11 Abril 2018
"O sistema jurídico brasileiro tem sido confrontado no seu racismo, não só no âmbito jurisdicional, mas principalmente nos instrumentos colonizadores e de opressão reproduzidos pelas suas casas grandes", escreve Luciana de Souza Ramos, doutoranda em Direito pela UNB e pesquisadora do grupo de pesquisa O Direito Achado na Rua, ao reagir à referência feita por Gilmar Mendes, membro do Supremo Tribunal Federal - STF, de maneira depreciativa, a um "sistema tipo Direito Achado na Rua, essas vertentes muito... é... desenvolvidas lá em Uganda".
Segundo ela, "Brasil e Uganda somos “huilas de africania” diaspórica. As mãos que não podem ser estreitadas pelos oceanos, entre nós povos diaspóricos, viventes nesse grande território transatlântico, são aproximadas pela herança ancestral de luta e de resistência".
"O ecletismo jurídico refletido na manifestação do professor Gilmar Mendes - conclui - nos impele a refletir sobre a necessidade de construção de bases epistemológicas que atuem jurisdicionalmente a partir das veias abertas brasileiras e do atlântico negro, em combate ao racismo jurisdicional".
Neste ano a Constituição cidadã de 1988 completa 30 anos de utopia para construção de um projeto político cidadão e de combate a qualquer forma de discriminação e sem racismo. Contudo, vivenciamos um tempo histórico em que a democratização dos bens e dos meios de produção, e dos espaços de privilégio branco, bem como as conquistas de direitos, para a maioria da população (negra) do país, tem incomodado a elite político-jurídica do país. Dividir o lugar a mesa despertou o racismo adormecido sob o feitiço da democracia racial.
O sistema jurídico brasileiro tem sido confrontado no seu racismo, não só no âmbito jurisdicional, mas principalmente nos instrumentos colonizadores e de opressão reproduzidos pelas suas casas grandes. Senão vejamos!
No último dia 22 de abril durante a sessão de julgamento da ADI 5394 pelo Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro Gilmar Mendes, de maneira racista, construiu seu argumento de voto, afirmando, dentre outros discursos, que:
"Não há base constitucional, não há parâmetro de controle. A não ser que a gente adote um sistema tipo O Direito Achado na Rua, essas vertentes muito... é.... desenvolvidas lá em Uganda, em outros lugares. Veja então ministro Celso de Melo a seriedade."
A primeira sensação ao escutar a fala do Professor Gilmar Mendes poderia ser de surpresa se fosse uma eventualidade e não corroborasse com a postura que vem sendo adotada pelo referido professor em sua função jurisdicional diante da suprema corte. Entretanto, o que mais chama a atenção é a postura racista e de desonestidade acadêmica da referida afirmação.
Racista porque constrói seu argumento sob a ideia de menosprezo pelo sistema jurisdicional de Uganda, situando-o como um sistema inferior ao referenciado por ele, afirmando, inclusive, que é um sistema jurisdicional não constitucional e não pautado na lei. Argumento que evoca uma inferioridade racializada, que imagina, por ser um sistema de um país africano, que o mesmo não seja “desenvolvido”, e que não guarda respeito a legalidade, aos mandamentos constitucionais daquele país, defendendo um sistema superior, que deduzo, pelas bases epistêmicas do referido professor, mais próximas à Europa ocidental.
O sistema constitucional de Uganda, assim como o brasileiro, e de qualquer lugar no mundo, é reflexo das construções histórico-sociais que constituem os Estados nacionais e da correlação de forças políticas que pautam a construção do projeto político que se almeja para aquele Estado. Não sendo menor e nem ilegal por estar situado no continente Africano.
O infeliz pronunciamento do professor Gilmar Mendes precisa ser revisto, pois como um servidor público do estado brasileiro, da mais alta corte brasileira, inferir discriminação e racismo contra um país, é ir de encontro aos fundamentos da nossa República insculpidos na Constituição Federal de 1988, no art. 3º, bem como dos princípios que regem a relação internacional brasileira, em seu art. 4º, mais especificamente o de repúdio ao racismo (inciso VIII).
De desonestidade acadêmica, visto que o referido professor conhece as bases epistemológicas do Direito Achado na Rua, ao menos é o que minimamente se espera de quem critica algo. Criticar o que não se conhece pressupõe desonestidade acadêmica ou arrogância de equívoco. Não concordar com outras visões de mundo não autoriza desqualifica-la, ainda mais estando num espaço em que representa a manus jurisdicional do Estado.
O Direito Achado na Rua se propõe, diferentemente do que muitos insistem em propagandear, a pensar o Direito e a justiça para além do positivismo legal, da dogmática jurídica e do sistema colonizador e de manutenção dos privilégios sociais e políticos, ou seja, o DANR se propõe a pensar o Direito de maneira mais complexa e mais próxima a realidade social e de lutas brasileiras.
Além disso, o Direito Achado na Rua não é um sistema. É um grupo de pesquisa que visa aprofundar o debate e a construção da concepção de justiça e direito para além da lógica colonial, escravagista e eurocentrada. Visa construir outros olhares mais próximos ao constitucionalismo brasileiro inaugurado pela Constituição cidadã de 1988, que completa este ano 30 anos, mais próximo de uma Constituição viva, plural e com um projeto de sociedade que supere as desigualdades.
"A Constituição é ainda o projeto de construção de uma sociedade que se comprometa com a superação das desigualdades, da pobreza que exclui, aliena e desamaniza, que rompa com o atraso colonialista que infantiliza, tutela, espolia e oprime o trabalhador (subalternização pela classe), o gênero (subordinação patriarcal da mulher e segmentos identitários) e as etnias (desumanização pelo racismo e pelas discriminações de todas as matizes)." (SOUSA JUNIOR, p. 2, 2018).
Desta forma, importante refletir que a construção da idéia de justiça e direito a partir da dimensão racial é fundamental para construir uma sociedade anti-racista, bem como um judiciário que reconheça o papel histórico que sempre teve na manutenção das opressões raciais, e como se reconstruir como promotor da igualdade racial.
Brasil e Uganda somos “huilas de africania” diaspórica. As mãos que não podem ser estreitadas pelos oceanos, entre nós povos diaspóricos, viventes nesse grande território transatlântico, são aproximadas pela herança ancestral de luta e de resistência.
"Mãos assombradas
As mãos que não podem ser estreitadas pelos oceanos
Eles desaparecem na água cinza que às vezes é
Compartilhado entre um branco alegre por engrenagens móveis.
A água encontra beijos e parte se espalhando
Céus distantes
Mãos flutuam na superfície planando
Um sobre o outro para manter a distância e proximidade
Prodigioso
Molhar as palmas das linhas que sofrem de água entrecruzada
Que em sua intensidade eles ocultaram tragédias.
As partículas de água revelam apenas seus próprios espelhos
Escondido em camadas rebeldes que guardam chaves escuras." (Susan Kiguli, 1969, Uganda)
Uganda é um país africano que conquistou sua independência em 1967. Região de forte tradição Bantu, Uganda, assim como vários países africanos, era uma região de múltiplas composições étnicas e de reinos, que durante o período de espoliação colonial, tiveram a dilapidação do território fomentada por guerras e conflitos entre eles, com vistas não só a apropriação territorial pelos colonizadores, mas também para gerar capital humano para o tráfico negreiro.
A história sócio-política de Uganda talvez não difira muito de muitos países africanos, mas tem um grande ponto de convergência com a nossa história e processos de luta. O primeiro seja a inegável construção da categoria raça como fundamentador da desigualdade pela cor da pele, consequentemente, a coisificação dois corpos negros, concebidos como inferiores, para exploração da força de trabalho negras e gerar mais valia, nos sistemas coloniais exploradores.
A invasão colonial ocidental no continente africano, destruindo a estrutura político-social, a partir da raça, e o tráfico de africanos e africanas para as Américas vai fazer surgir uma ligação diaspórico-ancestral na forma de construção do sujeito Muntú nos dois continentes. A construção de territórios e fronteiras transatlânticas, tendo as Américas e o Caribe como os nutrientes da raiz transatlântica do Iroko africano.
O Iroko é a árvore sagrada, a qual, todos nós, povos diaspóricos, estamos conectados, seja pela ancestralidade que para nós é para além de uma visão genealógica, é a nossa íntima e constante ligação com nossos egunguns , com nossos mais velhos, com aqueles que vivem a luta no tempo/lugar passado/presente, seja também pelo histórico processo de luta e resistência ao colonialismo e a escravidão.
"Assim, “en la sociologia africana, no es sólo relación entre vivos, es un grupo social que comprende vivos y muertos con cambios constantes de servicios y de fuerzas de los unos a los otros. Los muertos son jefes verdaderos, guardianes de las costumbres, vigilantes de la conducta de sus descendientes”"(Ana Gilma AYALA, 2011: 24)
O Iroko está na África, mas, suas extensões, suas raízes, na constante retroalimentação, está no movimento transatlântico, que nos liga enquanto povos diaspóricos nas Américas, Caribe e África. E é assim que resistimos: “escutem a voz da liberdade que fala no coração de todos nós”.( “Zamba” Boukman, 1791, Revolução haitiana).
A construção da ideia de inferioridade pela cor da pele é reflexo da construção da categoria raça como instrumento de fomento das desigualdades. Base fundante do estado moderno e de todo processo liberal escravocrata, que consequentemente, vai ter no sistema jurídico, fiel instrumento para construção e perpetuação das elites sob retóricas sociais e de liberdade.
Pensar o direito, para nós, que temos como utopia um estado anti-racista e de projeto popular, é pensar que é fundamental que ele seja a expressão da legítima organização social da liberdade, como afirmava Lyra Filho.
Pensar o Direito é também pensar a lei, mas não se resume a esta, como talvez o estivesse sustentando o professor Gilmar Mendes quando quis se referir ao Direito Achado em Uganda. Encastelar o Direito em masmorras legais é reforçar a fantasia dogmática do direito:
"Nisto, porém, o Direito resulta aprisionado em conjunto de normas estatais, isto é, de padrões de conduta impostos pelo Estado, com a ameaça de sanções organizadas (meios repressivos expressamente indicados com órgão e procedimento especial de aplicação). No entanto, como notava o líder marxista italiano, Gramsci, a visão dialética precisa alargar o foco do Direito, abrangendo as pressões coletivas (e até, como veremos, as normas não-estatais de classe e grupos espoliados e oprimidos) que emergem na sociedade civil (nas instituições não ligadas ao Estado) e adotam posições vanguardeiras, como determinados sindicatos, partidos, setores de igrejas, associações profissionais e culturais e outros veículos de engajamento progressista. O Direito autêntico e global não pode ser isolado em campos de concentração legislativa, pois indica os princípios e normas libertadores, considerando a lei um simples acidente no processo jurídico."(LYRA FILHO, 2012, p. 23).
O Direito Achado na Rua compreende a ressemantização da justiça por meio das lutas e resistências sociais no impulso de concretização das veias abertas da Constituição cidadã.
A rua é o território da vida, da luta e da concretização de um projeto de sociedade desenhado e refletido pelo processo de redemocratização do Estado brasileiro.
A rua como a encruzilhada mítica das infindáveis possibilidades e aberturas de construção do direito.
A rua como o caminho de Exu para a comunicação e comunhão de projetos.
A rua como paleta de raças e etnias que guerreiam todos os dias para ver concretizados os fundamentos deste Estado, ver concretizados o Estatuto da Igualdade Racial, ver concretizados a abolição da sociedade escravocrata e colonial.
O Direito Achado na Rua, como afirma o professor José Geraldo (2018, p. 3), enquanto compreensão teórico-política do jurídico
pode se inscrever nessa categoria de prática democrática de ampliação da cidadania e dos direitos e são inúmeros os registros de inscrição nos repertórios normativos de novas categorias que emergem do processo de reconhecimento do processo social instituinte de novas juridicidades.
Esta compreensão do jurídico e do direito é equivocamente construída como contraposição ideológica, ética e epistemológica, não sendo a primeira vez que é apontada em julgamento pelo STF como “um sistema anti-legalista”. É uma disputa de narrativas e de retóricas, num emaranhado de egos míopes e reprodutores dos privilégios sociais.
O Direito Achado em Uganda busca afrontar a insensibilidade dos juristas à perspectiva antinormativista dos cultores das teorias críticas, com a necessidade de o sujeito de direito se aproximar dos “sujeitos densos” da vida real e para o pluralismo e diferença de regulações no contexto global e “alteromundial”, até que seja sacudida e se mostre disposta a ir para o meio da rua (Canotilho apud SOUSA JUNIOR, 2018, p. 5)
Pensar O Direito Achado em Uganda é pensar nas convergências de dois países que foram vilipendiados, forjados a partir da construção da categoria raça, como instrumentalizador da desigualdade e alicerce para exploração moderna ocidental. É pensar o mesmo território diaspórico. É pensar em projetos de luta emancipatória e reconhecimento do ser muntú, infelizmente, em espaços majoritariamente colonizadores.
É pensar o Direito também a partir de outras epistemes, como a partir de uma epistemologia diaspórica, em que o “mundo da vida” aparace para dialogar com o direito moderno e reconstruir bases, destruídas pelo epistemicídio, quando da negação do processo civilizatório africano e a diáspora. (SÃO BERNARDO, 2016).
É pensar como a suprema corte pode pensar o Outro fora do círculo racionalizador do eurocentrismo? Como o “ser” do “outro” foi transformado em um “ser” de “si mesmo”, desembocando em uma “ausência de autenticidade e a presença ainda marcante de conteúdos autoritários e propositores de identidades essencializadoras” (SÃO BERNARDO, 2016, p. 22). Desta forma, o ecletismo jurídico refletido na manifestação do professor Gilmar Mendes nos impele a refletir sobre a necessidade de construção de bases epistemológicas que atuem jurisdicionalmente a partir das veias abertas brasileiras e do atlântico negro, em combate ao racismo jurisdicional.
Bibliografia
AYALA, Ana Gilma. Alabaos y cultura afroatratenha. Quibdó, 2011.
LYRA FILHO, Roberto. O que é Direito? Coleção primeiros passos. Editora Brasiliense, 2012.
RAMOS, Luciana de Souza. Orum e Aiyê: territórios de luta, (re)construção da justiça e construção de uma epistemologia jurídica da ancestralidade: Estudo sobre a dimensão político-jurídica dos processos de resistência e luta por direitos de comunidades negras no Brasil e Colômbia. Clacso, Cuba, 2018.
SOUSA JUNIOR, José Geraldo de. Constituição federal 30 anos: uma promessa vazia? In FREITAS, Edmundo Gouvêa (org). Hermenêutica e Direitos Fundamentais – edição comemorativa aos 30 anos da Constituição Federal (no prelo).
SÃO BERNARDO, Sérgio. Xangô e Themis: estudos sobre filosofia, direito e racismo. Editora J. Andrade, Salvador, 2016.
THORNTON, John K. “I Am the Subject of the King of Congo”: African Political Ideology and the Haitian Revolution. In: “Journal of World History”, Vol. 4, No. 2, 1993.
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O Direito Achado em Uganda: justiça diaspórica e combate ao racismo jurisdicional - Instituto Humanitas Unisinos - IHU