A reflexão bíblica é elaborada por Adroaldo Palaoro, padre jesuíta, comentando o evangelho do 23º Domingo do Tempo Comum, ciclo C do Ano Litúrgico, que corresponde ao texto bíblico de Lucas 14,25-33.
“Qualquer um de vós, se não renunciar a tudo o que tem, não pode ser meu discípulo” (Lc 14,33)
Novamente nos encontramos com um texto que faz parte da grande viagem de Jesus a Jerusalém. Acompanham-lhe seus discípulos e grande multidão, realizando um caminho como uma grande catequese itinerante.
Ao longo deste percurso, Jesus vai indicando novas exigências que vão modelando o estilo de vida de quem decide seguir seus passos. Jesus já é percebido como um grande líder que se faz “palavra” para transformar interiormente os seus ouvintes e seguidores. Não é uma palavra neutra, às vezes gera conflito, mas sim respeitosa; não impõe normas, mas sim propõe como situar-se frente os diferentes campos da existência humana. Vai crescendo a oposição entre aqueles que são questionados em sua maneira de viver e, especialmente, entre aqueles que vivem apegados ao poder e às riquezas: fariseus, mestres da lei e outros setores opressores.
Uma das interpretações equivocadas deste radicalismo é entender a mensagem de Jesus como que dirigida a um grupo privilegiado, que seriam os cristãos de primeira linha. Jesus não se dirige a uns poucos, mas à multidão que o acompanhava. No entanto, o seu apelo é dirigido a cada um pessoalmente: “se alguém vem a mim...” A resposta deve ser pessoal e adulta.
Para a primeira exigência a chave está na frase: “... inclusive da sua própria vida”. O amor a si mesmo pode ser nefasto quando se refere ao falso eu que desemboca no egoísmo. Esse falso eu também tem seu pai, sua mãe, seus filhos e irmãos.
O ego busca “os primeiros lugares”, sonha destacar-se, ser visto, sentir-se reconhecido; ama o aplauso e os gestos de admiração; encanta-se com roupas especiais e sinais distintivos de seu valor (títulos); quer sempre ter razão e impor-se aos outros... Frente a esta tendência, a palavra de Jesus não é só uma “receita”; Ele vai à raiz: o que Ele pede é o esvaziamento do ego com seus interesses e parentes; apoiando nossa existência no falso eu, falseamos toda nossa vida e a frustramos.
Aqui não se trata de uma rejeição da família, mas de considerá-la a partir de outra perspectiva, mais ampla e rica: nosso olhar e nosso coração centrado na pessoa de Jesus.
Também não se trata de comparar o amor a Deus e o amor aos membros de nossa família. O seguimento não é incompatível com o amor à família. Seguir Jesus implica um amor que vai mais além de um amor que nasce do sentimento familiar, mas não estará nunca contra. Seguir Jesus nos ensinará a amar mais e melhor também nossos familiares.
O seguimento de Jesus não pode consistir numa simples renúncia, ou seja, algo negativo, mas eleger o melhor para nós. Trata-se de uma oferta de plenitude.
É neste contexto que aflora uma compreensão mais profunda da expressão “carregar a sua cruz”.
Nós cristãos temos esvaziado a Cruz de seu verdadeiro significado. Há alguns que pensam que “carregar a cruz” é buscar pequenas mortificações, privando-se de satisfações para chegar – pelo sofrimento – a uma comunhão mais profunda com Cristo. Mas Jesus quando fala da Cruz não está convidando a uma “vida mortificada”. Para outros, “carregar a cruz” é aceitar passivamente as contrariedades da vida, as desgraças ou adversidades. Mas a Cruz é consequência de uma opção pelo Reino em favor dos últimos.
“Carregar a sua cruz”, portanto, significa acolher aquilo que diariamente cruza o nosso caminho; é acolher-nos com todas as nossas contradições.
“Tomar a sua cruz” significa abraçar-nos com todas as forças e todas as fraquezas: os aspectos saudáveis e os doentios, as qualidades vistosas e os defeitos, as dimensões imaculadas e as manchadas, os sucessos e os fracassos, as coisas vividas e as coisas perdidas, o consciente e o inconsciente...
Se nos sacrificamos, para estar ao lado daquele que sofre, é para tirá-lo de seu sofrimento, mesmo que seja só para consolá-lo e acompanhá-lo. Nunca é sofrimento buscado, mas uma dor ou privação que brota do amor. Jon Sobrino afirma que “só podemos crer no crucificado se estivermos dispostos a tirar da Cruz aqueles que estão dependurados nela”.
As imagens que Jesus utiliza – desapegar-se de seu pai, mãe, mulher e filhos... e carregar a cruz – apontam para a radicalidade da entrega da vida, que se faz cada vez mais oblativa, aberta e comprometida; nesta entrega, deixamos transparecer nossa essência, aquilo que realmente somos.
Não se trata, portanto, de dolorismo, nem de renúncia voluntarista: ambas atitudes costumam inflar o ego.
Trata-se, uma vez mais, de compreensão e coerência. Como quero viver? Para o ego e seus interesses ou ancorado em minha verdadeira identidade, que está em profunda união com a Vida?
O cristão não ama e nem busca o sofrimento; não o quer nem para os outros e nem para si mesmo. Seguindo os passos de Jesus, luta com todas suas forças para arrancar o sofrimento do coração da existência. Mas, quando é inevitável, sabe “levar a Cruz” em comunhão com o Crucificado.
Carregar a cruz não é ir pelo mundo arrastando os pesares da vida a partir de uma resignação paralisante, mas a partir de uma acolhida consciente de tudo o que constitui nossa própria vida: consolação e desolação, vitórias e fracassos, avanços e recuos, plenitude e atrofia existencial... amarga. Saber integrar aquilo que humanamente é frustrante nos impulsiona a uma transformação e avanço na vida. Quando não enfrentamos passos a viver submetidos e nos situamos como vítimas. A resignação nos ata, nos bloqueia; a aceitação nos mobiliza para buscar outras opções e não nos desviar de nossa rota essencial.
A Cruz que devemos levar atrás de Jesus é a mesma que Ele levou: a Cruz como consequência da fidelidade até o fim. A Cruz nunca será um fim nem uma meta. Nem sequer um meio para algo. A Cruz de Jesus e daquele que o segue sempre é consequência de coerências e de fidelidades ao Evangelho.
É neste horizonte de fidelidade até o fim no seguimento que Jesus apresenta duas pequenas parábolas: a construção de uma torre e o rei que vai fazer uma guerra.
Com a imagem da construção da Torre, Jesus nos convida a descobrir o prazer de construir nossa própria vida no seu Seguimento, sem nos fixar em imagens falsas do nosso eu, mas sim na imagem interior que Deus tem de cada um de nós. Isso acontece quando desperdiçamos toda nossa energia na luta contra nós mesmos e contra aparentes erros e fraquezas. A força que desperdiçamos vai fazer falta para avançar na vida.
É comum iludir-nos com facilidade e lançar-nos rapidamente a qualquer empresa; também é comum que, com a mesma rapidez, abandonemos o empreendimento assumido e fracassamos. Tínhamos calculado mal nosso empenho ou nossa motivação. A isso se refere o dito popular que se aplica à pessoa que começa com força, mas que rapidamente empaca: tem “arrancada de cavalo e ritmo lento de burro”.
Que faltou aí? Provavelmente faltou realismo: o desejo e a motivação foram grandes, mas as condições e os meios necessários não foram suficientes. Tem mais força os medos do ego que fazem a pessoa girar em torno a si mesma. São os chamados “fervores indiscretos” (não discernido) ou “fogo de palha”, sem consistência; ou “ideais exagerados”, mas sem consistência real.
Discernimento, honestidade, coerência e profundidade: quatro pilares de nossa vida cristã no caminho do seguimento e da identificação com Jesus Cristo.
A pessoa se define por suas decisões; elas marcam a meta. É verdade que as decisões na vida são para as grandes ocasiões. Mas também o são para as pequenas.
O exercício constante da arte de decidir tem muita importância, não só pela extensão diária de suas oportunidades como também isto constitui a melhor preparação para o momento das “grandes viradas”. As pequenas decisões diárias são a trama mesma da vida, o clima da alma e a têmpera do espírito; elas definem, momento a momento, a atitude interna e criam o estado permanente que define a arte de viver, que é a arte de decidir.
- Suas decisões (pequenas e grandes) são tomadas pela emoção, pela pressão..., ou são frutos de um discernimento, à luz da ação do Espírito?