22 Janeiro 2018
A moda jornalística deste verão é perguntar por que o Papa Francisco não vem para a Argentina. O gênero admite possibilidades ricas e variadas. O Clarín trabalha uma vertente surrealista: trata de induzir a interpretação de que a Igreja Católica Argentina repudia aqueles que utilizam Francisco para uma política conflitiva contra o governo de Macri, o que claramente contradiz o texto do documento episcopal sobre isso. Porque, se restaram dúvidas ao leitor sobre o verdadeiro motivo da cúpula eclesiástica, o matutino (em seu portal) intercala um link que corresponde a uma nota publicada pelo jornalista Roa, dedicada a reprender Francisco com uma linguagem entre inteligente e histérica ao considerar sua intromissão na vida política nacional.
Ele diz, por exemplo: "Grabois não precisaria receber tamanha importância se não fosse pelo privilégio que Bergoglio lhe dá sobre o episcopado para oferecer sua versão da sociedade". Ou seja, Roa faz exatamente o que a igreja local rejeita publicamente utilizando, como de costume, um estilo mais prudente e equilibrado. Morales Solá, no La Nación, incorpora um matiz: aconselha os macristas a não concederem ao Papa uma inimizade com Macri e incorpora uma leitura histórica que nos permite inferir uma excelente relação entre os dois, convenientemente temperada pela demonstração de rancor que, em vez disso, separaria o pontífice de Cristina.
A reportagem é de Edgardo Mocca, publicada por Página/12, 21-01-2018. A tradução é de Henrique Denis Lucas.
O Papa passou pelo Chile, é disso que se trata. E talvez seria interessante considerar o que ele fez e disse no Chile, como uma pista para responder à pergunta. Para tornar o recurso metodológico mais completo, poderia ser adicionado o conteúdo de muitas atividades e de muitas viagens de Francisco, como uma forma de orientar a revisão do problema. Por exemplo, os sucessivos encontros com líderes de movimentos sociais de todo o mundo. Poderíamos somar a leitura da mensagem Evangelium Gaudium e da encíclica Laudato si. Tudo isso para adentrar na essência da mensagem que o Papa colocou no centro de sua missão pastoral como chefe da Igreja, e pensar a questão da sua não visita à Argentina, a partir daí.
Qual é o fio condutor de todo esse sistema de sinais emitidos pelo Papa? Sem dúvida, trata-se da construção de um marco da doutrina social da Igreja orientado ao mundo de nossos dias. Essa doutrina, que nasceu com a encíclica Rerum Novarum, promulgada pelo Papa Leão XIII, em 1891, tinha em suas origens o propósito de intervir na questão das relações entre o trabalho e o capital. Tanto em suas vertentes mais conservadoras, quanto nas mais progressistas, o catolicismo colocou a questão da exploração do trabalho no centro de sua preocupação, estivesse esta sendo guiada pelo medo de rebelião operária ou pela solidariedade com os que sofrem a injustiça dessa exploração. Francisco, por sua vez, depara-se com um mundo concreto, que é o que prevaleceu nas últimas décadas do século passado; o mundo da uniformidade capitalista, da ilimitada liberdade do capital para se mover em tempo real por todo o planeta, da inédita concentração da riqueza global, da colocação da política global e das armas dos poderosos a serviço incondicional da implantação deste novo deus de que o Papa fala, o "deus dinheiro". Por isso, a primeira viagem de seu pontificado foi à Lampedusa, um local emblemático do drama dos refugiados, dos que fogem de países devastados pela guerra colonial e pela injusta distribuição mundial de recursos. Por isso seus interlocutores são os pobres, os perseguidos, os discriminados.
Se formos seguir os rastros da mensagem e os locais escolhidos como sinais para comunicação, estaremos mais próximos da explicação política do assunto e mais distantes das artimanhas que tentam transformar o Papa argentino em um operador da política doméstica. Os comunicadores críticos do Papa - os que dizem o que os poderosos da Argentina pensam, mas não confessam - armaram o seu próprio relato, ou melhor, desenvolveram uma maneira de incluir o Papa no relato geral da história recente do país. Francisco é peronista. Por conseguinte, não está em conformidade que Macri governe o país. Sua recusa a visitar a Argentina seria assim uma maneira de incomodar o presidente, para demonstrar sua antipatia, de intervir politicamente contra ele.
A conduta do Papa é efetivamente política? Claro que sim: posicionar-se neste momento do mundo como um crítico da globalização neoliberal, afirmando que o capitalismo é a cultura do descarte, que "esta economia mata", que o derramamento das riquezas a partir da cúpula hiperconcentrada do capital em classes populares é uma visão fraudulenta e que tal coisa nunca aconteceu ou pode acontecer... Todas essas são definições claramente políticas. Mas reduzir Francisco ao lugar de um operador político argentino seria pura ignorância se não fosse também, como é, ocultação e manipulação.
Não se pretende aqui responder à questão da moda. Porque este não é o lugar da informação secreta, nem da premissa deslumbrante. Somente tenta-se pensar. E o que surge é uma dura e inegável inconveniência para o Papa de colocar em cena sua linguagem política de alcance global no território em que nasceu, onde se tornou padre e onde militou politicamente. Simplesmente porque seu país natal vive há muitos anos em uma época de contradições muito agudas, de antagonismos políticos profundos, não vividos durante muitas décadas. Como seria hoje uma visita do Papa ao nosso país? Ele se encontraria com Milagro Sala? Iria visitar prisioneiros que o são por fazerem parte do antagonismo, da oposição àqueles que exercem hoje o poder político, o poder econômico e o poder ideológico? Do que falaria com a Confederação Geral do Trabalho, com os militantes da economia popular ou com os sacerdotes populares que levam o evangelho a lugares em que o senso comum se identifica dominante e claramente com o tráfico de drogas e a corrupção? Sobre o que conversaria com os mapuches do sul do país se ele fizesse silêncio sobre a perseguição que eles sofrem por parte dos poderosos magnatas globais protegidos pelas armas de policiais e prefeitos encorajados pelo discurso punitivo do governo nacional? Teria de abster-se de falar sobre a morte de Santiago Maldonado e Rafael Nahuel? A lista poderia continuar, mas é claro que a Argentina, além de ser sua terra natal, é um território crítico importante para a mensagem papal. Uma visita em momentos como estes o colocaria no centro de um vórtice comunicativo e permitiria que ele fosse mostrado usando seu lugar político (Francisco também é um chefe de estado) para prejudicar o atual governo, para desestabilizá-lo. Isto não é pura imaginação, tem um precedente histórico: o Papa Wojtyla decidiu militar ativamente no interior do drama de seu país, a Polônia, para desestabilizar o regime comunista. Francisco decidiu não repetir essa experiência que faz parte de uma longa saga de desprestígio do catolicismo, motivada pela predisposição de suas cúpulas a se mostrarem alinhadas com os poderes políticos hegemônicos globalmente.
O Papa disse no Chile que devemos abandonar o ponto de vista de que existem culturas superiores e culturas inferiores. Isso é uma verdadeira blasfêmia contra o culto liberal. A este respeito, o cientista social italiano Loris Zanatta adotou um papel hiperativo no questionamento do populismo e o anti-liberalismo de Francisco. Ele repreende que o Papa fale mais frequentemente sobre o "povo" do que de "direitos". Incomoda-lhe colocar o povo como um sujeito místico e os pobres como o emblema necessário para a evocação da mensagem cristã. Claro, ele critica nada menos do que a religiosidade do Papa. Mas o mérito desta intervenção é que coloca o problema da viagem ou da não viagem de Francisco em termos mais sérios.
O problema de Francisco não é com Macri, é com o capitalismo realmente existente, ou seja, o capitalismo neoliberal, mundialmente ilimitado e em processo de devorar todas as identidades que não se submetam à sua lógica predatória. Zanatta tem razão, o Papa rejeita a visão liberal de mundo. Ou para sermos mais precisos, rejeita a cosmovisão que autoriza o capitalismo contemporâneo a uma conduta global que ameaça a sobrevivência dos seres humanos e de muitas outras formas de vida sobre a face da terra. A do Papa é uma ideologia, é claro. Mas a má notícia para o crítico italiano é que o liberalismo - velho ou novo - também é uma ideologia.
A liberdade de mercado, a segurança jurídica, a meritocracia, o capital humano e muitas outras expressões do gênero não são mais reais do que o povo, a justiça, ou mais ainda, a luta de classes, mesmo quando se apresentem como o ponto de chegada da evolução da cultura humana.
Ao falar dos perigos do populismo e do anti-liberalismo para as instituições da democracia, parece que falamos de outro planeta. Desconhece-se o real funcionamento do mundo ao deixar a escuridão que o capitalismo atual, sob a hegemonia da cultura política e das instituições liberais, seja dominado por 1% da população global sobre o resto da população do planeta, começando pela inédita concentração de riqueza nesse polo ultraminoritário, que são as empresas e não as constituições liberais que governam grande parte do mundo.
Que as liberdades e garantias individuais advindas das constituições e códigos civis não sejam aplicadas a uma enorme e crescente parte da humanidade. A velha e rica tradição liberal não é, obviamente, responsável por este desastre global. Mas é indiscutível que de seus textos nutriu-se o individualismo selvagem da nossa época, esse que considera a si próprio como uma cultura superior a partir do qual se pode olhar com desdém ao relato populista, cristão, comunista ou qualquer outro que não se adapte totalmente aos desígnios dos donos do dinheiro.
O individualismo neoliberal reconverteu uma doutrina originalmente humanista em uma saga lamentável que justifica a desigualdade, a discriminação e a guerra contra os povos e culturas, no nome exclusivo do domínio do capital. Deu ao liberalismo a forma selvagem e grosseira da qual hoje o mundo dispõe: nada menos do que o presidente dos Estados Unidos.
O capitalismo realmente existente não é uma plataforma culturalmente superior de onde se pode ver o mundo. Sua realidade é a de uma profunda decomposição política e moral. O Papa é uma voz global poderosa para todos os que enfrentam a ordem que hoje rege o mundo. Os argentinos não precisam que o Papa venha ao país. Podemos facilmente aceder às suas mensagens e conhecer sua doutrina. Melhor do que perguntar por que o Papa não vem seria tentar escutar e discutir as suas posições.
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Argentina. Por que o Papa não vem? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU