29 Novembro 2013
"Será que estamos livres do claustro em nossas instituições? Será que há espaço para questionamentos nas nossas instituições? Será que a autoridade ou poder espiritual continua sendo usado para líderes evangélicos cometerem diversos abusos? Será que continuamos achando mais prudente 'deixar para lá'? As críticas destes irmãos podem nos ajudar.", escreve Silas Fiorotti, bacharel em Ciências Sociais, mestre em Ciências da Religião e doutorando em Antropologia Social, em artigo publicado no sítio Novos Dialogos, 31-10-2013.
O livro Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular, do sociólogo Antonio Carlos Bôa Nova, apresenta uma pesquisa com vinte e quatro ex-seminaristas da Companhia de Jesus que não chegaram a se ordenar. O próprio autor é também um ex-seminarista e isso contribuiu positivamente para a pesquisa, pois ele já estava familiarizado com a linguagem e com as referências dos colegas e contou com a confiança deles (p. 21). O envolvimento com os pesquisados não é necessariamente ruim, é apenas um viés como qualquer outro que precisa ser reconhecido em suas vantagens e desvantagens. Além disso, Bôa Nova não pretende dar uma palavra final sobre os itinerários dos ex-seminaristas.
Bôa Nova realizou pesquisas sobre usos sociais da energia e sobre cultura de corporações de grande porte (1). Mas destaco também sua pesquisa de mestrado sob orientação da professora Maria Isaura Pereira de Queiroz, Clero e povo no catolicismo latino-americano (1971), e que resultou na publicação do livro Clero e povo: o catolicismo da América Latina nos anos 60 (1981). Ou seja, Bôa Nova também é um pesquisador da religião.
Neste livro, Bôa Nova busca algumas pistas para compreender a experiência do claustro nos seminários jesuítas a partir dos diferentes itinerários dos ex-seminaristas. Por isso, optou por entrevistar ex-seminaristas que passaram pelo menos dez anos no claustro, entre os anos de 1945 e 1975. Esta experiência deu-se nos chamados seminários menores, as escolas apostólicas em regime de internato, ou nas residências à parte que eram dirigidas por padres, ou mesmo nos seminários (com as seguintes etapas: Noviciado, Juniorado, Filosofia, Magistério, Teologia). Destacamos que, além de se valer das entrevistas e de inúmeras mensagens de uma lista de discussão na Internet de ex-jesuítas e ex-seminaristas, o autor apresenta um belo repertório de leituras de apoio que utilizou para fazer comparações com seus dados.
Os itinerários dos ex-seminaristas são divididos em seis partes que são referentes aos seis capítulos do livro. O primeiro capítulo, Da família ao seminário (pp. 32-63), apresenta o background familiar dos ex-seminaristas. A maioria deles cresceu no meio urbano e falou de “um clima intensamente religioso em casa” (p. 41). Ainda mencionou-se a figura materna e o desejo de agradar e retribuir à mãe ou o sentimento de culpa em relação a ela, como era feito o recrutamento através de missionários ou pregadores, a ideia de ser padre, e a falta de reflexão sobre a própria vocação. Bôa Nova afirma que não havia um momento de decisão, supunha-se que todos eram vocacionados ao sacerdócio e, pior, que “deixar a vocação colocaria em perigo a salvação da alma” (p. 63), como afirmou um dos entrevistados.
O título do segundo capítulo, As boas lembranças (pp. 64-85), pode sugerir um claustro ameno ou amigável. A explicação dada pelo autor veio através da abordagem do sociólogo Maurice Halbwachs sobre o modo como a memória reconstrói o passado. Nas próprias palavras de Halbwachs: “Quando desaparece o sentimento de coerção, é natural que venha à tona o que havia de gratificante em nosso contato com o grupo”, e segue afirmando que “[nossa reconstrução do passado] é incompleta, pois apaga ou abranda os traços desagradáveis, e excessiva, uma vez que inconscientemente acrescenta percepções mais recentes” (p. 77).
No entanto, se a formação intelectual é vista pelos entrevistados como de muito boa qualidade, as críticas recaem sobretudo no modo de vida do seminário, e foram apresentadas no terceiro capítulo, Outros olhares (pp. 86-125). Mencionou-se a segregação que trazia uma visão distorcida do mundo, a obsessão com sexo e a preservação da castidade, a distância do mundo feminino, a ideia de pecado sempre presente, a desconstrução contínua da identidade anterior dos noviços, os ritos penitenciais, e até mesmo os abusos sexuais. Triste é saber que o comportamento da instituição diante dos abusos sexuais foi simplesmente realocar os padres infratores, evitar que o assunto ressurgisse e esperar que caísse no esquecimento. Não houve nem um pedido de desculpas aos abusados.
Falou-se dos motivos que determinaram a saída da Ordem no quarto capítulo, A saída (pp. 126-159). Entre os principais motivos mencionados estão: “a falta de razões para se ter tomado o rumo do sacerdócio” (p. 129), a questão dos votos serem perpétuos, a afetividade recalcada, as insatisfações com a linha adotada pelos superiores jesuítas, e a falta de figuras inspiradoras entre os padres mais velhos. O que chamou nossa atenção é que a exigência do celibato, por si só, não foi algo determinante para a saída da maioria dos entrevistados, nas próprias palavras do Bôa Nova: “a sexualidade – e com ela, a crítica ao celibato – pesava bastante, mas como componente do quadro mais amplo de uma afetividade recalcada” (p. 136).
No quinto capítulo, Novos caminhos (pp. 160-189), falou-se do processo de adaptação ao mundo secular: além da falta de qualquer esquema de apoio aos egressos por parte da instituição, a imaturidade emocional dos ex-seminaristas. No sexto capítulo, O legado (pp. 190-229), falou-se do legado da experiência vivida nas casas religiosas.
E, por fim, no Pós-escrito (pp. 230-236), o autor tenta traçar um perfil dos entrevistados. Para ele são pelo menos quatro grupos:
1) os que saíram pela “crescente sensação de mal-estar diante dos controles, restrições e estreitezas” e buscam “afirmar o espaço pessoal e desenvolver a própria personalidade” (p. 234);
2) os que “continuam até hoje cuidando de preservar os valores e os modos de pensar e de sentir assimilados naquele período”, os “jesuítas leigos” (pp. 234-5);
3) aqueles que adotaram soluções intermediárias com maior ou menor grau de preservação ou mudança; e
4) os que “se afastaram de toda forma de religião institucional, embora prossigam cultivando, na intimidade, algum modo de interação com o sagrado” (p. 235).
Reconhecemos a importância deste livro e recomendamos sua leitura no meio evangélico. Mesmo que ele apresente somente itinerários de ex-seminaristas católicos, nada impede que façamos as relações com as nossas instituições evangélicas, nossas igrejas e seminários. Será que estamos livres do claustro em nossas instituições? Será que há espaço para questionamentos nas nossas instituições? Será que a autoridade ou poder espiritual continua sendo usado para líderes evangélicos cometerem diversos abusos? Será que continuamos achando mais prudente “deixar para lá”? As críticas destes irmãos podem nos ajudar.
Notas
(1) Entre suas publicações estão Energia e classes sociais no Brasil (1985), Percepções da cultura da CESP (2000) e Da Light à Eletropaulo (2002).
Referências bibliográficas
BÔA NOVA, A. C. (1971), Clero e povo no catolicismo latino-americano. Dissertação (mestrado em Sociologia). São Paulo: FFLCH/USP.
_____. (1981), Clero e povo: o catolicismo da América Latina nos anos 60. São Paulo: CERU; FFLCH/USP.
_____. (1985), Energia e classes sociais no Brasil. São Paulo: Loyola.
_____. (2000), Percepções da cultura da CESP. São Paulo: Escrituras.
_____. (2002), Da Light à Eletropaulo. São Paulo: Escrituras
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Críticas valiosas de ex-seminaristas jesuítas - Instituto Humanitas Unisinos - IHU