06 Setembro 2018
“O mundo está em constante mudança, muitas vezes no ritmo da tecnologia, e parece que a esquerda, os movimentos e meios populares de comunicação, nos empurram para lutar em campos de batalha equivocados ou já ultrapassados, brandindo slogans que não têm relevância neste novo mundo”.
O artigo é de Aram Aharonian, jornalista e comunicólogo uruguaio, diretor de SURySUR, publicado por Outras Palavras, 06-09-2018. A tradução é de Inês Castilho.
Segundo ele, “fala-se de novos caminhos, mas poucos parecem dispostos a percorrê-los, porque por certo afetam sua identidade, sua memória e sua vida. Insiste-se em denunciar a desinformação, a informação lixo, o terrorismo midiático (temos doutorados em denunciologia e lamentação). Mas não nos preparamos para aprender a usar novas ferramentas, as novas armas de uma guerra cultural ciberespacial. Talvez o problema não seja formular, mas ter ouvidos dispostos a tentar, diz o humanista Javier Tolcachier”.
“A única forma de lutar nesta guerra de Quinta geração – conclui - é colocando-se em dia em relação à inteligência artificial, à possibilidade de montar novas plataformas que escapem aos filtros das grandes corporações, à necessidade de apropriar-se das armas, as ferramentas para poder lutar nesta guerra cultural, de gerar agendas próprias de acordo com os interesses de nossos povos, de…”
Em todo o mundo, uma imensa variedade de órgãos governamentais e partidos políticos estão explorando as plataformas e redes sociais para difundir desinformação e lixo em forma de notícia; exercer a censura e o controle; minar a confiança na ciência, nos meios de comunicação e nas instituições públicas.
O consumo de notícias é cada vez mais digital, e a inteligência artificial, a análise de Big Data (que permite à informação interpretar-se a si mesma e adiantar-se às nossas intenções) e os algoritmos da “caixa preta” são utilizados para por em prova a verdade e a confiança, as pedras angulares da chamada sociedade democrática ocidental.
São muito poucos os donos da infraestrutura que possibilita o uso da internet em todo o mundo, e também os serviços nela fornecidos. A propriedade dos cabos de fibra subaquática, as empresas que hospedam e controlam o NAP (o principal hub das Americas), grandes centros de dados como Google, Facebook, Amazon, ou os chamados “serviços em nuvem” como Google Drive, Amazon, Apple Store, OneDrive, são controlados por corporações transnacionais, em sua maioria com capitais estadunidenses. Hoje, das seis principais empresas listadas em Wall Street, cinco estão na categoria ICT [Information and Communication Technology] : Apple, Google, Microsoft, Amazon e Facebook.
O mundo está em constante mudança, muitas vezes no ritmo da tecnologia, e parece que a esquerda, os movimentos e meios populares de comunicação, nos empurram para lutar em campos de batalha equivocados ou já ultrapassados, brandindo slogans que não têm relevância neste novo mundo.
Enquanto isso, as corporações midiáticas hegemônicas desenvolvem suas estratégias, táticas e ofensivas em novos campos de batalha, onde se luta com novas armas, onde a realidade não importa, no que talvez já nem se trate da guerra de quarta geração — a que ataca percepção e sentimentos, e não raciocínio — mas uma guerra de quinta geração, em que os ataques são maciços e imediatos por parte de megaempresas transnacionais, que vendem seus “produtos” (como espionagem) aos Estados.
Hoje deveríamos estar mais atentos à integração vertical dos provedores de serviços de comunicação com empresas que produzem conteúdo, com a chegada dos conteúdos diretamente aos dispositivos móveis; à transnacionalização da comunicação, convertendo a informação em campanhas de terrorismo midiático… enquanto nós apenas denunciamos quão fácil está converter a democracia em ditadura manipulada por grandes corporações.
Deveríamos estar atentos aos temas da vigilância, manipulação, transparência e governança da internet, ao vídeo como formato que irá reinar nos próximos anos, estar atentos ao fato de que os televisores estão se convertendo em mais uma tela onde chegam conteúdos manipulados pelas grandes corporações.
Mas, no campo popular, continuamos reclamando a democratização da comunicação e informação, acreditando que a distribuição equitativa das frequências de rádio e televisão entre setores público, comercial e popular pode significar o fim da concentração midiática. Estamos empenhados em guerras que já não existem – quando o campo de batalha está na Internet, no Big Data, nos algoritmos, na inteligência artificial.
Cansa a insistência discursiva ancorada no passado e agenda desenhada em países centrais, que não incluem nossas realidades. Insiste-se na necessária renovação da esquerda, na necessária busca de novos caminhos – nas catarses coletivas de seminários, fóruns, reuniões, conciliábulos, escritos. Mas não se buscam soluções específicas ao isolamento e endogamia de nossos sites populares, alternativos às mensagens hegemônicas, comunitárias, populares.
Esses temas não estão na agenda dos movimentos, dos partidos nem dos governos (inclusive progressistas), mais preocupados em seguir com a satanização das novas tecnologias, com a denunciologia, do que em definir estratégias e linhas de ação. Hoje, os governos da restauração conservadora disparam contra a Unasul, que em seu auge não conseguiu concretizar um canal próprio de fibra óptica – que ao menos faria cócegas no controle das megacorporações. Hoje, o cenário digital pode converter-se numa via para a reconexão do progressismo com suas bases, em particular os jovens, o que significa dizer o futuro. Não se avançou, porém, numa agenda de comunicação comum, nem tampouco em temas estratégicos para o futuro da soberania tecnológica como governança da Internet, copyright, inovação, desenvolvimento de nossas indústrias culturais.
Fala-se de novos caminhos, mas poucos parecem dispostos a percorrê-los, porque por certo afetam sua identidade, sua memória e sua vida. Insiste-se em denunciar a desinformação, a informação lixo, o terrorismo midiático (temos doutorados em denunciologia e lamentação). Mas não nos preparamos para aprender a usar novas ferramentas, as novas armas de uma guerra cultural ciberespacial. Talvez o problema não seja formular, mas ter ouvidos dispostos a tentar, diz o humanista Javier Tolcachier.
Cada site de mídia e/ou organizações sociais dirige suas mensagens a uma audiência limitada, aos que já estão convencidos de sua mensagem, numa ginástica endogâmica, sem definir uma agenda própria, latino-americanista, em defesa dos direitos humanos e dos trabalhadores, uma linha editorial que possa unificá-las e então entrar com força na guerra cultural, na batalha das ideias.
Suas linguagens – falamos em geral, e por isso merecem destaque os esforços de midiativismo do Fora do Eixo, do Facción ou Emergentes, por exemplo – não se adequam ao momento histórico, cultural nem tecnológico. Estão ancorados na denunciologia, sem tornar visíveis as lutas, os anseios dos povos ou sociedades que pretendem representar.
Um informe de Samantha Bradshaw e Philip Howard, pesquisadores da Universidade de Oxford (Challenging Truth and Trust: A Global Inventory of Organized Social Media Manipulation), confirma que a manipulação da opinião pública nas plataformas de mídia social converteu-se numa ameaça à vida pública.
Em 2017, o primeiro inventário das tropas de ocupação cibernética globais, realizado por esses pesquisadores, jogou luz sobre a organização mundial da manipulação dos meios de comunicação social por governos e atores de partidos políticos. Esse ano, revela as novas tendências de manipulação organizada das mídias, e as crescentes capacidades, estratégias e recursos em que se apoia, com evidências de campanhas de manipulação organizada dos meios em 48 países, 20 a mais que no ano anterior.
Em cada país, constatou-se que um partido político ou agência governamental, ao menos, usava os meios de comunicação social para manipular a opinião pública nacional. Isso ocorre em países onde os partidos políticos disseminam desinformação durante as eleições, ou onde a institucionalidade sente-se ameaçada por notícias lixo e ingerência estrangeira nos assuntos internos e desenvolve suas próprias campanhas de propaganda cibernética.
Numa quinta parte desses 48 países, sobretudo nos do sul global, foram encontradas evidências de campanhas de desinformação operando em aplicativos de chat como WhatsApp, Telegram e WeChat. A manipulação das redes é um grande negócio, e governos, fundações, ONGs e partidos políticos gastaram mais de 500 milhões de dólares em pesquisas, desenvolvimento e implementação de operações psicológicas e manipulação da opinião pública através da Internet.
Em alguns países isso inclui “esforços para conter o extremismo”, mas na maioria dos países implica a propagação de notícias lixo e desinformação durante as eleições, as crises militares e desastres humanitários complexos.
Se a guerra de primeira geração baseia-se em mobilizar a mão de obra, a segunda no poder de fogo, e a terceira na liberdade de manobra, os paradigmas mudam substancialmente na Quarta Geração, quando tanto os recursos empregados como os objetivos e interesses a alcançar englobam o interesse público como o privado (interesses de corporações). A ideia principal é que o Estado perdeu o monopólio da guerra, e as táticas incluem desde o controle armamentista até o psicológico.
Dada a enorme superioridade tecnológica alcançada na etapa anterior frente à assimetria de forças entre combatentes, só é concebível o uso de forças irregulares ocultas que ataquem o inimigo de forma surpreendente, tratando de desestabilizá-lo e assim provocar sua derrota, com o uso de táticas de combate não convencionais.
Na Guerra de Quinta Geração (também denominada guerra sem limites), introduzida desde 2009 como conceito estratégico operacional nas intervenções EUA-Otan, não interessa ganhar ou perder, mas demolir a força intelectual do inimigo, obrigando-o a buscar um acordo, valendo-se de qualquer meio, inclusive sem uso das armas. Trata-se de uma manipulação direta do ser humano através de sua parte neurológica (frequências binaurais e componentes dos cristais de magnetita do cérebro e métodos sobre suas possíveis manipulações).
E os meios de massa e redes sociais são parte integral dessa guerra para gerar desestabilização na população através de operações de caráter psicológico prolongado; busca-se afetar a psique coletiva, afetar a racionalidade e as emoções, além de contribuir com o desgaste político e a capacidade de resistência.
E conta-se com mecanismos científicos de controle total, por meio não só da manipulação de meios massivos de comunicação e informação concentrados, mas também de sistemas financeiros como o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial, o Banco Interamericano de Desenvolvimento, milhares de fundações e organizações não governamentais.
Zbigniew Brzezinski, ex-secretário de Estado estadunidense, afirmava que a chave estava no ataque aos recursos emocionais de um país, por meio da revolução tecnológica. A tática para manter a desintegração política na sociedade consiste em criar complexos de inferioridade e converter-se em referência externa em todos os âmbitos, evitando que os projetos e modelos coletivos ou alternativos se consolidem em sua identidade, pois a referência será algo distinto de si mesmos: o mundo desenvolvido e seu modelo predominante.
Os meios de difusão em massa encarregam-se de condicionar as mentes nas nações subdesenvolvidas, posto que “o Terceiro Mundo enfrenta, agora, o espectro das aspirações insaciáveis”, como já escrevia Brzezinski há 44 anos.
As redes sociais são um conjunto de plataformas digitais de recreação e interação social entre seus diversos usuários, sejam eles pessoas, grupos sociais ou empresas, que permite enviar mensagens, comunicação em tempo real e difusão de conteúdo de várias maneiras, entre os usuários que se encontrem conectados entre si — sejam “amigos” ou “seguidores”.
A aparição ampla das redes sociais, considera a especialista britânico-equatoriana Sally Burch, revolucionou nossas sociedades, mas também causou preocupação porque, como não estão reguladas, são aproveitadas para a desinformação, a imposição de imaginários coletivos com a difusão de informação falsa, criando realidades virtuais distantes das realidades reais, a apropriação de dados pessoais para fins comerciais e/ou de manipulação política e, inclusive, para violar a intimidade dos cidadãos, invadir seus espaços de trabalho, educação, ócio e inclusive socialização.
As redes sociais têm acesso e manipulam dados dos usuários (endereço de email, número de telefone, interesses, gostos, amigos), gentilmente proporcionados por eles mesmos através da construção de seus perfis. Seu maior atrativo é a massividade: a mesma mensagem, informação – ou a mesma publicidade tácita ou encoberta – pode ser enviada a milhões de pessoas ao mesmo tempo através de diferentes plataformas (computadores, tablets, telefones celulares).
Operam com base em algoritmos que organizam a informação para mostrar-nos mais daquilo que gostamos e menos do que não. Quando validamos um comentário, uma publicidade ou uma notícia, retroalimentamos o sistema para que se adapte ainda mais a nossos gostos pontuais. Já que os algoritmos privilegiam o conteúdo semelhante ao que escolhemos (com uma “curtida”), restringindo as oportunidades de receber informação real, não filtrada, em que o usuário só tem acesso a opiniões semelhantes às suas (um efeito antidemocrático, sem dúvida), acrescenta Burch.
Por exemplo, um algoritmo usado pelo Facebook baseia-se na afinidade (número de vezes que um se conecta com outro, publicando em suas páginas, validando – curtindo – seus conteúdos). Seu peso é a quantidade de interações que tem uma publicação, e o tempo faz com que ela vá perdendo o interesse e vá caindo na fila de informações.
As desvantagens das redes sociais apontam para a ruptura com a presença dos outros, incitando-nos a deixar de socializar pessoalmente, na construção de sociedades ciberdependentes, nichos onde não tem espaço o pensamento contrário, a alteridade.
A consultora britânica Cambridge Analytica (CA), que protagonizou escândalo pelo uso de 87 milhões de dados de usuários do Facebook, embora tenha anunciado o fim de suas operações, simplesmente mudou de pele e manterá suas manipulações, ameaçando a transparência das eleições em vários países, entre eles Argentina, Colômbia e México.
A empresa britânica culpou as denúncias de manipulação política que inundaram as mídias internacionais nos últimos meses por sua quebra, mas o certo (que não diz) é que seus principais ativos já trabalham numa empresa com fins similares chamada Emerdata Limited, em cujo conselho de administração figuram vários nomes diretamente vinculados à própria Cambridge Analítica, como destacou em março o site Business Insider.
Alexander Taylor foi nomeado diretor da Emerdata em 28 de março, em substituição ao demitido Alexander Nix, que reconheceu ter trabalhado em eleições de países de todos os continentes, incluindo Estados Unidos, Reino Unido, Argentina, Nigéria, Quênia e República Checa, e teve de afastar-se como resultado de um vídeo gravado pela televisão britânica, com câmera escondida, onde fez todo tipo de comentário impróprio, tal como oferecer grandes quantias de dinheiro a um candidato e tentar extorqui-lo.
Segundo a Business Insider, entre os responsáveis pela Emerdata aparece Johnson Chun Shun Ko, um executivo chinês do Frontier Services Group, empresa militar presidida pelo destacado partidário de Trump Erik Prince, fundador da empresa militar estadunidense Blackwater e “casualmente” irmão da secretária de educação dos Estados Unidos, Betsy DeVos, pilar da rede internacional capitalista Atlas Network.
O Observatório em Comunicação e Democracia afirma que, logo que o escândalo assumiu dimensão global, o Facebook – principal agente empresarial envolvido nas mudanças de tendência nas urnas britânicas (no referendo Brexit) e estadunidenses (eleição de Donald Trump) em 2016 – reconheceu que a consultora britânica havia acessado (ou comprado?) informação pessoal de pelo menos 87 milhões de usuários, e a havia utilizado para criar perfis de eleitores.
O Facebook administra mais de 300 milhões de gigabytes em informação pessoal de seus usuários, um arsenal de perfis que lhe permite dispor de uma das plataformas online mais importantes do mundo, indispensável para beneficiar-se de modelos de negócio que ampliam consumidores e diversificam mercados, ao calor do crescimento produtivo de robôs e da automação industrial.
Tudo isso acontece apenas dois decênios depois que Sergey Brin e Larry Page registraram o domínio google.com e onze anos desde que Steve Jobs apresentou à sociedade, em São Francisco, o primeiro iPhone. Enquanto isso, o Facebook segue criando perfis de usuários e os algoritmos que a Cambridge Analytica usou seguem à disposição de quem os queira (e possa) pagar.
É difícil que um único pais tenha capacidade de desenvolver os níveis necessários de resposta para manter e/ou recuperar a soberania em algumas áreas, e por isso, imprescindível a soma de vontades políticas – governo, academia, movimentos sociais – para somar a potência de negociação em temas básicos como inteligência artificial e big data. Não há outra saída: demos nos apropriar do big data para poder pensar em ferramentas libertadoras.
A única forma de lutar nesta guerra de Quinta geração é colocando-se em dia em relação à inteligência artificial, à possibilidade de montar novas plataformas que escapem aos filtros das grandes corporações, à necessidade de apropriar-se das armas, as ferramentas para poder lutar nesta guerra cultural, de gerar agendas próprias de acordo com os interesses de nossos povos, de…
FECHAR
Comunique à redação erros de português, de informação ou técnicos encontrados nesta página:
Enfrentar a guerra de quinta geração com arco e flecha? - Instituto Humanitas Unisinos - IHU