04 Mai 2011
“Mas para a maioria de seus compatriotas, Obama conseguiu em apenas uma semana uma verdadeira e tripla proeza. Tendo provado que era um presidente legítimo, pôde, munido de sua certidão de nascimento e também armado do exército mais poderoso do globo, eliminar o sinistro inimigo número um dos Estados Unidos. E sem a intervenção do Superman”, escreve Ariel Dorfman, em artigo publicado no jornal Página/12, 04-05-2011. A tradução é do Cepat.
Eis o artigo.
Será que é uma suprema coincidência? Ou, por acaso, há gato – ou super-herói – trancado? Para entender por que agora, justamente agora, se levou a cabo o julgamento de Bin Laden, talvez seja necessário vincular sua morte repentina e desejada aos dois acontecimentos aparentemente desconexos que ocorreram na semana passada.
O primeiro, que causou entre fanáticos da guerra entre o bem e o mal quase tanta consternação quanto o assassinato do funesto e lúgubre chefe da Al Qaeda, embora com menos júbilo, foi o anúncio de Superman (na historinha número 900 de aniversário que comemora suas peripécias) de que ameaçava, em discurso proferido na ONU, renunciar à cidadania norte-americana. O Homem de Aço, que desde a sua origem na revista em quadrinhos Action, de junho de 1938, se veste com as cores da bandeira yanqui e age em nome dos valores norte-americanos, chegou à tão drástica decisão após sofrer as censuras do encarregado pela segurança do governo norte-americano (um homem negro com um peregrino parecido com Colin Powell) por ter voado até Teerã para demonstrar durante 24 horas sua solidariedade com os manifestantes da revolução verde que protestavam contra o despotismo de Ahmadinejad e seus sequazes. O governo do Irã (na história em quadrinhos, certamente, já que duvido que os aiatolás reais se dediquem a ler dissimuladamente as aventuras do Superman) denunciou tal ato – por mais silencioso que fosse, e animado pela não violência – como uma ingerência do Grande Satanás em seus assuntos internos, quase como uma declaração de guerra. Não gosto em absoluto dos autocratas do Irã, mas não se pode objetar sua lógica de aceitar as palavras do próprio Homem de Aço a respeito de encarnar, há décadas, a “truth, justice and the American way” (a verdade, a justiça e o modo de ser/proceder dos Estados Unidos”). Assim que, o Superman, para poder agir doravante além das fronteiras nacionais e dos interesses circunstanciais de qualquer Estado, se viu obrigado a estabelecer sua independência em relação ao seu país adotivo. Porque, com efeito, o Superman não nasceu nos Estados Unidos, mas no planeta Krypton, chegando ainda bebê (sem passar por aduanas nem pela imigração) ao Kansas em uma pequena nave espacial, sendo acolhido nesse território, no centro dos Estados Unidos, pelos Kent, fazendeiros que personificam precisamente a “American way”. Era o Ka-El. Seria o Clark Kent.
É difícil exagerar a indignação com que este ato audaz de renúncia à cidadania, esta “bofetada”, do Superman foi recebido pelo povo norte-americano. Li (sério!) blogueiros que conclamam para deportar de volta ao seu planeta de origem o novo campeão do internacionalismo (como se fosse um mexicano “ilegal”), e já circula um pedido para que os executivos da Time Warner (donos da empresa que mercantiliza o Superman) obriguem os autores da história em quadrinhos a se retratarem. E múltiplos comentaristas conservadores haviam visto este insulto do super-herói como a prova definitiva da decadência do país mais poderoso da Terra: até o ídolo que representa mais universalmente o nosso modo de vida nos está dando as costas!
Não sei se o presidente Obama acompanha atentamente as aventuras do Superman (sabe-se que é um fã do Homem Aranha, de cuja origem novaiorquina não cabem dúvidas), mas alguém tem que ter chamado a atenção para o desgaste de prestígio que a deserção de um titã desses pode significar. O que acontece, por exemplo, se o Homem de Aço, líder dos despossuídos, decide fechar Guantánamo ou usar seus olhos de raio X para libertar alguns Super Wikileaks, agora que já não jura lealdade à bandeira norte-americana? O que acontece caso se colocar a serviço de uma potência como a China? – embora, pensando bem, não há muita Verdade ou Justiça nesse país, assim que seguramente não aceitaria esse tipo de aliança. Em todo o caso, os conselheiros de Obama devem ter explicado que uma possível defecção do Superman deveria ser tratada como uma imensa crise cultural e ideológica que inclusive poderia custar ao presidente a sua reeleição, posto que os republicanos já cozinhavam planos para acusá-lo de ter “perdido” o Superman (como se fosse Cuba ou o Vietnã).
A resposta de Obama foi genial: ao matar o Bin Laden, provava que os Estados Unidos não necessitam de um homem musculoso que voa e atravessa paredes para se defender dos terroristas, que, para isso, têm helicópteros e Navy Seals e computadores e armas – como que não – de aço. Um modo de restaurar a confiança nacional que não andava bem e que dificilmente poderia tolerar outro menosprezo à sua auréola.
Claro que antes que se pudesse realizar aquela operação no Paquistão Obama tinha que resolver outro assunto, um problema que o rondava há vários anos. Como anunciaria ao mundo o assassinato de Bin Laden em nome dos Estados Unidos se uma insólita porcentagem do seu próprio povo duvidava de que o presidente fosse, com efeito, norte-americano? Como criar o contraste com o trânsfuga Superman se o próprio Obama estava sendo acusado de ter nascido fora do país, no Quênia, que, como se sabe, está muito mais longe do Kansas do que do planeta Krypton, por mais que os três lugares têm em comum a kafkiana letra K? [No inglês, Quênia também se escreve com K]
Foi por conta disso que Obama exibiu publicamente há alguns dias sua certidão de nascimento, tapando a boca daqueles que o assinalavam como “alienígena” (alheio, estrangeiro, mas “alienígena” também significa extraterrestre, outro significado paralelo entre o presidente e o Super-herói). Certamente, um grupo de concidadãos seus segue acreditando que Obama não nasceu em território norte-americano. Insistem em que o documento foi falsificado e que o hospital foi subornado e que a mãe (nascida originalmente nada mais nem menos que no Kansas!) trouxe o menino contrabandeado do Havaí, porque sabia que em quarenta e poucos anos depois essa criança mulata seria presidente. Ocorre-me que a única maneira de esses recalcitrantes aceitarem que Obama nasceu nos Estados Unidos seria que pintasse o rosto e todo o corpo de branco. Nesse caso, já não seria mais um “alienígena”.
Mas para a maioria de seus compatriotas, Obama conseguiu em apenas uma semana uma verdadeira e tripla proeza. Tendo provado que era um presidente legítimo, pôde, munido de sua certidão de nascimento e também armado do exército mais poderoso do globo, eliminar o sinistro inimigo número um dos Estados Unidos. E sem a intervenção do Superman.
E agora?
Agora, proponho uma proeza de verdade: já que a razão pela qual Bush invadiu o Afeganistão era devido ao apoio que os talibãs ofereceram a Bin Laden, será que não chegou o momento de retirar todas as forças norte-americanas desse país de montanhas e guerrilhas?
Estou certo de que o Superman, em conjunto com a ONU e esgrimindo seu novo passaporte cosmopolita e global, estaria feliz em poder ajudar no transporte rápido das tropas. Seria bonito se pudéssemos ler isso nas próximas aventuras do Homem de Aço, seria confortante se Obama e o Superman – ambos com suas origens no Kansas, ambos menosprezados por serem “estrangeiros” – colaborassem na criação de pelo menos um pequeno oásis de paz em um mundo onde, infelizmente e ao menos por enquanto, tanto a verdade como a justiça são raras.
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Bin Laden e a última aventura do Superman - Instituto Humanitas Unisinos - IHU