08 Novembro 2017
O novo livro do professor Rocco Buttiglione – Risposte amichevoli ai critici di Amoris laetitia [Respostas amigáveis aos críticos da Amoris laetitia] (Ed. Ares, nas livrarias italianas a partir de 10 de novembro) – e, especialmente, o artigo introdutório escrito pelo cardeal Gerhard Ludwig Müller parecem ter semeado uma certa confusão entre os críticos mais fortes de Papa Francisco.
A reportagem é de Andrea Tornielli, publicada no sítio Vatican Insider, 07-11-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
Para se dar conta disso, basta começar da última reflexão publicada no blog de Sandro Magister, que, no título, nos adverte que “as dubia estão mais vivas do que nunca. E Müller acrescenta uma totalmente sua”. No texto, na realidade, não se entende bem qual é a dúvida nova que Müller teria acrescentado. Contudo, entende-se muito bem que o purpurado demole a primeira dúvida dos cardeais (e, consequentemente, todas as outras).
Capa do novo livro do filósofo italiano Rocco Buttiglione (Foto: Divulgação)
Segundo Magister, “o cardeal levanta a perspectiva própria – explicitamente – de um único caso de eventual acesso à comunhão por parte de um católico que passou a uma nova união e com o primeiro cônjuge ainda vivo. E é o caso em que o primeiro matrimônio, mesmo que celebrado na Igreja, deve ser considerado inválido pela ausência de fé ou de outros requisitos essenciais no momento da celebração, mas tal invalidez ‘não pode ser provada canonicamente’”.
Deixemos de lado o fato de que, na realidade, o cardeal Müller – basta ler o prefácio do livro de Buttiglione para se dar conta disso – também considera outros casos de responsabilidade diminuída. Limitemo-nos, portanto, a esse único caso reconhecido por Magister. O autor do blog Settimo Cielo não só reconhece que o cardeal considera esse caso como aceitável, mas parece que ele mesmo também o considera aceitável. E afirma até que essa tese já havia sido proposta por Joseph Ratzinger.
Temos, então, pelo menos um caso em que é lícito dar a comunhão a divorciados em segunda união. É um caso, diz-nos Magister, “totalmente tradicional”. Vendo bem, isso não é totalmente verdade, já que, tradicionalmente, vigorava, sobre isso, uma proibição disciplinar. Mas é possível ser dispensado da proibição disciplinar, e ela pode ser atenuada ou até mesmo removida.
Nesse ponto, porém, a primeira e fundamental dúvida dos quatro cardeais (Carlo Caffarra, Raymond Leo Burke, Walter Brandmüller e Joachim Meisner) é claramente superada. Por completude, trazemos o seu texto à memória:
“Pergunta-se se, de acordo com quanto se afirma em Amoris laetitia, n. 300-305, se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e, portanto, admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo matrimonial válido, convive ‘more uxorio’ com outra, sem que estejam cumpridas as condições previstas por Familiaris consortio, n. 84, e entretanto confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n. 34, e por Sacramentum caritatis, n. 29. Pode a expressão ‘[e]m certos casos’, da nota 351 (n. 305) da exortação Amoris laetitia, ser aplicada a divorciados com uma nova união que continuem a viver ‘more uxorio’?”
A resposta, de acordo com Müller (e neste ponto, também devemos considerar o mesmo para Magister), é “sim”: existe pelo menos um caso em que isso pode ser lícito.
Se existe pelo menos um caso em que isso é lícito, então a acusação de heresia lançada contra o papa pelos signatários da Correctio filialis é falsa, e quem a assinou caluniou o sucessor de Pedro.
Francisco, na exortação, não especifica em que casos a admissão aos sacramentos pode ser lícita. Ele se limita a dizer “em certos casos”. Os casos aceitos agora por Magister – que, aliás, não são todos dos quais Müller fala – são suficientes e avançam.
Tentemos, portanto, ver como seria reformulada a primeira dúvida dos cardeais à luz das admissões de Magister:
“Pergunta-se se, de acordo com quanto se afirma em Amoris laetitia, n. 300-305, se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e, portanto, admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo matrimonial válido, convive ‘more uxorio’ com outra, sem que estejam cumpridas as condições previstas por Familiaris consortio, n. 84, e entretanto confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n. 34, e por Sacramentum caritatis, n. 29. Pode a expressão ‘[e]m certos casos’, da nota 351 (n. 305) da exortação Amoris laetitia, ser aplicada a divorciados com uma nova união que continuem a viver ‘more uxorio’, salvo o caso em que eles sejam fundadamente convencidos em consciência da invalidez do seu matrimônio, embora não sejam capazes de oferecer a prova canônica para tanto?”
Passemos agora às teses defendidas pelo professor Roberto de Mattei no site Corrispondeza Romana. Só agora, isto é, depois da publicação dos artigos de Buttiglione, De Mattei admitiu que existe a não imputabilidade. E, hoje, de fato, ele defende que “a não imputabilidade, completa ou parcial, portanto, reduz-se a raros casos, como os de embriaguez, demência, doenças psíquicas, hipnose, sono ou sonambulismo. Nesses casos, faltam as condições do ato livre, porque não é possível o domínio da pessoa sobre os atos do seu intelecto ou da sua vontade”.
Seria preciso notar, na realidade, como Buttiglione recordou várias vezes, que não existe apenas a não imputabilidade, mas também a responsabilidade reduzida como consequência de circunstâncias atenuantes: um caso que é muito mais frequente e pode desclassificar um pecado mortal a pecado venial.
Limitemo-nos, porém, apenas à não imputabilidade na definição dada por De Mattei: existem alguns casos nos quais os sacramentos podem ser concedidos porque, neles, a culpa não é imputável. De Mattei insiste no fato de que esses casos são pouco numerosos, embora, vistas superficialmente, neuroses, psicoses, depressões e outras doenças psíquicas parecem envolver um número cada vez crescente de pacientes no nosso tempo. Mas o papa nunca afirmou que esses casos fossem numerosos.
O problema, porém, não é se os casos são poucos ou muitos. O problema é que existem, pelo menos, alguns casos, e, portanto, não se compreende com base em que pode ser posta em discussão a ortodoxia da Amoris laetitia, chegando até a afirmar – como fizeram todos os signatários da Correctio filialis – que o papa “defende heresias”.
Vejamos, agora, como deveria ser reformulada a primeira das dubia cardinalícias, reescrita também à luz do repensamento do professor De Mattei:
“Pergunta-se se, de acordo com quanto se afirma em Amoris laetitia, n. 300-305, se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e, portanto, admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo matrimonial válido, convive ‘more uxorio’ com outra, sem que estejam cumpridas as condições previstas por Familiaris consortio, n. 84, e entretanto confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n. 34, e por Sacramentum caritatis, n. 29. Pode a expressão ‘[e]m certos casos’, da nota 351 (n. 305) da exortação Amoris laetitia, ser aplicada a divorciados com uma nova união que continuem a viver ‘more uxorio’, salvo o caso em que eles sejam fundadamente convencidos em consciência da invalidez do seu matrimônio, embora não sejam capazes de oferecer a prova canônica para tanto, e também excluindo os casos de não imputabilidade em que faltam as condições do ato livre, porque não é possível o domínio da pessoa sobre os atos do seu intelecto ou da sua vontade?”
Isso é tudo? Ainda não. De fato, não se pode deixar de citar o que escreveram os signatários do já famoso ato de correção filial. Eles decidiram escrever em latim, mas a solenidade da língua de Cícero não basta para mascarar a inconsistência da argumentação:
“Christifidelis qui, divortium civile a sponsa legitima consecutus, matrimonium civile (sponsa vivente) cum alia contraxit; quique cum ea more uxorio vivit; quique cum plena intelligentia naturae actus sui et voluntatis propriae pleno ad actum consensu eligit in hoc rerum statu manere: non necessarie mortaliter peccare dicendus est, et gratiam sanctificantem accipere et in caritate crescere potest.”
Que, traduzido [conforme a versão oficial em português da Correctio filialis], significa:
“Os católicos que obtiveram um divórcio civil do cônjuge com o qual estão validamente casados e contraíram um matrimônio civil com alguma outra pessoa durante a vida de seu cônjuge, e que vivem more uxore com seu parceiro civil, e que escolhem permanecer nesse estado com pleno conhecimento da natureza de seu ato e com pleno consentimento do ato pela vontade, não estão necessariamente em estado de pecado mortal e podem receber a graça santificante e crescer na caridade.”
Mas o Papa Francisco realmente nos diz que se pode viver sem pecado com uma mulher que não é a própria esposa, fazendo isso “com pleno conhecimento da natureza de seu ato e com pleno consentimento”? É inútil citar aqui as tantas passagens em que o papa fala de circunstâncias atenuantes que derivam, justamente, da ausência de pleno conhecimento e pleno consentimento (cf. 301-303 da Amoris laetitia).
Eis, portanto, a última versão da primeira das dubia cardinalícias, reformulada também com a revisão proposta pelos signatários da Correctio filialis:
“Pergunta-se se, de acordo com quanto se afirma em Amoris laetitia, n. 300-305, se tornou agora possível conceder a absolvição no sacramento da Penitência, e, portanto, admitir à Sagrada Eucaristia, uma pessoa que, estando ligada por vínculo matrimonial válido, convive ‘more uxorio’ com outra, sem que estejam cumpridas as condições previstas por Familiaris consortio, n. 84, e entretanto confirmadas por Reconciliatio et paenitentia, n. 34, e por Sacramentum caritatis, n. 29. Pode a expressão ‘[e]m certos casos’, da nota 351 (n. 305) da exortação Amoris laetitia, ser aplicada a divorciados com uma nova união que continuem a viver ‘more uxorio’, salvo o caso em que eles sejam fundadamente convencidos em consciência da invalidez do seu matrimônio, embora não sejam capazes de oferecer a prova canônica para tanto, e também excluindo os casos de não imputabilidade em que faltam as condições do ato livre, porque não é possível o domínio da pessoa sobre os atos do seu intelecto ou da sua vontade, e salvo os casos em que falta o pleno conhecimento da natureza de seu ato e o pleno consentimento?”
Neste ponto, incluindo no dubium as exceções representadas pelos casos 1) de invalidez matrimonial considerada em consciência, embora não canonicamente comprovável; 2) de não imputabilidade em que falta o domínio da pessoa sobre os atos do seu intelecto e da sua vontade; e 3) do análogo caso de falta de pleno conhecimento e pleno consentimento; “deslizamos”, enfim, para as posições defendidas por Rocco Buttiglione. Ou, melhor, na realidade, para aquelas diretamente afirmadas pelo papa.
Vendo bem, fomos até além da Amoris laetitia, que se limitava a dizer que, talvez, em certos casos, se poderia até pensar em dar o sustento dos sacramentos a quem se encontra em certas situações, mas sem cair em nenhuma casuística.
Embora tiveram que modificar radicalmente as suas posições, os críticos do papa continuam a sua obra, mas, para fazê-la, são obrigados a lhe atribuir afirmações que ele, com todas as evidências, nunca sustentou.
Por fim, não se exclui que a Amoris laetitia possa ter se transformado, pelo menos para alguns, na oportunidade para dar vazão a sentimentos há muito tempo acumulados contra o Concílio Ecumênico Vaticano II e contra os papas do Concílio, todos eles.
O pretexto, porém, foi mal escolhido, como demonstra aquilo que aconteceu nestes dias com as “correctiones” às quais os corretores foram forçados. Muitos se autoatribuíram a autoridade de Santo Atanásio. Muitos querem arrasar os supostos “hereges” para a frente do seu tribunal autoconstituído, chegando a acusar até o papa de heresia. Muitos provocam uma confusão contínua nos seus círculos midiáticos autorreferenciais, para, depois, dizerem que “há confusão” na Igreja hoje.
Estará nas livrarias italianas no dia 10 de novembro o volume de Rocco Buttiglione Risposte amichevoli ai critici di Amoris laetitia [Respostas amigáveis aos críticos da Amoris laetitia] (Ed. Ares, 208 páginas): o filósofo responde às críticas dirigidas ao Papa Francisco, às “dubia” e à “correctio filialis”. O livro abre com um articulado artigo introdutório do cardeal Gerhard Ludwig Müller, prefeito emérito da Congregação para a Doutrina da Fé.
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Müller, Buttiglione e a ''confusão'' dos críticos do papa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU