09 Março 2017
Situações cotidianas como ganhar uma boneca na infância, dançar quadrilha na escola ou comprar e uma meia fina sempre foram mais complicadas para Maria Lucia Archanjo. Nascida há 59 anos em Jundiaí, na grande São Paulo, Maria Lucia se recusava a participar dos festejos juninos antes mesmo de ser convidada, pois tinha medo de ser rejeitada pelos meninos devido a sua cor. Na juventude, quando ela e as irmãs queriam sair precisavam tingir a meia fina. “A gente colocava ela de molho no chá mate pra ficar da cor da nossa pele”, conta ela, que é costureira e montou uma oficina em casa. A falta de identidade num país onde a maioria das mulheres são negras a incentivou a militar no movimento negro desde a década de 1980 na região de Jundiaí. De lá para cá, muita coisa mudou, outras nem tanto.
A reportagem é de Beatriz Sanz, publicada por El País, 08-03-2017.
No Brasil, um homem negro ganha 40% a mais do que uma mulher negra. Se comparado a uma mulher branca, a diferença é ainda mais acentuada: uma branca recebe 70% a mais do que uma negra.
Apesar do quadro, Maria enfatiza que grandes vitórias para as mulheres negras foram conseguidas através da luta de dias passados. É o caso do sistema de cotas para alunos negros e de baixa renda para ingressar na universidade. “Hoje, se existem as cotas é porque começamos as discussões de reparação naquele tempo. As pessoas criticam, mas as cotas são necessárias”, lembra.
O direito das empregadas domésticas também é um assunto que foi tema de debates seguidos desde os anos 1990. “Num Encontro das Mulheres Negras do Interior de São Paulo, em 1995, um dos temas mais relevantes foi o trabalho de empregadas domésticas. Depois de tantos anos, elas conseguiram alguns direitos”.
A chamada PEC das Empregadas Domésticas foi regulamentada em 2015 e garantiu benefícios para essas trabalhadoras que até então ficavam à mercê de suas patroas. Algumas pagavam férias ou Fundo de Garantia, outras não, mantendo-as em situação vulnerável.
Mesmo com essa garantia recente, muitas mulheres negras já entenderam que podem ir além dessa ‘boa vontade’ das casas de famílias brancas. Joyce Fernandes, 31 anos, por exemplo, trabalhou durante boa parte da vida como empregada doméstica. Primeiro, na adolescência, ajudando a mãe. Depois, assumindo sua própria casa de família. Ela não é um caso isolado, já que a profissão de 18% de todas as brasileiras negras é essa mesma. Com menos escolaridade, fruto de um processo que traz os ecos da escravidão que durou até 1888, as mulheres encontraram no trabalho doméstico um dos poucos refúgios.
Preta Rara, como é conhecida na cena cultural, onde atua como rapper, decidiu então criar uma página no Facebook, o “Eu, empregada doméstica”, para contar histórias de racismo, assédio e depreciação que as domésticas enfrentam. “A minha vontade sempre foi dar visibilidade e voz para essas mulheres, para que elas pudessem falar em primeira pessoa”, conta. Ela chegou a ouvir de uma patroa que não deveria estudar, e sim ser feliz na posição onde estava, pois sua avó e sua mãe tinham sido empregadas domésticas, logo o destino dela era o mesmo. Mas ela decidiu que não seria. Se rebelou e entrou para a universidade para estudar História. Furou o bloqueio num país onde apenas 12% da população negra no Brasil tem a mesma oportunidade de cursar o ensino superior, e ainda com ajuda das cotas raciais.
Mas tanto no rap quanto na escola, a batalha é permanente. Uma vez, antes de assumir a sala de aula numa escola de Santos, no litoral de São Paulo, teve que dar uma “aula-teste”. Nenhum outro professor da escola tinha passado pelo mesmo processo.
O estudo também foi um tabu para Cassia Maria Silva, de 50 anos. Ela sempre amou estudar. Tanto que se matriculou na escola escondida da mãe quando tinha 14 anos. Ela cuidava dos irmãos de dia e ia para a aula à noite. Mas teve de parar, pois precisava trabalhar e acabou adiando a conclusão do ensino médio até os 26 anos, quando já tinha um filho. Aos 30 anos decidiu que faria faculdade. Prestou vestibular de Química, e passou na Universidade de São Paulo. “Porém meu ex-marido não tinha como bancar a casa. Eu não pude concluir”, conta lembrando que passou a trabalhar de empregada doméstica para sustentar o lar.
Ainda assim, três anos depois conseguiu estudar Física na Fundação Santo André (FSA) e começou a dar aula em uma escola da rede pública, em Diadema, grande São Paulo, onde mora. Lá lecionou as disciplinas de matemática, física, química, ciências e biologia. Mas em certa noite de 2003, quando voltava da faculdade, entrou para as estatísticas, que mostram que uma mulher é estuprada a cada 11 minutos no Brasil. O agressor só a soltou quando viu que seu peito vazava leite — ainda amamentava a filha mais nova. “Ele disse que não me mataria porque também tinha filhos. Tomei o coquetel contra AIDS por um bom tempo”, relata.
Não foi a única adversidade que a vida lhe impôs. Em 2006 descobriu um câncer de mama e viveu o périplo do tratamento. “Meu cabelo era enorme, cacheado e eu fiquei sem um fio de cabelo. Eu era muito vaidosa e fiquei pensando como ia sair na rua careca”, lembra. “Não estava preocupada com o câncer, mas com a falta de cabelo. Então coloquei um salto de 15 cm, uma minissaia, maquiagem perua, brinco perua. E quando as pessoas ficassem com dó de mim por causa da careca, olhariam minhas pernas. Eu me acho linda!”
Cássia voltou à sala de aula depois do tratamento. Até que em 2015 recebeu um novo diagnóstico de câncer que lhe dava apenas seis meses de vida. Desafiou a sentença, como tantas que precisou ao longo da vida. Hoje, continua se tratando enquanto faz um curso de gastronomia.
Maria Lucia também superou um câncer em 2010. Mas isso já é passado. Hoje, dedica-se a educar seus netos para enfrentarem outra doença no Brasil: o preconceito. “Como é que se diz? Empoderamento? Pois que cada vez se empoderem mais!”, diz Maria, que tem orgulho do próprio destino. “Se eu fosse branca, não seria tão feliz.”
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Ser negra e mulher, a discriminação dupla no Brasil - Instituto Humanitas Unisinos - IHU