O bom vinho da presença. Comentário de Adroaldo Palaoro

Foto: freepik

10 Outubro 2025

A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho da Solenidade da Bem-aventurada Virgem Maria da Conceição Aparecida, ciclo B do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de João 2,1-11.

Eis o texto.

“A mãe de Jesus estava presente” (Jo 2,1)

Celebramos, neste domingo, a festa da Padroeira do Brasil: Virgem Maria da Conceição Aparecida.

A liturgia da Igreja no Brasil nos propõe, para esta festa, o relato joanino do “casamento em Caná”, onde Maria “estava presente”: presença inspirada que fez a diferença; presença solidária, marcada pela atenção, prontidão e sensibilidade, próprias de uma mãe; presença expansiva que mobilizou os outros, assim como mobilizou seu Filho a antecipar sua “hora”.

A “boda em Caná” é o ícone evangélico que melhor revela a situação atual da Igreja e do cristianismo. Por todos os lados pede-se renovação e em muitos lugares surgem experiências ousadas e renovadoras. É o frescor de uma espiritualidade que abre passagem entre os caminhos quase desertos de uma religião em agonia. É o vinho novo que se faz presente para brindarmos o amor e celebrar a vida.

No entanto, insistimos em pôr vinho novo em odres velhos. Esse é o drama da Igreja: aferrada aos odres da doutrina e suas obsoletas estruturas, não sabe aproveitar nem desfrutar do vinho novo. Com frequência, não sabe o que fazer com este vinho novo e o desperdiça.

Precisamos de odres novos para este vinho espumante e gracioso, um vinho cheio de vida e de sabor, um vinho encorpado e robusto, um vinho com tanta força que vai rompendo sem piedade os odres desgastados e rachados. É o vinho novo que exige reformular a vida cristã e a Igreja.

Segundo o evangelista João, Jesus realizou “sinais” para dar a conhecer o mistério de sua pessoa e para convidar os seus seguidores e seguidoras a acolherem a força salvadora que Ele trazia consigo.

Qual foi o primeiro “sinal”? O que primeiramente devemos encontrar em Jesus?

O evangelista fala de uma “boda em Caná da Galileia”, uma pequena aldeia de montanha, a 15 km de Nazaré. No entanto, a cena tem um caráter claramente simbólico. Nem a esposa ou o esposo tem rosto: não falam, nem atuam. O mais importante é um “convidado” especial que se chama Jesus.

Na Galileia, as festas de casamento eram as mais esperadas e desejadas entre os camponeses. Durante vários dias, familiares e amigos acompanhavam os noivos, comendo e bebendo com eles, bailando danças de casamento e cantando canções de amor.

O vinho era indispensável em um casamento. Para aquelas pessoas, o vinho era o símbolo mais expressivo do amor e da alegria. Já dizia a tradição judaica: “o vinho alegra o coração”. A noiva cantava para seu amado um lindo canto de amor: “Teus amores são melhores que o vinho”.

O início do relato joanino apresenta Jesus sendo apenas um convidado; como anônimo, Ele vem de fora, não pertence por si mesmo ao espaço do casamento. Ele e seus discípulos parecem formar um mundo à parte, estão como que de passagem. Logicamente, não se preocupam com as questões da organização da festa, ao menos no primeiro momento. Esta é a surpresa da cena: Jesus vem como por casualidade e, no entanto, logo atua como responsável verdadeiro diante das velhas e das novas “bodas” da terra.

Neste contexto, tornam-se centrais as relações entre a mãe (que é sinal da humanidade anterior, ou seja, do judaísmo da lei, da esperança messiânica) e Jesus (que será o iniciador das novas bodas do Vinho do Reino).

A mãe é a mulher que introduz a nova páscoa de Jesus. Ela marca a diferença entre as antigas e as novas bodas, a passagem da água ao vinho. É a mulher de dois mundos, dois tempos, duas bodas.

Parece que ninguém tinha descoberto a carência de vinho. Só a Mãe de Jesus notou a falta e se moveu a buscar uma solução para um problema que parecia sem saída.

De imediato, a mãe de Jesus lhe avisou: “eles não têm mais vinho”. Como vão continuar cantando e bailando? Que significa um casamento sem alegria e sem amor? O que se pode celebrar com o coração triste e vazio de amor?

No pátio da casa havia “seis talhas de pedra”. Eram enormes. Estavam colocadas ali, de maneira fixa. Nelas se guardava a água para as purificações. Representavam a piedade religiosa daqueles camponeses que procuravam viver “puros” diante de Deus.

A Mãe de Jesus é, por um lado, uma mulher do mundo antigo: pertence ao espaço das velhas bodas; conhece e compartilha por dentro os problemas e preocupações dos homens e mulheres que não conseguem saborear o verdadeiro matrimônio da vida. Ela se encontra no lugar onde a alegria deveria se manifestar: não é luto de morte, mas fonte de vinho, isto é, de esperança criadora, de Bodas de Deus. É mulher da vida prazerosa: está a serviço gratuito da festa. Seu desejo verdadeiro é o banquete (quer que os homens e mulheres bebam, dancem, vivam), não o ritual das purificações e abluções.

Nesse sentido, a Mãe de Jesus é mulher do mundo novo, mulher de bodas: ela sabe que há um vinho de “bodas” diferentes, sabe que já chegou quem pode proporcioná-lo. Por isso, ela não se contém: a impaciência do novo Reino de Deus pulsa no centro de sua vida e procura expressá-la.

Assim, aproxima-se e diz a Jesus, de maneira sóbria e reverente: “eles não têm mais vinho!”.

Jesus que, num primeiro momento, parecia ter-se distanciado de sua mãe (“Mulher, porque dizes isto a mim?”), cumpre logo, de maneira diferente e por sua própria vontade, o que ela lhe pediu; e faz isso de maneira transbordante, muito mais que aquilo que ela lhe pedira. Oferece vinho abundante e de excelente qualidade aos convidados das “bodas”. Dessa forma realiza e transborda o desejo mais profundo de Maria.

Sua intervenção vai introduzir amor e alegria naquela religião. Este é seu primeiro “sinal”.

O evangelho indicado para este domingo nos revela esta grande notícia: Deus se manifesta em todos os acontecimentos que nos convidam a viver com mais sentido e prazer. Deus não quer que renunciemos a nada do que é verdadeiramente humano; Ele quer que vivamos o divino naquilo que é cotidiano e normal. A ideia do sofrimento e da mortificação como exigência divina é ante evangélica.

A mensagem para nós hoje é muito simples, mas demolidor. Nem ritos, nem abluções podem purificar o ser humano. Só quando ele saboreia o vinho-amor, no encontro e na comunhão com o outro, ficará ele todo limpo e purificado. Quando descobrirmos Deus dentro de nós e nos outros, seremos capazes de viver a imensa alegria que nasce da unidade-amor. Que ninguém nos engane: o melhor vinho está sem estourar, escondido na adega de nosso interior.

“Eles não têm mais vinho!”

Esta é uma das expressões mais fortes do NT e do conjunto da Bíblia. Em primeiro lugar, ela é proferida pela Mãe ao seu Filho, mas logo podemos e devemos aplicá-la a diferentes situações de nossa vida. São palavras que, quando escutadas, têm profundas ressonâncias em nós, sobretudo quando estamos comprometidos na nobre missão de “despertar o sabor da vida”.

Precisamente ali onde podemos nos sentir satisfeitos, ali onde pensamos que as coisas se encontram já resolvidas, tudo em ordem, se eleva com mais força a voz da Mãe de Jesus dizendo: “Eles não têm mais liberdade, estão cativos!” “Não têm mais saúde, estão enfermos!” “Não tem mais pão, estão famintos!” Não tem mais família, estão abandonados!” “Não tem paz, encontram-se deprimidos, em guerras sem fim!” ...

Já não podemos mais responder como Jesus em um primeiro momento: “que importa a mim e a ti? Não é nossa hora!” Sabemos que, em Jesus e por Jesus, chegou a hora da Mãe que nos mostra as necessidades de seus filhos, os humanos sofredores. Sobre um mundo onde falta o vinho das bodas da liberdade/amor/justiça, sobre um mundo que sofre a opressão e o forte vazio da vida, sobre um mundo onde continua acontecendo guerras, ódios, intolerâncias..., a voz da Mãe de Jesus ressoa como uma recordação ativa das necessidades das pessoas; por isso, é princípio de forte compromisso.

Para meditar na oração:

Como podemos pretender seguir a Jesus sem cuidar mais da alegria e do amor entre nós? O que pode ser mais importante que isto na Igreja e no mundo? Até quando poderemos conservar em “talhas de pedra” uma fé triste e enfadonha? Para que servem nossos esforços, se não somos capazes de introduzir amor e alegria em nossa religião?

Nada pode ser mais triste do que dizer de uma comunidade cristã: “eles não têm mais vinho!”.

- Sua presença na comunidade cristã desperta o sabor do bom vinho da vida e da amizade?

 

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