27 Novembro 2017
“Encontramo-nos diante de um conflito (aquele vivido pelo Papa e que se vive na Igreja) que nos traz à mente a “memória perigosa” daquele que foi o grande conflito que Jesus viveu: acolhido pelo sofrimento do povo simples e odiado (também temido) pela ambição daqueles que possuíam o poder”. A reflexão é de José María Castillo, teólogo espanhol, em artigo apresentado no I Encontro Internacional de Jornalistas Pró-Papa Francisco, publicado por Religión Digital, 25-11-2107. A tradução é de André Langer.
Constatamos
1. Ninguém nega que o Papa Francisco é uma figura controversa: ele provoca e encontra, ao mesmo tempo, “acolhida” e “rejeição”. Acolhida que vem de amplos setores do “povo pobre e humilde”. E rejeição que vem, em grande medida, dos “representantes do poder”, dos gestores do sistema (econômico-político e dos poderes que sustentam e apoiam o mencionado sistema). Portanto e ao mesmo tempo, o Papa Francisco é visto (aparentemente) como “solução” para os indigentes e “ameaça” para os poderosos.
Se, de fato, o que dissemos apresenta adequadamente o que realmente estamos vivendo, encontramo-nos diante de um conflito (aquele vivido pelo Papa e que se vive na Igreja) que nos traz à mente a “memória perigosa” daquele que foi o grande conflito que Jesus viveu: acolhido pelo sofrimento do povo simples e odiado (também temido) pela ambição daqueles que possuíam o poder. Foi o que aconteceu na vida de Jesus. E é o que estamos vivendo neste momento na Igreja.
2. Os meios de comunicação, que “informam” e, ao informar, inevitavelmente “interpretam” esse personagem, que é o atual Papa, um homem tão discutido, fazem sua “interpretação” do Papa, e não a partir das carências daqueles que o aceitam, mas a partir dos interesses daqueles que o rejeitam. Incluídos, como protagonistas desta rejeição, não poucos clérigos de todos os níveis e numerosos leigos muitas vezes vinculados a grupos integristas e conservadores. E não nos esqueçamos de que o lugar “de onde” se vê a realidade é o fator que mais fortemente determina e condiciona “como se vê a realidade”. Não se vê a vida da mesma maneira olhando de um palácio do centro ou de uma favela da periferia. Acontece, portanto, que muitas vezes não percebemos o que realmente está acontecendo. Em todo caso, parece que se pode afirmar que este duplo fenômeno (aceitação e rejeição do Papa) está acontecendo mais do que certamente suspeitamos.
3. Não esqueçamos que o perigo de desfigurar ou distorcer a imagem do Papa (e sua mensagem) equivale a distorcer ou desfigurar a realidade da Igreja e do Vaticano como centro do governo da Igreja. E também desfigurar a razão de ser do Vaticano como Estado.
4. Mas, sem dúvida, a coisa mais séria e preocupante que o atual papado colocou em evidência é a contradição vivida pela Igreja. Trata-se da contradição que estão deixando claro aqueles que não se cansam de insistir na comunhão com o Papa e na obediência que lhe devemos, mas, na hora da verdade, comungam com o Papa e lhe obedecem enquanto o Papa pensa, fala e age como eles gostam ou acham melhor. É fato que a maior oposição ao Papa Francisco tem sua origem em setores do clero – a começar por alguns cardeais – que não concordam com a sua maneira de pensar, viver e governar.
5. Quanto ao demais, quando falamos do papado e da gestão dos assuntos mais sérios da Igreja, é importante ter presente que estamos falando de um sistema de governo, para a necessária gestão da Igreja, que não está devidamente atualizado em não poucos aspectos de notável influência. O simples e preocupante fato de que a Igreja – como instituição religiosa e como Estado – não possa subscrever (a estas alturas) o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, bem como o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (ambos assinados nas Nações Unidas em 1966, como parte da implementação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 10-12-1948), é um claro indicador de que a nossa Igreja ainda hoje é uma instituição desatualizada e estagnada em questões de grande atualidade e importância. Transferir e aplicar os direitos de uma instituição religiosa aos direitos de uma instituição política desemboca inevitavelmente em uma situação de ambiguidade, que se traduz em uma fonte de incessantes mal-entendidos e contradições.
Pedimos
1. A devida reformulação e atualização dos dicastérios e Congregações da Santa Sé, que foram pensados e organizados para outra Igreja de outros tempos, em que os problemas e as necessidades da Igreja eram situações e realidades muito diferentes das situações e necessidades que a Igreja tem hoje.
2. Em primeiro lugar, deveria ficar muito claro que na Igreja não existe, nem as pessoas deveriam ver nela, nada que seja contra o Evangelho. Devemos dizer com toda clareza e força que a Igreja não tem nem autoridade nem poder para fazer nada que seja contra o Evangelho. E ter presente que este critério teria que ser aplicado primeiramente às coisas e assuntos mais óbvios e visíveis da Igreja. Os representantes da Igreja não devem, não podem, distinguir-se por seus privilégios, ostentação, dignidades; tudo o que representa uma diferença ou superioridade sobre os últimos e os mais desamparados, teria que ser banido. Esta deveria ser a coisa mais urgente na Igreja neste momento.
3. Pedimos ao Papa que informe a Igreja sobre as verdades que o Magistério da Igreja propôs – e segue exigindo sua aceitação – como “verdades de fé divina e católica” (Constituição Dogmática Dei Filius, Concílio Vaticano I, cap. III): “Deve-se, pois, crer com fé divina e católica tudo o que está contido na palavra divina escrita ou transmitida pela Tradição, bem como tudo o que a Igreja, quer em declaração solene, quer pelo Magistério ordinário e universal, nos propõe a crer como revelado por Deus” (Denz.-Hün, 3011). Tudo o que não é, com certeza, uma verdade de fé divina e católica, pode ser modificado, interpretado ou aplicado de acordo com as necessidades dos fiéis e da humanidade em geral quando há motivos sérios para isso. Por exemplo, é inexplicável o conflito que vivemos recentemente por causa de uma questão que não pertence à fé divina e católica: a indissolubilidade do matrimônio e a casuística que ela suscitou.
4. A hermenêutica deve ser aplicada (a grande descoberta do século XX) não apenas à Palavra de Deus (a Bíblia), mas também à palavra da Igreja, o Magistério. Para dar um exemplo, é evidente que a afirmação do Credo de Niceia: “Creio em Deus Pai Todo-Poderoso”, o Pantokrator, um termo que não aparece na Bíblia, uma vez que, como se sabe, o “pantokrator” foi, na Antiguidade tardia, um título imperial que era entendido como “o senhor do mundo”. Semelhante Deus não é o Deus que Jesus nos revelou no Evangelho.
5. Pedimos que a Igreja se organize e estruture para responder mais às necessidades (de fé e vida) dos fiéis, do que para cumprir fielmente as tradições eclesiásticas, muitas das quais já não respondem às necessidades dos crentes de hoje. Por exemplo, é difícil justificar a manutenção da lei do celibato eclesiástico ao preço de deixar milhares de paróquias sem a adequada administração dos sacramentos. Na Igreja existem agora centenas (talvez milhares) de paróquias que não podem ter missa todos os domingos.
6. E também pedimos, como uma questão de capital importância, que haja mais transparência na Igreja. Ou seja, que nem o Vaticano, nem as dioceses, nem a vida dos “homens da religião” tenham algo a esconder. Somente dessa maneira será possível falar com liberdade, de forma clara e sem dupla intenção. No dia em que esse objetivo puder ser alcançado, a Igreja poderá ter a credibilidade que não tem perante amplos setores da população.
Nos comprometemos
1. Não esconder ou marginalizar informações religiosas, por uma questão de menor importância ou de pouco interesse. Nunca deveríamos esquecer que religião e política ainda são inseparáveis. É escandaloso que, neste momento, existam agrupamentos políticos que, obtendo conquistas importantes à custa da religião, escondem suas profundas vinculações com dignitários religiosos e seus interesses. É hora de perguntar se um dos motivos que explicam os êxitos do Islã, não está em que, nessa confissão religiosa, não se ocultam, mas que estão em primeira linha as conexões óbvias que reduzem a uma só coisa dois componentes básicos: o fato religioso e o fato político. Não esqueçamos que, na realidade da vida, o “religioso” e o “político” são duas dimensões da vida do ser humano na sociedade. Duas realidades inseparáveis, por mais que o sujeito não tenha consciência de que as vive e estão presentes em sua intimidade e em seu comportamento, mesmo que não pertença a uma religião ou a um partido político.
2. Não usar as informações religiosas para colocá-las a serviço de interesses nacionalistas ou partidários. Este ponto é particularmente delicado quando se trata de informar sobre a pessoa do Papa Francisco. Um homem próximo dos pobres e comprometido com a dignidade e os direitos dos humildes e marginalizados é, por isso mesmo, um homem exposto a ser identificado (ou em sintonia) com partidos da esquerda política.
3. Se quisermos falar sobre religião e informar sobre ela, será necessário que, na medida do possível, nos proponhamos a ter uma formação religiosa básica que permita compreender e comunicar adequadamente e com a devida competência e precisão o que dizemos e o que pode interessar aos nossos leitores.
4. Evitar, no que depender de nós, o silêncio, a passividade ou a marginalidade dos líderes eclesiásticos nos assuntos mais atuais e importantes da vida pública. É escandaloso que a Igreja, para não se indispor com os poderes de que recebem importantes ajudas ou privilégios, não aborde determinados assuntos que afetam a ética e a vida pública de forma, às vezes, clamorosa. Basta pensar nos escândalos de corrupção ou na gestão econômica que é a principal causa das escandalosas desigualdades que ocorrem no mundo e em não poucos países.
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Como apoiar o Papa Francisco? Minhas propostas para resolver o confronto que estamos vivendo na Igreja. Artigo de José María Castillo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU