09 Agosto 2016
“Eu não entendo como estas personalidades – de tão alta qualidade doutrinal e teológica – podem assumir decisões tão intransigentes em questões que não são, em absoluto, dogmas de fé. Questões, portanto, que o Papa (qualquer papa) pode ponderar, aplicar e até modificar, segundo as necessidades religiosas e pastorais que o “Povo de Deus” demanda, ou seja, o conjunto dos crentes em Jesus, o Senhor”, escreve o teólogo espanhol José María Castillo, em artigo publicado por Religión Digital, 07-08-2016 A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Eu compreendo perfeitamente – e qualquer um compreende – que na Igreja existam pessoas (e grupos) que tem uma grande fé e uma sólida formação teológica e que, no entanto, não concordam com o Papa Francisco (ou com qualquer outro papa) em não poucas coisas, seja em sua forma de pensar ou de viver, seja no modo como se comunica com as pessoas. Isto sempre aconteceu. E, sem dúvida, continuará acontecendo. No entanto, no momento, o que está acontecendo na Igreja Católica possui um tom diferente. Este novo tom é o que me produz espanto. Um espanto do qual não saio, por mais que minha cabeça gire. Por quê?
Não é um segredo para ninguém que o Papa Francisco, quase desde o início de seu pontificado, vem encontrando resistência e mal-estar em certos setores dos mais altos níveis da Hierarquia eclesiástica. Sabe-se que há cardeais e bispos que não escondem este desacordo e o conseguinte mal-estar (“disagio”, dizem os italianos).
E, entre estes altos hierarcas, sabe-se também que há homens de alta categoria como os cardeais Müller (Prefeito da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé) e Sarah (Prefeito da Congregação para a Disciplina dos Sacramentos). Estamos falando, pois, de homens que se supõe que precisam estar muito bem preparados. É precisamente isto o que mais me espanta.
Porque eu não entendo como estas personalidades – de tão alta qualidade doutrinal e teológica – podem assumir decisões tão intransigentes em questões que não são, em absoluto, dogmas de fé. Questões, portanto, que o Papa (qualquer papa) pode ponderar, aplicar e até modificar, segundo as necessidades religiosas e pastorais que o “povo de Deus” demanda, ou seja, o conjunto dos crentes em Jesus, o Senhor.
Aqui, parece-me importante recordar, mais uma vez, que na Igreja não existe nenhum “dogma de fé” relativo ao matrimônio ou ao modelo de família. Portanto, ao tratar deste assunto, não é possível incorrer em “heresia”, já que nesta se incorre quando se nega ou duvida com pertinácia (Can. 751) de uma verdade definida como obrigatória “por fé divina e católica” (Concílio Vaticano I. Denz. Hun., 3011).
E nesta categoria de verdades não existe nenhuma (até o momento) sobre a família ou o matrimônio. Por outro lado, teólogos e catequistas deveriam ter presente que os cânones da Sessão VII do Concílio de Trento, nos quais se afirma a doutrina oficial da Igreja sobre os sacramentos, não são “definições dogmáticas”. Pela simples razão que os bispos e teólogos daquele Concílio não chegaram a entrar em acordo sobre a questão capital que lhes foi proposta, a saber, se as proposições que, na mencionada Sessão se afirmam, eles as rejeitariam como “erros” ou como “heresias” (CT, vol. C, 844, 31-32).
Do estudo minucioso das Atas dos Concílio, isto é o que se diz e se deduz (CT, vol. V, 844-967). Além disso, nem o conceito de “anátema”, nem o de “heresia” significavam sempre, na linguagem de Trento, a exclusão da fé e da comunhão com a Igreja (P. F. Fransen, P. H. Lennerz...). Tudo isto são coisas que qualquer estudioso que tenha se preocupado seriamente em analisar e explicar a teologia do Concílio de Trento e a história do Magistério da Igreja conhece perfeitamente.
Especificando mais, em relação ao matrimônio dos cristãos, é bem conhecido que a Igreja, durante séculos, admitiu o divórcio em determinados casos. Por exemplo, o Papa Gregório II (ano 726) responde ao bispo São Bonifácio, que lhe havia feito esta consulta: O que deve fazer o marido cuja mulher tenha adoecido e, como consequência, não pode lhe dar o débito conjugal?
“Seria bom que tudo continuasse igual e houvesse a continência. Todavia, como isso é para homens grandes, aquele que não conseguir se conter, que volte a se casar. Mas, que não deixe de ajudar economicamente a quem adoeceu e não ficou excluída por culpa detestável” (PL 89, 525). O mesmo ensinamento se encontra em outra resposta do Papa Inocêncio I a Probo (PL 20, 602-603; cf. J. Gaudemet; R. Metz – J. Schlick; M. Sotomayor). Se estes papas ensinavam isto, a quem damos atenção agora? Aos papas de outrora ou aos cardeais de agora?
E no que se refere à missa de costas para o povo, sabe-se com segurança que foi um costume introduzido em fins do século oitavo, quando as pessoas já não entendiam o latim e o clero se empenhou em manter a língua oficial do antigo império, com o inevitável e conseguinte distanciamento entre a “liturgia” e a “vida dos fiéis”. Assim, consumou-se a identificação da Igreja com o clero e seu distanciamento do povo. Triunfaram as ideias de Floro de Lyon e Amalário (A. Kolping; P. Oppenheim; Y. Congar), mas a “religiosidade clerical” se distanciou mais e mais da vida e das preocupações das pessoas.
Assim são as coisas. Suponho que não será complicado compreender a razão pela qual não saio de meu espanto. É possível que, a estas alturas da vida e da história, existam importantes dirigentes da Igreja que não suportam as tentativas do Papa Francisco de aproximar as preocupações do clero às preocupações das pessoas? Mais ainda, será verdade que, nas altas esferas da Igreja, existam importantes gestores do governo eclesiástico a quem importam mais sua dignidade e seus poderes, que o sofrimento, o medo e o futuro dos mais desamparados deste mundo?
Nota da IHU On-line:
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“Espanta-me que Müller e Sarah sejam tão intransigentes em questões que não são dogmas”. Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU