07 Novembro 2017
Os dois anos do maior crime socioambiental do país provocado por uma empresa minerária revelam o lobby de um setor altamente lucrativo junto aos poderes Legislativo e Judiciário.
A reportagem é de Katia Machado, publicada por EPSJV/Fiocruz, 06-11-2017.
Novembro de 2017: em meio a incertezas sobre a possibilidade de retorno ao antigo modo de vida, moradores dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, região central de Minas Gerais, atingidos há dois anos pela lama da mineradora Samarco e suas acionistas BHP Billiton e Vale, ainda vivem em casas alugadas em Mariana (MG). Tampouco a construção das novas vilas que irão abrigar as famílias começou. Não bastasse a morosidade na reparação dos danos, até hoje as principais multas impostas à mineradora pelos órgãos ambientais dos governos federal e dos dois estados afetados — Minas Gerais e Espírito Santo — ainda não foram pagas. De acordo com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), das 68 penalidades aplicadas, que totalizam quase R$ 552 milhões, 67 estão em fase de recurso. Apenas uma, parcelada em 59 vezes, começou a ser quitada: o valor corresponde a 1% do total. A isso se soma a suspensão da ação penal movida para punir os responsáveis pelas mortes do maior crime socioambiental do Brasil. A decisão que põe em banho-maria o processo movido contra 22 funcionários e diretores da Samarco e suas controladoras, bem como da VogBR, que inspecionava a barragem na ocasião, foi tomada pela Justiça Federal em Ponte Nova, na Zona da Mata, para análise da alegação da defesa sobre suposto uso de prova ilícita na ação penal. A impressão — ou a certeza — que se tem é que o rompimento da Barragem do Fundão, que matou 19 pessoas, destruiu centenas de casas, deixou um milhão de famílias sem água e trabalho e acabou com a biodiversidade da bacia do Rio Doce, ao derramar quase 40 bilhões de litros de rejeitos de minério, não tem um fim.
O que se denuncia como a impunidade em Mariana, no entanto, não é um caso isolado. Ela reflete as estreitas relações das empresas de mineração com os poderes Executivo e Legislativo. “Por ser um segmento riquíssimo, muito bem remunerado pela atividade que faz, a mineração tem condição de fazer um lobby pesadíssimo. Os municípios mineradores até muito pouco tempo atrás enxergavam que esse lobby era uma coisa natural, inerente a qualquer segmento econômico, mas como o lobby ultrapassou os limites do bom senso, reconhecemos hoje que isso nos prejudica, e os municípios agora resolveram reagir”. A declaração é do consultor institucional de Relacionamentos Institucionais da Associação dos Municípios Mineradores de Minas Gerais (Amig), Waldir Salvador, que completa: “Identificamos tal lobby nas declarações dos deputados que sempre receberam verbas significativas da atividade mineradora”.
Levantamento sobre o financiamento das mineradoras feito pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, que reúne mais de 100 instituições e movimentos sociais dedicados a discutir o ritmo de extração mineral, os lucros das empresas e os impactos socioambientais – entre elas o Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) e o Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM) – identifica que a mineração figura na lista dos cinco setores que mais contribuíram para as eleições de 2014, perdendo apenas para alimentação, bancos e construção civil. Juntas, as empresas mineradoras doaram R$ 32,7 milhões para os 15 partidos cujos candidatos disputaram uma vaga na Câmara dos Deputados, principalmente por Minas Gerais, Pará e Bahia, maiores estados mineradores do Brasil — somente a Vale doou R$ 22,6 milhões. O estudo informa que, isolado na frente, o partido que mais arrecadou foi o PMDB (R$ 13,8 milhões), seguido do PSB (R$ 5,7 milhões), PT (R$ 4,3 milhões), PSDB (R$ 3,6 milhões) e PP (R$ 1,7 milhão). “A relação entre o poder das corporações e a subserviência do Executivo e do Legislativo faz com que o setor desfrute de uma carga tributária altamente benéfica para si e gravemente prejudicial ao país, além de promover graves violações socioambientais”, revela Alessandra Cardoso, assessora política do Inesc.
O modus operandi da relação entre empresas minerárias e os poderes Legislativo e Executivo é desvelado em meio à discussão que se dá neste exato momento sobre as regras do setor. Lançadas em julho pelo presidente Michel Temer, tramitam no Congresso três medidas provisórias (789, 790 e 791/17) que visam modificar o Código de Mineração, criar uma agência reguladora, substituindo o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), e alterar as alíquotas da Compensação Financeira pela Exploração Mineral (Cfem), que é o royalty cobrado das empresas que atuam na atividade. Para o Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, seria uma estratégia do governo peemedebista, que anuncia que as mudanças têm o objetivo de tornar a indústria mais competitiva e sustentável, para indicar ao mercado internacional que o país irá expandir as oportunidades para a exploração mineral.
O novo Código da Mineração, de que trata a MP 790, cujo relator é o deputado Leonardo Quintão (PMDB-MG) — que dos quase R$ 5 milhões recebidos na campanha de 2014, mais de 40% foram doados por empresas do setor, segundo o Comitê em Defesa dos Territórios Frente à Mineração —, tem sido justificado pela necessidade de simplificar e liberalizar os processos burocráticos relacionados à exploração minerária. A MP, porém, aprofunda retrocessos para o meio ambiente e os direitos de comunidades indígenas e tradicionais. O alerta é feito pelo Movimento pela Soberania Popular na Mineração (MAM), em seu site: “Não são consideradas, minimamente, as populações que estão em conflito com os empreendimentos minerários, os trabalhadores da mineração, o meio ambiente e o interesse do povo brasileiro. Parece que nada foi aprendido com a maior tragédia-crime socioambiental do Brasil, o rompimento da barragem do Fundão, em Mariana, que destruiu toda a bacia do Rio Doce. Temos, com as MPs de Temer, uma oportunidade perdida de pensar o conjunto das discussões da mineração”, escreveu a entidade em 28 de agosto deste ano, logo após o anúncio das medidas.
Para o Movimento, a MP 790 favorece em grande medida as empresas, especialmente no que se refere às áreas disponibilizadas para a extração, que serão colocadas em leilões virtuais. “Essa medida que visa ‘desburocratizar’ pode facilitar, na verdade, a especulação sobre os territórios”, atenta a entidade. Outro elemento preocupante diz respeito à possibilidade de fiscalização por amostragem. O MAM qualifica a proposta como “um escárnio com as vítimas fatais da lama da Samarco, com os milhares de trabalhadores que ficaram sem trabalho em decorrência do rompimento e com toda a bacia do Rio Doce”, já que um dos motivos do maior desastre socioambiental do país foi a falta de permanência na fiscalização. “Caso seja aprovada esta proposta, de fiscalização por amostragem, aumentará a probabilidade de novos rompimentos”, denuncia o Movimento, informando que o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM) tem hoje apenas quatro funcionários em Minas Gerais para fiscalizar mais de 360 barragens de rejeitos de mineração existentes no estado.
Quanto à MP 791, que extingue o DNPM e cria a Agência Nacional de Mineração (ANM), a preocupação reside na real capacidade que a agência terá de fiscalizar e evitar tragédias como a ocorrida em Mariana (MG). Na avaliação de Waldir Salvador, esta nova agência deverá ter especialmente independência política, para que seus dirigentes sejam escolhidos por critérios técnicos, “e não como hoje acontece em relação à DNPM”. Segundo Salvador, tais escolhas são feitas segundo indicações dos deputados da bancada da mineração.
Em seu site, o MAM escreve que a medida traz um conjunto de propostas “pró-mercado”, entre elas o artigo 12 que afirma que sindicalistas não poderão assumir cargos de direção na ANM, em total contradição com a permissão para que ex-diretores do setor de mineração possam ser diretores da agência desde que não estejam ligados às empresas durante a função. Outro ponto crítico da medida diz respeito ao seu artigo 6º, que não deixa claras as responsabilidades pela fiscalização dos empreendimentos da mineração, incluindo as barragens de rejeitos da atividade minerária, criando a possibilidade de que seja realizada pelo setor privado. O Movimento enfatiza: “O caminho mais acertado seria fortalecer os órgãos competentes com a abertura de amplo concurso público para a garantia que a fiscalização do setor da mineração no Brasil fosse feita de modo mais efetivo”.
No que se refere à MP 789, sobre a cobrança da Cfem, alterando alíquotas e mudando a base de cálculo, Alessandra Cardoso esclarece que a proposta tenta conciliar interesses: das empresas, que alegam que o Brasil precisa ser mais competitivo no mercado internacional, e dos municípios e estados impactados pela atividade, que lamentam sofrer com a “penúria fiscal”. Para isso, a medida definiu alíquotas com variação entre 2% (como é hoje) e 4%, a depender da cotação internacional do minério de ferro, devendo atingir 4% somente quando o preço estiver acima de US$ 100 a tonelada. Adicionalmente, muda a base de cálculo cobrando a alíquota sobre a receita bruta da venda e não mais sobre o faturamento líquido. “A pressão sobre esse tema vem de todos os lados: municípios e estados alegam que o Brasil tem a menor taxa de arrecadação de impostos no mundo; as empresas, por sua vez, a despeito dos lucros exorbitantes recebidos, alegam que taxas baixas fazem do Brasil mais competitivo no mercado internacional e, consequentemente, permite ampliar a arrecadação do imposto, hoje de 60%”, explica Alessandra.
A assessora do Inesc revela ainda que, face à maior parte da arrecadação da Cfem ficar com os municípios (65%) e os estados (23%), a MP ganhou especial interesse dos entes federados, que são os maiores produtores e, não por acaso, foi relatada por um deputado mineiro (Marcus Pestana, do PSDB-MG). “O relatório apresentado tenta fechar a fatura em 4%, uma proposta já antiga defendida pelo PSDB de Minas Gerais”, conta Alessandra. Em nota que assina com Jarbas Vieira, da Coordenação Nacional do MAM, divulgada em 19 de outubro, ela sublinha que para ampliar a força política da proposta, o relator propôs uma nova divisão da arrecadação, tirando uma pequena parcela dos estados (-3%), dos municípios (-5%) e da União (-2%) para compor um fundo de 10%, cujo valor será distribuído entre os municípios impactados pela mineração em função da presença de barragens, depósitos de estéreis, instalações, infraestruturas de escoamento como estradas de ferro, minerodutos, portos. “Há uma expectativa de que, mesmo com perda de parcela da Cfem, haja aumento da receita em função das mudanças de alíquota e base de cálculo dos municípios impactados, sob forte lobby especialmente dos 23 municípios do estado do Maranhão recortados pela estrada de ferro Carajás. São municípios que alegam viver na miséria, apesar de por eles passar uma grande riqueza do país”, resume.
“Por que esse assunto deveria interessar mais amplamente à sociedade?”, perguntam Alessandra e Jarbas, respondendo taxativamente: “Primeiro, porque o Brasil precisa se reconhecer como país minerado, com todas as consequências que esse lugar implica. No caso do minério de ferro, o Brasil é o segundo maior produtor mundial e, ao longo do chamado boom de commodities, a exploração do minério pela Vale cresceu 253%, alcançando 348,9 milhões de toneladas extraídas em 2016”. Segundo a assessora política do Inesc, o Brasil é junto com a Austrália o maior player global do principal recurso mineral que está na base de economias industriais, em especial a da China, que demanda hoje mais de 70% de todo o minério de ferro importado pelo mundo. “A tragédia de Mariana e as consequências por toda a bacia do Rio Doce só nos lembram de que a mineração, além de ser uma atividade com alto potencial de danos, é dominada por empresas transnacionais que não medem esforços para ampliar a escala da extração e reduzir custos”, alerta Alessandra. Ela e Jarbas lembram, porém, que a Cfem não é uma compensação por dano ambiental e, por isso, “este dano deve ser cuidadosamente avaliado, mitigado e, em último caso, compensado no âmbito do Licenciamento Ambiental que já é bastante frágil e está sob intenso ataque do governo e de um Congresso Nacional que possui 238 parlamentares investigados em casos de corrupção”. “Há uma interpretação corrente que diz que a Cfem deveria ser usada para reparação de danos ambientais. Isso é conceitual e politicamente incorreto, pois este imposto é uma compensação pelo aproveitamento econômico dos recursos minerais, que deveria ser usado pelos gestores públicos para a melhoria da qualidade de vida, da saúde e da educação das regiões impactadas pela mineração. Para responder aos danos socioambientais, é preciso exigir uma legislação ambiental e social eficiente e eficaz, pois já estão mais que comprovados os riscos que esta atividade traz para o ambiente e a população”, explica Alessandra.
Ela chama atenção ainda para a baixa tributação sobre a mineração no Brasil e as elevadas isenções fiscais que o setor da mineração recebe para explorar minérios no país, seja pela Lei Kandir (1996), que isenta de ICMS os produtos e serviços destinados à exportação, ou pelas manobras contábeis que as transnacionais utilizam para pagar menos impostos. Sobre isso, ela cita estudo do Instituto de Justiça Fiscal, informando que 80% do minério que a Vale S.A exporta têm como primeiro destino a Suíça — sendo esta exportação registrada a preços muito mais baixos do que os preços do minério no mercado internacional —, e de lá, e sem tributação, o minério é enviado à China para abastecer sua indústria siderúrgica. “Estas manobras contábeis, conhecidas como ‘preços de transferência’, ocasionam uma perda de receita fiscal estimada em mais de US$ 5,6 bilhões ao ano, que significa algo em torno de R$ 19,6 bilhões. Tal perda representa mais de 19 vezes o que foi arrecado com a Cfem sobre o minério de ferro em 2016”, denuncia, alertando ainda: “Os poucos recursos da Cfem têm sido historicamente gastos pelos estados e municípios sem diálogo com a população e sem definição de prioridade que busque superar a excessiva dependência da mineração e que vincule, de alguma forma, seu uso a investimentos públicos que ampliem os direitos dos cidadãos e que protejam o meio ambiente. Ao contrário, muitas vezes os recursos são gastos para melhorar a infraestrutura necessária à operação das grandes mineradoras”.
Na mesma direção, Waldir Salvador diz que os municípios mineradores lutam por uma “Cfem de qualidade”, para que a alíquota do setor possa ser exclusivamente aplicada em infraestrutura das cidades mineradoras e diversificação das suas atividades. “Os municípios querem que as cidades mineradoras tenham uma infraestrutura muito boa, para atraírem novos negócios e diminuírem a nossa dependência da atividade de mineração”, afirma. O consultor da Amig revela, segundo fiscalização feita pelo DNPM em novembro de 2005 — ou seja, há 12 anos —, que a Samarco, a CSN Mineração S.A (segunda maior exportadora de ferro do Brasil), a Vale e o Consórcio Minerações Brasileiras Reunidas (MBR) devem aos municípios mineradores de Minas Gerais R$2,3 bilhões em impostos. “Já imaginou o que significaria este valor aplicado na saúde, educação, diversificação econômica, urbanização das cidades?”, questiona, comparando o setor de mineração com o de telecomunicações: “Uma empresa de telecomunicação não recebe do subsolo da nação um cabeamento pronto para ela explorar e, no fim, pagar apenas 2% do faturamento líquido dela. A mineração, ao contrário, que recebe do subsolo o minério, se beneficia e fica com grande parte do lucro. O compromisso dela só por isso tinha que ser muito maior”.
Dois anos depois, Mariana é exemplo concreto dessa correlação de forças desfavorável para os movimentos sociais, ambientalistas e a população atingida. “A situação é de bastante indignação por ter passado dois anos e o povo estar sendo tratado com total descaso”. A afirmação é de Joceli Andreoli, da Coordenação Nacional do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB). Ele acompanha as famílias atingidas, de Mariana (MG) a Regência (ES), reconhecidas oficialmente pelo Comitê Interfederativo (CIF) — composto pelo Ibama, pela União, pelos governos de Minas Gerais e Espírito Santo, municípios impactados e pelo Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio Doce para orientar e validar os atos da Fundação Renova, instituída pela Samarco e suas acionistas para gerir e executar as medidas de recuperação dos danos resultantes da tragédia. Segundo ele, o cenário é degradante, de humilhação e discriminação de moradores que culpam os desabrigados pelo aumento do desemprego na cidade de Mariana, para onde eles foram deslocados. “São muitos os impasses, e os atingidos temem que as construções dos novos distritos possam não sair do papel no prazo determinado”, revela. Joceli realça que, além de estarem desempregadas, privadas dos terrenos onde tinham suas plantações e criações de animais, as famílias sofrem preconceito, como se fossem culpadas pela paralisia da Samarco. “As crianças dos distritos atingidos ganharam apelidos, foram separadas das demais em uma escola própria, sofrem bullying por sua condição de desalojadas”, exemplifica.
Para Joceli, do MAB, no caso específico de Mariana trata-se de estratégia e incompetência da Samarco e suas acionistas. “Não ter feito o reassentamento das famílias até hoje é uma estratégia de individualização das reparações para enterrar de vez a memória coletiva das comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Se fossem reassentadas, retomariam suas comunidades e manteriam a memória viva sobre o que aconteceu”, explica, acrescentando que, para a mineradora, os atingidos são uma ameaça e atrapalham a lógica do capital.
Em nota, enviada por e-mail à Poli, a Fundação Renova garante que todas as ações estão dentro do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta (TTAC), assinado entre a Samarco e suas acionistas e diversos órgãos da administração pública nos níveis federal e estadual, incluindo os prazos. Segundo a entidade, já foram destinados R$ 2,5 bilhões para ações de reparação e compensação, entre novembro de 2015 e agosto de 2017, e desse total R$ 1,8 bilhão foi aplicado nos trabalhos durante a atuação direta da Fundação, além da previsão de R$ 11,1 bilhões em recursos até 2030.
A Fundação enumera as ações programadas: 101 afluentes impactados já foram recuperados; 92 pontos de coleta de dados sobre a água ao longo da bacia do Rio Doce foram instalados, sendo 22 estações automáticas de monitoramento; cerca de R$ 500 milhões já foram pagos em indenizações e auxílios financeiros; 18.676 cadastros foram enviados ao CIF, referentes a 57.955 pessoas; 8.323 auxílios financeiros são pagos mensalmente por meio de cartão a cerca de 20 mil pessoas assistidas; R$ 500 milhões foram destinados para o tratamento de esgoto, em negociação com os municípios; R$ 40 milhões estão disponíveis no fundo Desenvolve Rio Doce; 511 nascentes das cinco mil da bacia do Rio Doce que serão recuperadas em dez anos foram cercadas; 47 mil hectares do território devastado estão em processo de restauração florestal; e dois mil hectares da área diretamente atingida e cinco mil hectares das áreas das nascentes serão ainda protegidos.
Segundo a Renova, o projeto da Nova Bento Rodrigues, a ser construído em um terreno conhecido como Lavoura, está em fase de adequação, com acompanhamento de representantes da Câmara Técnica de Infraestrutura e a Prefeitura de Mariana e da assessoria técnica da Cáritas Brasil, entidade ligada à Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e que presta apoio aos atingidos em Mariana. “Ajustes nos projetos foram solicitados pelo CIF, e o processo segue os trâmites legais. O cronograma para o início das obras está sendo construído conjuntamente com todos os envolvidos no processo”, destaca, informando que o projeto abrigará 225 famílias – ou seja, 729 pessoas. Vale citar que a região fica a oito quilômetros de distância de Mariana e a nove quilômetros do antigo distrito, que tinha mais de 300 anos de história. A inauguração da nova vila está prevista para março de 2019.
De acordo ainda com a Fundação, a comunidade de Paracatu de Baixo, que escolheu a área de Lucila para a reconstrução do novo distrito, com capacidade de comportar as 120 famílias da comunidade (468 pessoas), deverá ter suas casas entregues no primeiro semestre de 2019. “Dos noves terrenos que formam a área, oito já estão adquiridos e o nono está em fase final de assinatura de contrato”, detalha. Já em Gesteira, na zona rural de Barra Longa (MG) — que também ficou sob a lama da Samarco —, foi reaberta junto à mobilização da Assessoria Técnica Associação Estadual de Defesa Ambiental e Social (AEDAS) a negociação para a aquisição da área escolhida pela comunidade para abrigar as 20 famílias (61 pessoas) atingidas.
Joceli esclarece, no entanto, que as coisas não são bem assim. As áreas para reassentamento foram ‘escolhidas’ pelas comunidades afetadas a partir de três opções apresentadas para cada uma pela Renova. “A comunidade de Bento Gonçalves escolheu a Lavoura no dia 7 de maio, Paracatu escolheu a Lucila no dia 3 de setembro e Gesteira escolheu o terreno dos Macacos no dia 25 de junho”, informa. Porém, segundo ele, em nenhum dos terrenos há qualquer atividade iniciada. De acordo com o MAB, a Renova começou a fazer um projeto da nova Bento Gonçalves com os atingidos e o projeto foi rejeitado pelo órgão ambiental de Minas Gerais por inadequações, além de o terreno apresentar problemas documentais. “Uma das inadequações colocadas pelo órgão ambiental é a grande movimentação de terra que teria que ser feita no terreno para cumprir o projeto de comunidade apresentado, o que colocaria famílias vivendo abaixo de um barrando de 18 metros de altura”, explica Joceli, contando também que, em relação à nova Gesteira, a Renova chegou a dizer aos atingidos no início do ano que não compraria o terreno. “A Fundação mudou de ideia após pressão dos atingidos organizados no MAB e apoiados pelo Ministério Público e pela assessoria técnica AEDAS”, acrescenta.
Ele ressalta que o processo de elaboração do acordo não permitiu a participação das pessoas atingidas pelo rompimento da barragem, deixando de fora as reais necessidades das famílias (ver reportagem de capa da Revista Poli nº 43, de jan/fev de 2016, sobre as causas do maior desastre socioambiental do país). Um exemplo disso é o cadastro-padrão contratado pela Renova à empresa Synergia Consultoria Ambiental, para catalogar as perdas materiais e imateriais das famílias e dos moradores individualmente e, depois, calcular as indenizações caso a caso. Para ele, o documento tem uma linguagem pouco acessível, com excesso de informações e mecanismos de comprovação das perdas muito documentais. “Isso preocupa porque pode associar a garantia de direitos a mecanismos probatórios que no caso da dimensão de impacto das famílias encontram-se prejudicados, já que diversas delas perderam tudo, não podendo reconstituir os dados sobre o patrimônio através de registro fotográfico ou prova documental”, diz trecho do parecer do MAB sobre o método do formulário que começou a ser aplicado pela Renova em julho de 2016. De acordo com o Movimento, o formulário foi criticado também pelo Grupo de Estudos em Temáticas Ambientais (Gesta) da Universidade Federal de Minas Gerais por deixar muitas famílias de fora. “Nem todas as famílias que foram cadastradas são consideradas atingidas e tampouco receberão alguma forma de reparação”, denuncia Joceli.
O trabalho, suspenso por decisão judicial em novembro de 2016, após ação coletiva contra a Samarco que questionou especialmente os critérios para definição de bens imateriais, os conceitos de reparação e reconstrução e a exclusão dos próprios atingidos na elaboração das questões a serem respondidas por eles, está sendo revisto. De acordo com a Fundação, até setembro 75% das solicitações (de moradores) foram acatadas para a modificação do cadastro e as “discussões finais estão em curso para reduzir a incompatibilidade verificada em 25% das questões e se chegar ao consenso”.
O coordenador do MAB revela os muitos interesses que estariam por trás da morosidade da Samarco: “Tem uma questão muito séria, que é a tentativa da empresa de se apropriar das terras que foram cobertas pelo minério, fazendo de Bento Rodrigues — maior distrito impactado — um grande armazém de rejeito de minério”, denuncia.
Joceli realça que nos oito distritos de Mariana, epicentro do desastre socioambiental, pelo menos 40 pessoas que assistiram à lama bater à porta de casa lutam para ser incluídas em programas de assistência da Fundação Renova e cerca de 700 famílias estão fora do cadastro da instituição, ainda que a instituição afirme estarem de fora 514 famílias (1.611 pessoas). “Ao observar a extensão do desastre, iremos conferir que há milhares de famílias não reconhecidas e, portanto, com seus direitos negados”, corrige. Um grande exemplo disso é o não cadastramento de várias comunidades na foz do Rio Doce, em Linhares e São Mateus. “Mais de mil famílias não foram cadastradas. Depois que os atingidos ocuparam uma reunião do Comitê Interfederativo em março de 2017, este recomendou o cadastramento dessas famílias. Mas até hoje a Renova não começou a cumprir a recomendação”, denuncia o MAB.
Joceli faz ainda críticas ao Programa de Indenização Mediada (PIM), criado pela Fundação como parte do Termo de Transação e de Ajustamento de Conduta para atender as pessoas e micro e pequenas empresas que sofreram danos materiais, morais ou perdas ligadas às suas atividades econômicas. “Para receber pelos danos, as famílias têm que assinar um documento de quitação, isentando a Samarco de quaisquer eventualidades ou danos futuros”, esclarece. E sentencia: “Isso é uma armadilha”.
Quanto à recuperação ambiental da região, o MAB observa que, a despeito dos diversos pontos de monitoramento da qualidade da água que a empresa diz ter, os atingidos têm pouca informação sobre a qualidade da água e da terra por onde a lama passou. “Não há orientação sobre possibilidades de moradias próximas à área onde a lama está depositada, nem se há como se plantar, muito menos sobre os impactos da poeira da lama na saúde das pessoas”, diz Joceli. Segundo ele, hoje há famílias vivendo a poucos metros da área onde a lama está depositada, fazendo uso da água, construindo casas e plantando. “Animais caminham e se alimentam em áreas com lama e tomam água do rio por onde a lama passou”, denuncia, contando que em 2016, em Barra Longa, foram notificados mais de 300 casos de dengue. “Esse número nos anos anteriores não passava de 50 casos”, compara.
Os recursos do setor são vultosos: somente a Vale produziu, no terceiro trimestre deste ano, 95,1 milhões de toneladas de minério de ferro, o que representou uma alta de 3,3% na comparação com o mesmo período do ano passado, quando foram produzidas 92,09 milhões de toneladas. O Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc), que vem há anos acompanhando o setor como parte do Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração, realça que a companhia entregará aos seus acionistas R$ 5,52 bilhões que não serão taxados, já que desde 1995 os lucros e dividendos recebidos por donos e acionistas de empresas estão isentos de imposto. “Uma taxa de 15%, como era cobrada até 1995, renderia aos cofres públicos R$ 828 milhões, somente de lucros de dividendos dos acionistas da Vale”, critica o Instituto. Em julho deste ano, o Portal do Governo brasileiro anunciou: “O setor mineral arrecadou US$ 11,5 bilhões ao longo do primeiro semestre deste ano. A balança foi superavitária, já que as exportações com mineração e transformação mineral arrecadaram US$ 22,6 bilhões, enquanto que as importações foram de US$ 11,1 bilhões”. Segundo a consultoria Economatica, no terceiro trimestre de 2010, por exemplo, o setor ficou em primeiro lugar no ranking da economia brasileira, lucrou um total de R$ 12,5 bilhões, contra R$ 3,7 bilhões em 2009, na frente de setores econômicos grandiosos como o bancário, que obteve um lucro de R$ 9,98 bilhões no mesmo período.
Estudo recente realizado pela Rede Latino-Americana sobre Dívida, Desenvolvimento e Direitos (Latindadd), em parceria com o Instituto Justiça Fiscal do Brasil, intitulado ‘Subfaturação no Setor de Mineração no Brasil Evade US$ bilhões do Orçamento Público’, supõe que as mineradoras que atuam no Brasil para aumentar ainda mais seus exorbitantes lucros façam uso de evasões fiscais, desvios e sonegação de impostos e, principalmente, transferência da renda pública gerada pela atividade mineradora para os capitais privados de empresas nacionais e transnacionais do ramo. De acordo com este levantamento, há um déficit de US$ 2 bilhões deixados de arrecadar para o povo brasileiro com a exportação de minério de ferro somente em Minas Gerais — maior estado minerador. “Estima-se que o subfaturamento nas exportações de minério de ferro produziu a fuga de US$ 39,1 bilhões entre 2009 e 2015, uma perda média de mais de US$ 5,6 bilhões por ano. Ao valor subfacturado foi associada uma perda de receitas fiscais de US$ 13,3 bilhões para o mesmo período, o que representa uma perda média anual de US$ 1,9 bilhão”, escreve o documento da Rede Latindadd.
Somado à Lei Kandir, promulgada nos anos de 1990, que isenta as mineradoras de tributos das operações relativas à circulação de mercadorias e serviços (ICMS), principalmente destinados à exportação, o estudo constata ainda, em Minas Gerais, nos últimos 20 anos, uma desoneração aos cofres público de um montante próximo de R$ 135 bilhões. “As questões fiscais e tributárias e sua relação com a mineração são um aspecto a mais, e não menos importante de um modelo que viola direitos sociais, ambientais e trabalhistas”, conclui a assessora política do Inesc, Alessandra Cardoso.
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Os interesses econômicos por trás (ou debaixo) da lama de rejeitos da mineração - Instituto Humanitas Unisinos - IHU