário, que é supremo, pleno, imediato e universal na Igreja, que pode exercer sempre livremente” (Código de Direito Canônico, cân. 331).
Por mais verdadeiro que seja que, em virtude desse poder, o papa possa ter mudado os cargos da cúria romana como quisesse, possa ter modificado a liturgia, pois poderia ter suprimido o celibato dos sacerdotes ou decretado que em cada diocese o bispo fosse nomeado pelo voto popular, como se fez na Igreja antiga durante séculos, ou tantas outras coisas que teriam feito da Igreja que temos uma instituição muito diferente.
No entanto, o Papa Francisco não fez – até agora – nada disso. A Igreja segue sendo administrada como nos papas anteriores. Então, que motivos esse papa deu para haver tantos clérigos indignados com Bergoglio ou tantos católicos que desejam que seu pontificado acabe o mais rápido possível?
O que vejo mais claramente, em resposta a esta questão e muitas outras questões semelhantes, é o seguinte: este papa, e qualquer outro papa, se ele quiser influenciar profundamente para modificar e melhorar esta Igreja tão desacreditada em tantos ambientes deste mundo, tem dois meios ao seu dispor:
1) assumir o seu “poder” pleno, supremo e universal;
2) colocar em primeiro lugar sua própria “exemplaridade”, vivendo o mais próximo possível daqueles que mais sofrem e são os mais maltratados neste mundo.
Qual desses dois meios é que vemos mais claramente destacado no Evangelho? De acordo com os relatos dos quatro evangelhos canônicos (os quatro que a Igreja aceitou como autênticos), Jesus não recorreu ao poder para se impor contra o mal e remediar o sofrimento do mundo.
O argumento ao qual Jesus sempre se referiu era o exemplo de vida: que as pessoas vejam “suas boas obras”, que “vejam os frutos que a sua vida produz”, “se não acreditam em mim, acreditem nas minhas obras”, que “se amem de tal maneira que nisto saibam que são meus discípulos”. E assim por diante. Jesus nunca invocou o poder, mas sempre o amor mútuo, a transparência, o bem que fazem...
Além disso, Jesus nunca anunciou seu triunfo, seu êxito, sua dominação. O que Jesus anunciou aos apóstolos, que discutiam sobre qual deles era o primeiro, a coisa mais importante, é que sua vida acabaria no fracasso, na condenação e na morte. Simplesmente porque a religião o perseguiu e não descansou até matá-lo. No entanto, o que assusta (e realmente dá medo) é que a Igreja foi se afastando cada vez mais do Evangelho. E acabou se tornando uma religião, com seus poderes e seus privilégios. Nós, simplesmente, corrigimos a página suprema de Jesus.
Max Horkheimer, nas Notas que deixou escrito, nas últimas décadas de sua vida (entre 1949 e 1969), disse o seguinte: “Jesus morreu pelos homens, ele não pôde reservar-se avaramente para si mesmo e devotou-se a todos aqueles que sofrem. Os padres da Igreja fizeram disso uma religião, isto é, uma doutrina, que até mesmo para os ímpios foi um consolo. A partir de então, o cristianismo teve tanto sucesso no mundo que o pensamento de Jesus não teve nada a ver com a prática, e menos ainda com aqueles que sofrem. Quem lê o Evangelho e não vê que Jesus morreu ‘contra’ seus atuais representantes, esse não sabe ler. Essa teologia é o sarcasmo mais incrível que já aconteceu com um pensamento” (M. Horkheimer. Anhelo de justicia. Teoría Crítica y Religión. Ed. de Juan José Sánchez. Madri: Trotta, 2000, p. 227).
É evidente que o Papa Francisco não escolheu invocar e fazer uso de seu “poder”. Pelo menos, até agora, seu pontificado não vai por aí. O Papa Francisco acredita na “exemplaridade” de sua própria vida, na proximidade com o mais simples, pobre e marginal desse mundo. Com razão, Horkheimer recorda-nos a frase lapidar de Kant: “A prática deve ser tal que não se possa pensar que não existe um além” (citado o.c., p. 19, nota 45).
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Papa Francisco: poder ou exemplaridade? Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU