09 Março 2018
Conceição Evaristo é mulher, negra e escritora. Três condições que funcionam como vasos comunicantes para esta brasileira que se agarra à memória como quem arranha o único pilar da casa que sobreviveu ao incêndio. Mulheres e histórias. É assim que Evaristo resume sua infância, o lugar ao qual retorna em todos os seus livros para preencher essa lacuna que se abre entre o recordado e o esquecido, nos disse. Uma infância que passou na favela de Pendura Saia – Belo Horizonte –, cercada por faxineiras, passadeiras, cozinheiras. Suas tias e sua mãe ao redor da mesa. E as histórias.
Esta mulher de olhos pequenos e inquietos, considerada uma das autoras negras mais importantes do Brasil, também limpou casas, foi vendedora ambulante, cozinheira, até que após ter lido “todos os livros” da biblioteca pública em que uma de suas tias trabalhava, atreveu-se a sair de casa para estudar Letras no Rio de Janeiro. Foi assim que descobriu que Machado de Assis – o Cervantes das letras brasileiras – era negro, bem como Lima Barreto. Soube que existia Carolina de Jesus, negra e escritora.
Desde então, literatura e raça são assuntos de sua obsessão. Assim como a escravidão, a diáspora, a necessidade de pertença e o racismo que percorre a história de seus país. Conta com a triste sorte de ostentar alguns recordes, como o de ser a primeira autora negra a ganhar o prêmio nacional Jabuti, na categoria contos, por Olhos d’água (2015), e o de ter sido a primeira escritora brasileira negra a ser convidada para o Festa Literária de Paraty, em 2017.
Seu corpo grande e seu cabelo afro, grisalho, lhe dão uma aparência de feiticeira africana de O coração das Trevas. Senta-se, fixa sua visão sobre a jornalista, segura seu braço e começa a falar em um tom baixo, quase um sussurro. Como em sua literatura, Conceição se expressa pelos orifícios da máscara e, em seus 71 anos, não tem papas na língua, nem pretensões. É precisa e dura quando acredita ser necessário, sempre muito baixinho. Nós a escutamos.
A entrevista é publicada por CTXT, 07-03-2018. A tradução é do Cepat.
Costuma dizer que em sua casa não tinha livros, mas, sim, histórias. Conte-nos uma que você se lembra.
Quando eu era menina, muitas me marcaram. Mas, minha tia contava uma que relembro com carinho. É a história de uma escrava que tinha um patrão que lhe batia muito, lhe chicoteava e deixava suas costas cheia de cicatrizes. Passou o tempo e esse patrão teve uma ferida que não conseguia curar e foi à feiticeira da casa para ver o que estava acontecendo com ele. Então, ela lhe disse que sua ferida não iria melhorar enquanto não desaparecessem as cicatrizes das costas de sua companheira. Nesse momento, minha tia tirava a camisa e nos mostrava suas costas. Ela não tinha nenhuma cicatriz, mas adorava fazer teatro e nos deixava fascinados.
Ouvi outras pessoas negras dizer que há um momento em que, de repente, percebem que sua cor de pele representa um problema. Aconteceu assim com você?
Sim, claro. Quando somos muito pequenos, não imaginamos que há racismo, não sabemos o que é, e acredito que todos guardamos essa primeira vez. Em meu caso, foi por meio de um livro, A bonequinha preta, uma história que me encantava. No colégio, pediram para que nós a dramatizássemos e me escolheram como protagonista. No ano seguinte, eu esperava voltar a repetir, mas escolheram uma menina branca e a pintaram de preto, foi minha primeira grande decepção. Contudo, descobri a ideia de racismo mais clara na adolescência, quando comecei a ver as diferenças de tratamento, de possibilidades. As horas que minha mãe passava trabalhando e quanto éramos pobres. E, curiosamente, o livro que mais me marcou naquela época foi O Diário de Anne Frank. O contato com autores negros veio quando entrei na universidade. Lá, soube que Machado de Assis era negro, conheci Lima Barreto, Carolina de Jesus.
Você menciona Anne Frank. É curioso porque há vários autores judeus cuja literatura está muito marcada por essa noção de perda, de memória e diáspora. É equiparável ao que acontece com alguns escritores africanos?
É certo que nos une essa visão para o nosso passado. Nossa necessidade de memória se deve ao fato de que nosso passado é um problema do presente. Nós, africanos e seus descendentes, ainda sofremos as consequências da escravidão nas Américas. Os povos colonizados não estudaram esse passado, daí a necessidade de contar nossa diáspora. Mas, contar o passado escravista não é apenas uma narrativa de dor, mas, sim, de resistência. Nossa memória precisa ser elaborada a partir de nosso ponto de vista, porque a história da escravidão sempre foi escrita a partir da visão dos brancos que costumam reforçar o vitimismo. Quando nós falamos de sofrimento, fazemos isto a partir de uma resistência, pois todas as vezes que se vitimiza um povo, lhe é negado a possibilidade de reagir e resistir.
Você define essa narrativa como “falar através dos orifícios da máscara”.
Sim, utilizo a imagem da escrava Anastácia, uma personagem muito importante em nossa história oral. É o mito de uma escrava que seria estuprada e por se rebelar lhe puseram uma máscara com um orifício. É uma imagem que impressiona muito e faz com que você pense imediatamente na escravidão. No centenário da abolição, nós a tornamos mãe do povo negro, é nossa santa. Mas, para que você veja como o passado reverbera, até mesmo agora, se tentou calar Anastácia, pois há pouco sua imagem estava em uma Igreja católica no centro do Rio de Janeiro e toda a comunidade ia lá para cantar e dançar, até que o bispo decidiu retirá-la e a enviou para uma igreja dos arredores. Sua imagem não só simboliza a vontade de nos silenciar, como também demonstra como o silêncio pode se transformar em gritos, pois a situação de subalternidade sempre encontra orifícios para se comunicar. Eu mesma falo devagar, de uma forma doce [extremamente doce, podemos confirmar], mas digo tudo, denuncio o que acredito injusto, minha literatura fala pelos orifícios da máscara.
Por trabalhos como “Becos da memória” e “Olhos d’água”, a crítica a definiu como uma escritora memorialista. Você concorda?
Identifico-me mais com a ideia de ‘escrevivência’, um conceito inventado por mim [solta uma grande gargalhada]. Em minha cabeça sempre estão as histórias que escutava quando era menina, a memória oral é algo que me preocupa muito e que busco reconstruir quando escrevo. Às vezes, escrevo tal e como falo e me interessa escrever a ficção como se escrevesse a realidade. Muitos me perguntam se meus livros são autobiográficos e eu sempre repito que nada do que está escrito naquele livro é verdade e nada é mentira. Interessa-me jogar com a tensão da memória. Meu trabalho está nesse espaço de fricção que fica entre a recordado e o esquecido, onde se costura essa vivência com a escrita, a ‘escrevivência’ [ri novamente].
Você disse que a crítica não sabe ler o lado existencial dos autores negros, que fica na denúncia social e não enxerga além.
Não digo que aconteça sempre, mas acredito que em geral nos leem mal. Costumo apresentar o exemplo de Carolina de Jesus, uma escritora negra fundamental da literatura brasileira e desconhecida para uma maioria. Seus textos, mais do que de fome e pobreza, falam de momentos cheios de solidão. Em Quarto de despejo, a protagonista é um sujeito errante, não consegue trabalhar como empregada, é tão autônoma que não quer ter um patrão. E não pode ser lida simplesmente como uma vítima negra da sociedade, porque na realidade é uma mulher com agência. É uma figura profundamente complexa e existencial, mas não é lida assim. E é curioso porque diante de um texto de Clarice Lispector todos entendem que a autora fala de um vazio existencial, e em Carolina de Jesus não reconhecem, porque parece que nós, mulheres negras, só possuímos sentimentos ou necessidades vinculadas ao material, à fome, e não à solidão.
Mas, você também reivindica um lado político em sua literatura.
Importa-me o político não tanto no plano literário, mas, sim, como uma reivindicação, exigir que nós, escritores negros, tenhamos um espaço onde nos expressar. Acredito que todo texto tem o dever de gerar dúvidas, de questionar o pensamento único, de quebrar o status quo, e isso também é político, mas não panfletário. Tenho plena consciência de que lido com a arte da palavra e cuido de cada uma delas, faço a escolha delas de maneira obsessiva até chegar à frase exata. E, depois, me releio em voz alta, continuamente, para escutar o ritmo. Se não tem música, não serve.
Você demorou muitos anos para publicar e comentou, em mais de uma ocasião, que o mercado editorial discrimina os autores negros. Que dificuldades enfrentou?
Passaram mais de vinte anos até publicar meu primeiro livro e, assim como muitos autores, eu é que comecei a editá-los. O mercado editorial é complicado para qualquer escritor, mas se você é negro, é mais ainda, e isso se aplica a outras facetas da cultura. Até mesmo nas áreas que parecem mais abertas para os negros, há determinados status onde praticamente somos vetados. Na música, por exemplo, vemos muitos no samba, no rap, mas é muito difícil ver alguém como regente de orquestra. Na dança acontece o mesmo, se vê gente dançando samba, mas você vê apenas bailarinos clássicos. Na literatura, lidamos com um dos maiores bens simbólicos, que é a linguagem. O fato de que nós, negros e negras, utilizemos a língua como instrumento literário é algo que não está no imaginário social. É como se o dom da escrita pertencesse aos homens brancos e, em seguida, às mulheres, mas muito depois dos homens. Além da dificuldade de publicar, também há determinadas instâncias que legitimam a literatura. Se consegue publicar, mas seus livros não chegam às bibliotecas ou não aparecem nos meios de comunicação, a autora não será premiada e não participará dos grandes concursos de literatura, dos festivais literários, que são instâncias muito importantes para legitimar os autores. No Brasil, já vivemos o auge da contradição, pois o fundador da Academia Brasileira de Letras foi Machado de Assis, talvez o escritor mais famoso de nossa literatura e muita gente não sabe que era negro, jamais é estudado a partir desta perspectiva.
No ano passado, você se tornou a primeira escritora negra brasileira convidada para o Festa Literária de Paraty (Flip), que você definiu como “festa de brancos”.
É que sempre foi isso, uma festa profundamente elitista para autores brancos consagrados. Em 2016, várias autoras negras fomos ao festival como espectadoras e eu levei um manifesto onde denunciávamos a discriminação. Curiosamente, no ano seguinte, convidaram-me para participar. Contudo, não acredito que esse convite signifique uma mudança real para que haja mais presença de escritores negros em festivais, o que aconteceu é que Joselia Aguiar – a curadora da edição de 2017 – tem uma sensibilidade muito especial. Não falo só da inclusão da cultura negra, mas também de sua ideia de democratizar o espaço. Foi a primeira vez que as conferências puderam ser vistas em telas instaladas nas praças da cidade. Joselia compreendeu a literatura como um direito de todos e acabou com esse ar elitista da Flip.
A forma de narrativa do Brasil sempre caminhou de mãos dadas com o mito do país da mistura de raças, a democracia racial da qual falava Gilberto Freyre. Contudo, 80% dos mortos por violência são negros, o mesmo número se dá entre os que estão presos, etc. É necessário revisar esse mito?
O mito da democracia racial propagado por Freyre é um elogio à mestiçagem brasileira, porque se pensa que é possível embranquecer o país. O grande desejo de nossa história é construir uma nação mais branca. Mas, quando se escurece e as pessoas mestiças se sentem mais negras, já não se aceita isto. Nos anos 1980, este mito começou a se desvanecer graças ao movimento negro dentro das universidades. Depois, o próprio governo de Fernando Henrique Cardoso reconheceu que nosso país era racista. Para nós não era uma novidade, mas foi importante que fosse dito publicamente. Ultimamente, vemos muitos racistas que saíram do armário, que dizem o que realmente pensam nas redes sociais, que insultam atores negros. O Brasil sempre foi um país racista.
Você passou por muitas situações de racismo?
Por várias, infinitas, todos os dias. O racismo se revela nos gestos mínimos, na forma como é vista ao entrar em uma loja, percebe que o jovem da segurança vigia porque acredita que você irá roubar. Depois, existem as situações mais dramáticas, como o genocídio dos jovens negros [dos 60.000 assassinados em 2015, ao menos 28.000 eram negros menores de 25 anos, segundo dados da Anistia Internacional] que existe neste país e respeito do qual apenas se fala. As mães negras vivem em estado de terror porque sabem que seus filhos podem morrer a qualquer momento nas mãos de policiais que por norma os confundem com ladrões ou traficantes. Em nosso país, o que é excepcional é não sofrer racismo.
Como mulher negra, identifica-se com aquele personagem do conto de Carolina de Jesus: errante, sempre às margens.
Sim, sempre me senti um pouco assim. O fato de ter que deixar minha cidade muito jovem para estudar fora me provocou uma sensação de “não lugar”, de estar longe de meu território. Para além de minha experiência individual, acredito que essa sensação de estar às margens todos nós, negros neste país, passamos. Quando você vai a um restaurante, vê poucos consumidores negros, o mesmo acontece em um teatro, em uma feira de livros, na televisão. Não encontramos um espaço, por isso o que nos sustenta é a força coletiva, fazer parte de um grupo. Em uma escola de samba, em uma missa de candomblé, são os lugares onde encontramos nossos pares, onde nos reconhecemos e onde recuperamos uma noção de pertença.
Falta muito para haver esse espaço na literatura?
Não gosto de ser pessimista, mas, sim, falta muito. Nos últimos cinco anos, vimos algumas mudanças com os festivais literários que são feitos nas periferias, com uma maioria de autores negros, mas seguimos nas margens. A literatura é um dos espaços de criação da identidade de uma nação e valorizar a literatura escrita por brasileiros negros é nos permitir o pensamento literário dentro de uma nação que nos pertence, que nós construímos. Por isso, é tão importante reconhecer a autoria negra, assim como a branca e a indígena, todos somos parte dessa construção nacional. No entanto, na hora de nos narrar, nós, negros e indígenas, continuamos excluídos.
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“Em nosso país, o que é excepcional é não sofrer racismo”. Entrevista com a escritora Conceição Evaristo - Instituto Humanitas Unisinos - IHU