"Assim, enquanto alguns artistas são amplamente reconhecidos e estudados, outros são negligenciados pela crítica e pela historiografia, contribuindo para uma visão parcial e seletiva da história da música popular brasileira. A exclusão sistemática de artistas e gêneros musicais considerados "cafonas" ou fora dos padrões de "tradição" e "modernidade" é uma realidade persistente na historiografia da música popular brasileira. O foco quase exclusivo em figuras associadas à MPB e à bossa nova, em detrimento de outros estilos e intérpretes, cria uma narrativa unilateral que não reflete a diversidade e a riqueza da música brasileira", escreve Marcelo Zanotti, historiador e membro da equipe do IHU.
A música de Waldick Soriano ou de Nelson Ned geralmente não é objeto de análise ou debate, exceto em conversas informais. Em certos contextos, ao mencioná-la, não se encontra o apoio dos outros; em vez disso, tende-se a considerá-la de forma anedótica, como se não tivesse relevância para a realidade social. Por que, então, o público universitário de classe média associa o período do AI-5 apenas às obras de artistas como Chico Buarque, Caetano Veloso ou Gonzaguinha? E por que esse público, em sua maioria, só está familiarizado e canta músicas do repertório da MPB?
Segundo Maurice Halbwachs em seu estudo clássico sobre memória, as recordações de cada indivíduo estão intimamente ligadas às experiências vividas em seu grupo social, sendo a memória um fenômeno não apenas individual, mas também coletivo e social. As lembranças permanecem coletivas e são reforçadas pelos outros, mesmo que se refiram a eventos pessoais. Isso significa que as memórias de cada pessoa são moldadas por seu contexto social e pelos grupos com os quais se identifica.
A diversidade de memórias coletivas em uma sociedade é destacada por Halbwachs e outros autores, indicando que diferentes grupos sociais constroem interpretações distintas do passado. Essa pluralidade de memórias pode ser problemática, especialmente quando a memória coletiva oficial é usada como instrumento de poder pelos grupos dominantes para suprimir as memórias das minorias ou dos vencidos.
Essas reflexões sobre a natureza da memória nos levam ao conceito de "enquadramento da memória", conforme proposto por Michel Pollak. Esse processo envolve a construção de uma versão homogênea do passado, muitas vezes a partir da perspectiva dos vencedores, enquanto as memórias das minorias são relegadas ao esquecimento.
No contexto da música popular brasileira, a memória também é objeto de disputa, com críticos, pesquisadores e historiadores atuando como "enquadradores". Esses agentes determinam quais músicas e compositores devem ser lembrados ou esquecidos na memória nacional.
A partir do surgimento da bossa nova, duas principais vertentes interpretativas da música popular brasileira emergiram: a vertente da "tradição" e a vertente da "modernidade". Esse dualismo reflete um debate mais amplo sobre a identidade nacional brasileira, que remonta pelo menos a 1922.
José Ramos Tinhorão, em sua obra "Música Popular: Um Tema em Debate", defende uma música popular brasileira "autêntica" contra o que ele percebe como uma influência estrangeira e descaracterizada na bossa nova. Tinhorão associa a cultura popular às camadas mais baixas da sociedade, enquanto vê a cultura da classe média como alienada.
Em síntese, a disputa pela memória na música popular brasileira reflete tensões mais amplas sobre identidade cultural e poder na sociedade brasileira, onde diferentes grupos sociais buscam definir e preservar suas versões do passado musical do país.
A música brasileira, como expressão cultural, é marcada por duas vertentes interpretativas distintas: a da "tradição" e a da "modernidade". Na vertente da "tradição", são valorizados artistas como Nelson Cavaquinho, Ismael Silva, Noel Rosa, Cartola, entre outros, que representam uma continuidade com as raízes da música popular brasileira. Esses artistas são vistos como símbolos de autenticidade e legitimidade cultural, estabelecendo uma linha evolutiva que remonta aos primórdios do samba e da música urbana brasileira.
Por outro lado, a vertente da "modernidade", liderada por figuras como Tom Jobim, João Gilberto, Caetano Veloso e Gilberto Gil, propõe uma abordagem mais experimental e aberta à influência de correntes internacionais, como o jazz e o rock. Esses artistas buscam atualizar a música brasileira, incorporando novos sons, técnicas e abordagens líricas.
Augusto de Campos, em seu livro "Balanço da bossa", posiciona-se firmemente a favor da vertente da "modernidade", defendendo uma música popular brasileira aberta à experimentação e influências globais. Ele critica a visão conservadora representada pela "Tradicional Família Musical" e propõe uma abordagem mais cosmopolita e universalista para a música brasileira.
Essas duas vertentes, embora distintas, não são necessariamente antagônicas. Muitas vezes, os artistas são capazes de transitar entre ambas, incorporando elementos da tradição e da modernidade em suas obras. No entanto, a historiografia da música popular brasileira tende a privilegiar os representantes mais proeminentes de cada vertente, deixando de lado artistas considerados "cafonas" ou fora dos padrões estabelecidos de autenticidade e inovação.
Assim, enquanto alguns artistas são amplamente reconhecidos e estudados, outros são negligenciados pela crítica e pela historiografia, contribuindo para uma visão parcial e seletiva da história da música popular brasileira.
A exclusão sistemática de artistas e gêneros musicais considerados "cafonas" ou fora dos padrões de "tradição" e "modernidade" é uma realidade persistente na historiografia da música popular brasileira. O foco quase exclusivo em figuras associadas à MPB e à bossa nova, em detrimento de outros estilos e intérpretes, cria uma narrativa unilateral que não reflete a diversidade e a riqueza da música brasileira.
O exemplo da coleção "História do samba", que omite artistas como Benito di Paula, Wando e Luiz Ayrão, ilustra essa tendência. Da mesma forma, obras didáticas de história frequentemente negligenciam a contribuição de músicos populares e gêneros como o bolero, enfatizando apenas a MPB e seus representantes mais consagrados.
Artistas como Altemar Dutra e Anísio Silva, apesar de seu imenso sucesso popular, são muitas vezes ignorados pela crítica e pela historiografia, devido à sua associação com gêneros musicais considerados fora do cânone da "tradição" ou da "modernidade". Mesmo figuras como Nelson Gonçalves e os cantores do rádio enfrentam resistência e ostracismo, sendo marginalizados pela falta de enquadramento em categorias pré-definidas.
Essa exclusão não apenas distorce a história da música brasileira, mas também perpetua preconceitos culturais e sociais, ao negar reconhecimento e valorização a uma parte significativa da produção musical do país. É necessário um esforço consciente para ampliar o escopo da pesquisa e da documentação histórica, de forma a incluir uma gama mais diversificada de artistas e estilos, proporcionando uma visão mais abrangente e representativa da riqueza cultural do Brasil.
Ao finalizar esta análise, é relevante mencionar alguns artistas que contrastam com os "cantores do rádio" e têm maior facilidade em serem associados à memória da nossa música popular. Um exemplo é o cantor Moreira da Silva, famoso intérprete de samba de breque e do discurso da malandragem, tema que fascina diversos intelectuais brasileiros, sendo prontamente identificado com a "tradição". Da mesma forma, a cantora Nara Leão, considerada musa da bossa nova, é facilmente associada à "modernidade".
Quando um artista consegue incorporar elementos tanto da vertente da "tradição" quanto da "modernidade", torna-se uma "unanimidade nacional". Chico Buarque é um exemplo emblemático, sendo admirado tanto pelos adeptos da vertente da "tradição", que veem em sua obra uma continuação dos sambas dos tempos de Noel Rosa, quanto pelos adeptos da vertente da "modernidade", que apreciam suas inovações harmônicas e elaboradas construções poéticas.
A pesquisa realizada pela revista IstoÉ para eleger "o músico brasileiro do século XX" reflete essa dualidade. Chico Buarque foi o escolhido por 76,48% dos votos, demonstrando sua capacidade de sintetizar os anseios tanto dos adeptos da "tradição" quanto dos da "modernidade". Em segundo lugar na pesquisa ficou Tom Jobim, mais associado à "modernidade", apesar de seu reconhecimento internacional.
Essa dicotomia entre "tradição" e "modernidade" tornou-se uma obsessão entre os críticos musicais do país, refletindo-se não apenas em suas análises, mas também na produção discográfica de uma nova geração de artistas da MPB, influenciada por essa concepção.
Um exemplo é a cantora Marisa Monte, cuja memória musical foi formada sob a influência dos críticos, pesquisadores e divulgadores de histórias da nossa música popular. Em seus discos, Marisa inclui regravações que se enquadram nas vertentes da "tradição" e da "modernidade", deixando de fora um vasto segmento do repertório musical brasileiro que não se encaixa nessas duas vertentes.
O fenômeno do "brega" ou "cafona" está diretamente ligado à percepção do público de classe média, que associa esses adjetivos a produções musicais que não se identificam com a "tradição" ou a "modernidade". Artistas como Agnaldo Timóteo, Nelson Ned e Waldik Soriano são exemplos disso, sendo relegados ao esquecimento pela crítica e pelos "enquadradores" da memória da nossa música popular.
A definição de "brega" ou "cafona" é complexa, mas em essência refere-se à música que não se enquadra nas vertentes da "tradição" ou da "modernidade", sendo muitas vezes associada à busca pelo lucro comercial. No entanto, essa classificação nem sempre é justa, pois há produções musicais com características semelhantes que não são rotuladas dessa forma.
Os artistas marginalizados por essa dicotomia acreditam que, com o tempo, sua contribuição para a música popular brasileira será reconhecida. Assim como Noel Rosa, Lupicínio Rodrigues e Luiz Gonzaga, suas obras eventualmente serão reconhecidas como genialidade. Essa perspectiva ressalta a importância de não limitar a memória da nossa música popular a apenas duas vertentes.
O reconhecimento póstumo é uma realidade para muitos artistas que não testemunharam a valorização de suas obras durante suas vidas. Luiz Gonzaga, por exemplo, só começou a obter prestígio significativo a partir do final dos anos 60, quando jovens compositores como Caetano Veloso e Gilberto Gil destacaram sua importância. No entanto, durante a era de Gonzaga, o baião era frequentemente menosprezado, como observado por Caetano Veloso, que mencionou que era considerado uma forma de "sujeira" por alguns na época.
Da mesma forma, as composições de Lupicínio Rodrigues só ganharam destaque fora dos cabarés a partir de 1971, quando João Gilberto apresentou uma versão bossa nova de uma de suas músicas. Essa interpretação abriu caminho para que outros artistas da MPB também gravassem suas músicas, mesmo aquelas anteriormente consideradas de qualidade questionável.
Além desses casos, figuras como Cartola e Nelson Cavaquinho só foram reconhecidas como gênios da música brasileira quando já estavam mais velhos. Foi apenas na década de 1960 que a vertente da "tradição" começou a valorizar essa geração de sambistas, principalmente através de espaços como o restaurante Zicartola e o Museu da Imagem e do Som no Rio de Janeiro.
O que agora é chamado de "era de ouro da música popular brasileira" não foi percebido como tal por seus contemporâneos. Esse reconhecimento veio mais tarde, com o crítico de música Lúcio Rangel e outros historiadores adotando essa perspectiva. Entre 1930 e 1945, os grandes jornais brasileiros não dedicavam espaço para discutir música popular, concentrando-se principalmente em formas mais tradicionais de música.
A mudança na avaliação de obras musicais ao longo do tempo é um fenômeno social recorrente. Assim como o jazz nos Estados Unidos, que inicialmente era associado a ambientes marginais, mas eventualmente ganhou reconhecimento como uma forma de arte legítima, outras manifestações artísticas também passam por processos semelhantes de valorização. O próprio Caetano Veloso, ao revisitar uma música de Roberto e Erasmo Carlos durante o show Circulado em 1992, deu nova vida à canção, mudando sua percepção e contribuindo para uma reavaliação da obra da dupla.
A história de Nelson Ned, por exemplo, ilustra como um artista pode alcançar sucesso internacional, mesmo que sua popularidade em seu próprio país seja limitada. Seus triunfos nos Estados Unidos e em outros países demonstram que o reconhecimento pode vir de diferentes lugares, independentemente da aceitação local.
No entanto, nem todos os artistas estão preocupados com seu legado ou reconhecimento futuro. Nelson Ned e Odair José, por exemplo, expressam indiferença em relação ao reconhecimento de seu trabalho pela história da música popular brasileira. Eles se concentram em suas carreiras presentes e não se preocupam com sua preservação nos museus ou na memória nacional.
Apesar disso, é importante não subestimar a contribuição desses artistas para a cultura brasileira. Mesmo que eles próprios não se vejam como parte integrante da história da música popular, seu impacto é indiscutível e continuará a ser reconhecido por aqueles que estudam e apreciam a riqueza da música brasileira.
Assim, enquanto artistas como Chico Buarque e Gilberto Gil são considerados patrimônios musicais, outros, como Wando e Waldik Soriano, são ignorados ou marginalizados. Esta falta de reconhecimento contribui para a perda de sua relevância na memória da música popular.
No entanto, o jogo ainda não acabou. A história da música popular brasileira continua sendo escrita, e há esperança de que esses artistas eventualmente recebam o reconhecimento que merecem.
ARAÚJO, Paulo César de. Eu não sou cachorro, não. São Paulo: Record, 2005.