19 Junho 2017
Arábia Saudita tenta isolar o emirado, que ousou relacionar-se com o Irã. Mas petróleo, Al-Jazeera, e a maior base dos EUA no Oriente Médio tornam tudo mais difícil.
A análise é de Robert Fisk, jornalista, publicada por The Independent e reproduzida por Outras Palavras, 18-06-2017. A tradução é de Vila Vudu.
A crise no Qatar prova duas coisas: a infantilização continuada dos Estados árabes e o total colapso da unidade dos muçulmanos sunitas, unidade que teria sido supostamente criada pela participação absurda de Donald Trump na conferência de cúpula dos sauditas, há duas semanas.
Depois de prometer lutar até a morte contra o “terror” xiita iraniano, a Arábia Saudita e parceiros mais íntimos agora se mobilizaram para combater um de seus vizinhos mais ricos, o Qatar, que seria a cabeça do “terror”. Só em peças de Shakespeare se vê traição de tais proporções. Nas comédias de Shakespeare, claro.
Porque, na verdade, há algo de inacreditavelmente delirante nessa charada. Claro que cidadãos do Qatar com certeza contribuíram para o Estado Islâmico (ISIS). Mas, isso, cidadãos da Arábia Saudita também fizeram.
Nenhum qatari disparou aviões dia 11/9 contra New York e Washington. Mas todos os 19 assassinos eram sauditas. Bin Laden não era qatari. Era saudita.
Mas Bin Laden dava preferência ao canal al-Jazeera do Qatar, para divulgar suas falas pessoais, e foi o canal al-Jazeera quem tentou dar novo ânimo aos desesperados da al-Qaeda/Jabhat al-Nusrah na Síria, garantindo ao líder deles horas e horas de transmissão gratuita para explicar que, sim, eram grupo muitíssimo moderado, amante da paz.
Primeiro, tiremos da frente as partes histericamente cômicas dessa história. Vejo que o Iêmen estaria rompendo suas conexões aéreas com o Qatar. A notícia deve ser sido um choque para o pobre emir do Qatar, Xeique Tamim bin Hamad al-Thani, porque o Iêmen – sob bombardeio ininterrupto pelos ex-amigos do Qater — Arábia Saudida e Emirados Árabes –, já não tem sequer um avião aproveitável com o qual criar — imaginem romper — conexões aéreas.
As Maldivas também romperam relações com o Qatar. Pelo sim, pelo não, o rompimento nada tem a ver com o vultoso empréstimo que sauditas acabam de prometer às Maldivas, por cinco anos; nem com a proposta, de uma imobiliária saudita, de investir na construção de um resort familiar nas Maldivas; nem com a promessa, feita por clérigos islamistas sauditas, de construir dez mesquitas “de classe internacional” nas Maldivas.
E isso para nem falar do grande número de crentes fervorosos do ISIS e de outros cultos islamistas, que chegam ao Iraque e Síria para lutar a favor do Estado Islâmico vindos – ora essa! Das Maldivas.
Agora que o emir do Qatar está sem soldados suficientes para defender o próprio pequeno país, os sauditas resolvem que ele teria de solicitar que os exércitos sauditas invadam o Qatar para restaurar a estabilidade – como os sauditas em 2011 persuadiram o rei do Bahrain a fazer. Mas o xeique Tamim sem dúvida espera que a gigantesca base aérea militar dos EUA no Qatar seja suficiente para conter a generosidade saudita.
Quando perguntei ao pai de Tamin, xeique Hamad (que adiante foi impiedosamente derrubado do poder por Tamin) por que não despachara os norte-americanos para bem longe do Qatar, ele respondeu: “Porque, se tivesse despachado, meus irmãos árabes me invadiriam.”
Tal pai, tal filho, acho eu. God Bless America.
Tudo começou – conforme querem que acreditemos – com um suposto ataque de hackers contra a Agência Qatar News, que expôs alguns comentários pouco elogiosos, mas incomodamente corretos, do emir do Qatar sobre a necessidade de manter um relacionamento com o Irã.
O Qatar negou a veracidade da história. Os sauditas resolveram que era tudo verdade e divulgaram aqueles conteúdos pela própria (e mortalmente entediante) rede de televisão estatal. O supracitado emir — essa era a mensagem — fora longe demais daquela vez. Os sauditas, não o minúsculo Qatar, mandam no Golfo. E a visita de Donald Trump não comprovou precisamente isso?!
Mas os sauditas têm outros problemas com os quais se preocupar. O Kuwait, longe de romper relações com o Qatar, faz agora as vezes de pacificador entre Qatar e sauditas e Emirados. O Emirado de Dubai é muito próximo do Irã, recebeu dezenas de milhares de expatriados iranianos e absolutamente não segue o exemplo de ira anti-Qatar que vem de Abu Dhabi, capital dos Emirados Árabes Unidos.
Há poucos meses, o Omã estava até fazendo manobras navais conjuntas com o Irã. O Paquistão há tempos declinou o convite para mandar seus exércitos ajudar os sauditas no Iêmen, porque os sauditas requereram só soldados sunitas, não soldados xiitas; o exército paquistanês sentiu-se muito compreensivelmente ultrajado ao se dar conta de que a Arábia Saudita já agia para dividir até o corpo militar paquistanês.
Há boatos de que o ex-comandante do Exército do Paquistão, general Raheel Sharif, estaria a ponto de se demitir da presidência da aliança muçulmana patrocinada pelos sauditas para combater o “terror”.
O presidente marechal de campo al-Sissi do Egito andou chiando contra o Qatar por apoiar a Fraternidade Muçulmana no Egito – e o Qatar, sim, apoia mesmo o grupo agora banido, que Sissi diz, erradamente, que seria parte do ISIS – mas o Egito, embora receba milhões dos sauditas, tampouco tem intenção de mandar soldados seus para ajudar os sauditas naquela guerra catastrófica que fazem contra o Iêmen.
Além disso, Sissi precisa de seus soldados egípcios para expulsar o ISIS e manter, mancomunado com Israel, o sítio contra a Faixa de Gaza palestina.
Mas, se se olha um pouco adiante pela estrada, não é difícil ver o que realmente preocupa os sauditas. O Qatar também mantém silenciosos laços com o regime de Assad, na Síria; ajudou a libertar com segurança as freiras cristãs sírias sequestradas pela [frente] Jabhat al-Nusrah; e ajudou a libertar soldados libaneses sequestrados pelo ISIS no oeste da Síria. Quando as freiras deixaram o cativeiro, agradeceram a ambos, a Bashar al-Assad e ao Qatar.
E há suspeitas crescentes no Golfo de que o Qatar tem ambições muito maiores: financiar a reconstrução da Síria pós-guerra. Mesmo se Assad permanecer como presidente, a dívida síria poria a nação sob controle econômico do Qatar.
Isso, sim, daria ao minúsculo Qatar duas taças de ouro. Ele teria um império territorial que faria dupla com o império midiático al-Jazeera. E estenderia a prodigalidade aos territórios sírios, que muitas empresas de petróleo gostariam de usar como rota de oleodutos do Golfo Pérsico à Europa via Turquia, ou via navios-tanques petroleiros, do porto sírio de Lattakia.
Para os europeus, essa rota reduz as chances de serem chantageados pelo petróleo russo, e cria vias marítimas para o petróleo, menos vulneráveis se os navios-tanque não tiverem de cruzar o Golfo de Hormuz.
É ganho muito considerável para o Qatar – ou para a Arábia Saudita, claro, se o que se diz sobre os EUA apoiarem os dois emires, Hamad e Tamim, não se confirmar. Uma força militar saudita no Qatar permitiria a Riad mamar todo o gás líquido que há no emirado.
Mas evidentemente os sauditas “antiterror” e amantes da paz – deixemos de lado por um instante as degolas – jamais desejariam a um irmão árabe destino tão desgraçado.
Assim sendo, esperemos que, pelo menos por enquanto, as linhas aéreas da Qatar Airways sejam a única parte esquartejada do corpo político qatari.
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Qatar: a crise e seus impactos geopolíticos - Instituto Humanitas Unisinos - IHU