Após mais de um ano do rompimento da barragem da empresa mineradora
Samarco, na localidade de
Bento Rodrigues, distrito do município de
Mariana (
MG), que causou 19 mortes, as pessoas que tiveram suas vidas atropeladas pela lama seguem lutando por seus direitos e pela reparação dos danos que sofreram. As reclamações de quem teve a vida arrasada pelo
rompimento da barragem são muitas e vão desde o acordo que deu à própria Samarco a atribuição de definir quem são os atingidos pela tragédia até a resistência da empresa em atender demandas básicas como o custeio de passagens de ônibus de R$ 3,50 para crianças irem à escola. “A Justiça brasileira não está preparada para lidar com esse tipo de situação. Não existem sequer leis que se apliquem a situações como esta”, diz
Antônio Liborio Philomena, oceanógrafo, professor aposentado da Universidade Federal de Rio Grande (FURG) e Ph.D em Ecologia pela Universidade da Geórgia (EUA).
A entrevista é de Marco Weissheimer, publicada por Sul21, 21-11-2016.
Por aproximadamente 15 anos,
Antônio Philomena foi chamado por órgãos federais, estaduais e municipais para realizar perícias em acidentes e
desastres ambientais como o que ocorreu em
Bento Rodrigues. Impressionado pela dimensão e pelos impactos do rompimento da barragem da
Samarco, o pesquisador resolveu, com o apoio de professores da Universidade de Ouro Preto, realizar uma perícia independente sobre o impacto ambiental da tragédia. Em entrevista ao Sul21, Philomena fala sobre o que viu nas quatro viagens que já fez à região atingida pelo desastre e aponta a existência de uma caixa-preta de informações que não são disponibilizadas ao público sobre a real dimensão do impacto social e ambiental do rompimento da barragem.
“A valoração econômica, em geral, não abarca 10% do dano provocado, pois ela só reconhece o que tem valor no mercado, coisas como peixe, galinha ou porco. Existem várias metodologias para definir essa valoração. Umas vão mais fundo que outras. É uma tarefa muito complexa, pois trabalhamos com coisas que são consideradas incomensuráveis”, diz o pesquisador.
Eis a entrevista.
Como nasceu o seu envolvimento com o desastre de Mariana?
Há cerca de 15 anos, tenho sido chamado para realizar perícias em acidentes e
desastres ambientais por órgãos federais, estaduais e municipais. Como professor da
FURG (Universidade Federal do Rio Grande) com dedicação exclusiva, nunca cobrei nada para realizar esse tipo de trabalho que envolve desde o cálculo de multas por danos causados até os impactos ambientais desses eventos. Quando vi as primeiras imagens do que tinha acontecido em
Mariana, decidi ajudar. Entrei em contato com um promotor estadual que havia aparecido na televisão, me identifiquei, me coloquei à disposição e sugeri que ele tivesse muito cuidado neste caso, pois iriam tentar atropelá-lo, o que, de fato, acabou acontecendo. Esse caso é muito complexo e a Justiça brasileira não está preparada para lidar com esse tipo de situação. Não existem sequer leis que se apliquem a situações como esta.
No caso de Mariana, essa situação ficou ainda mais complicada porque as esferas federal e estadual começaram a brigar. Tanto foi assim que, quem mais conseguiu fazer alguma coisa foi o promotor da Comarca de Mariana que está se dedicando exclusivamente à reparação das pessoas que tiveram suas vidas atingidas pelo rompimento da barragem. É uma briga muito pesada. Já fui quatro vezes para lá, por minha conta. Tenho amigos naquela região, que são professores na universidade de Ouro Preto e que me ajudaram a fazer os primeiros contatos. Isso foi muito importante pois boa parte da população de Mariana rejeita as pessoas de Bento Rodrigues, atribuindo a elas a responsabilidade pelo fechamento da Samarco e pelo impacto econômico da paralisação das atividades da empresa.
Isso é explícito?
Sim. É explícito. Elas não podem nem sair na rua direito, pois sofrem xingamentos e ameaças. Essas pessoas perderam tudo e foram colocadas em alguns lugares que deixam muito a desejar.
Quantas pessoas estão nesta situação?
A
Samarco, que é controlada pela Vale e para
BHP Biliton, foi quem decidiu quem foram os atingidos. Hoje, os atingidos “oficiais” não chegam a 150 pessoas. Tem gente que tinha casa na área, mas não morava lá, utilizando a mesma como um sítio de verão. Uma das pessoas nesta situação relatou que foi ao local onde constatou que tudo tinha sido destruído e, quando retornou ao
Rio de Janeiro, recebeu um documento comunicando que ela havia perdido aquela área, sem nenhum tipo de
indenização.
Só estes reconhecidos oficialmente pelas empresas é que sentam na mesa de negociações. É uma situação horrível para eles. A
Samarco tem cerca de 30 advogados trabalhando exclusivamente neste caso. No seminário realizado dias 5 e 6, em
Ouro Preto, uma delas relatou que a Vale não quer pagar R$ 3,50 de passagem de ônibus para as crianças irem ao colégio. É preciso abrir um processo para tentar garantir mesmo esse tipo de coisa. Foram as empresas que decidiram também quanto pagar às famílias que perderam alguém no episódio. Elas fixaram a indenização em R$ 120 mil por pessoa falecida, não importando a idade da mesma. Já presenciei várias vezes esse tipo de situação. A Justiça brasileira não tem um grupo especializado para lidar com essas situações. Agora, depois do que aconteceu em
Mariana, estão começando a pensar no assunto.
Isso aconteceu em todos os grandes desastres que presenciei, como o derrame de óleo na
Baía da Guanabara ou a destruição do rio
Paraíba do Sul. No caso de
Mariana, percebi que as coisas não iam indo bem quando, a cada semana, se anunciava um valor diferente de multa. Não é assim que funciona. Nunca apareceu, até hoje, como é que essas contas foram feitas. Como chegaram ao numero de 5 milhões? E, depois, porque mudaram esse numero para 50? Onde estão os cálculos? Foi feito na base do chute? Onde estão os documentos que fundamentam esses cálculos? Há uma dificuldade imensa para conseguir documentos sobre esse caso. Eu consegui reunir informações graças à colaboração de diversas pessoas que me encaminharam fotos, matérias de jornais da região e outros materiais.
O trabalho que você realiza é, basicamente, quantificar o dano?
Sim, na parte ambiental. Estou apurando o que se perdeu de natureza na
bacia hidrográfica do rio Doce. A ideia é quantificar isso em reais. É um trabalho difícil e complexo que exige muita pesquisa e uma série de cálculos. Os números das multas apresentados até agora não vieram acompanhados de nenhum cálculo mostrando como se chegou a eles. O
IBAMA até deve fazer contas, mas não abre essa informação. Quando sou chamado para fazer uma perícia, apresento ao final do trabalho um relatório com um anexo, onde aparecem todos os cálculos feitos. Até agora, não foi apresentado nenhum documento como esse no caso de
Mariana. As empresas não estão fazendo um jogo muito profissional e legal.
As pessoas atingidas têm que batalhar para conseguir qualquer coisa. Além do caso das passagens de ônibus, vou dar mais um exemplo. As empresas pegaram animais que viviam na área afetada, incluindo cães, gatos e outros animais domésticos, e colocaram num lugar isolado. Um morador me relatou que queria pegar os cavalos que tinha para vender, pois estavam sem dinheiro algum. Não teve acesso a eles. Sabe-se que vários animais morreram e até hoje os donos desses animais não sabem o que aconteceu com eles e não têm direito a nada.
A última notícia que me espantou é que a empresa ganhou um terço de
Bento Rodrigues para fazer outra barragem, que estão chamando de dique de contenção. No evento realizado agora em novembro, em
Ouro Preto, apareceu um vídeo onde duas pessoas que não mostram o rosto dizem que a empresa queria, há muito tempo, tirar os moradores daquela área e agora finalmente conseguiu. A nova obra abarca um terço do distrito que foi dizimado pelo rompimento da barragem. Toda a área atingida foi cercada e isolada. A justificativa foi que estavam roubando coisas das casas. Roubando o quê? Uma placa de carro cheia de lama caída no chão, uma cadeira quebrada? Foi tudo destruído. Fui lá e encontrei a área cercada por uma tela, correntes com cadeados e gente armada.
Qual tem sido a reação da população a esse tipo de situação?
No município de Mariana, a situação é complicada. Cerca de 85% do dinheiro que é arrecadado pela Prefeitura vem da Samarco. Em Mariana, a cada quadra, você encontra um abaixo-assinado para reabrir a mineradora. Ocorreu um grande acordo envolvendo governo federal, estados e a Samarco, pelo qual a empresa pagará uma indenização de cerca de R$ 20 bilhões e não sofrerá nenhum outro tipo de processo. Esse dinheiro será gerido por uma fundação. Se você for ver os nomes de quem participará dessa fundação, verá que há muita gente ligada às empresas em questão, além de deputados e donos de empresas.
Quando pretende terminar a perícia que está realizando?
Eu dependo de duas coisas. Em primeiro lugar, do acesso a dados que vem chegando lentamente. Muitos estudos serão concluídos agora em 2017. A Universidade de Ouro Preto sofreu criticas porque os departamentos de Engenharia de Minas e de Geologia, que recebem verbas das empresas para pesquisas e bolsas de estudo, não tinham se posicionado sobre o episódio. A partir daí, começaram a aparecer alguns estudos na universidade, principalmente na área social e antropológica. Uma dessas pesquisas está construindo uma narrativa da tragédia a partir do relato oral dos atingidos.
Além dos danos ambientais já provocados pelo rompimento da barragem há outros que seguem se manifestando?
Continua saindo lama da barragem. Por isso eles querem construir outra na mesma área. No caminho da lama pelo rio Doce, havia uma hidroelétrica. Para não permitir que a lama entrasse na usina, eles fecharam as comportas. O reservatório foi enchendo e virou um lago onde, no fundo, está cheio de lama. A limpeza do fundo desse lago está no acordo firmado pela empresa com o governo.
A parte social até que está andando, muito graças ao trabalho do promotor da Comarca de Mariana que está conseguindo fazer com que as pessoas comecem a receber o que tem para receber. Mas tudo abaixo de judicialização. Houve um acordo de uma nova locação para Bento Rodrigues, que foi escolhida pelas pessoas atingidas. Esse acordo não foi tranqüilo. Há pessoas que não queriam uma nova locação, alegando que diferentes gerações de sua famílias viveram naquela área que foi arrasada pelo rompimento da barragem. Mas chegaram a um acordo. O problema é que, quase tudo que a empresa prometeu, ela não cumpriu ainda. A estratégia da Samarco é ganhar tempo.
Há ainda a situação da
comunidade indígena Krenak, de aproximadamente 400 pessoas, que está cercada, sem poder usar o rio. Ouvi o relato de um morador que perdeu um boi que conseguiu ultrapassar a cerca e foi beber água no rio. O boi morreu no dia seguinte. Esses índios viviam do rio e hoje estão separados do mesmo por uma cerca. Estão desesperados, sem poder pescar e usar o rio, comendo pão, rapadura e outras coisas às quais não estavam acostumados. Conversei com o cacique dessa comunidade em
Ouro Preto e vou fazer força para ir lá e tentar ajudá-los. A situação deles é a pior de todas, pois estão recebendo muito pouca assistência.
Como é feita essa valoração de elementos da natureza em um episódio como este? Existe uma metodologia adotada internacionalmente para isso?
A valoração econômica, em geral, não abarca 10% do dano provocado, pois ela só reconhece o que tem valor no mercado, coisas como peixe, galinha ou porco. Existem várias metodologias para definir essa valoração. Umas vão mais fundo que outras. É uma tarefa muito complexa, pois trabalhamos com coisas que são consideradas incomensuráveis. Fiz meu doutorado sobre esse tema. No caso de
Mariana, por exemplo, quando vamos iniciar um trabalho de valoração dos
danos ambientais, temos coisas como barro, lama, água, peixe, cerca, casa, vida e morte. Cada um desses elementos representa uma unidade diferente. Esse é o problema da valoração econômica. É preciso ter uma unidade comum que permita avaliar todos esses elementos.
Um ecologista e pesquisador dos Estados Unidos chamado Howard T. Odum desenvolveu uma metodologia para obter essa unidade comum. Ele fez a valoração da natureza, da tecnologia e, quando ia trabalhar com a parte social, ele faleceu, em 2011. Por meio dessa metodologia, conseguimos valorar na mesma unidade a natureza e a tecnologia. O método desenvolvido por Odum consiste em medir a energia que passa por cada coisa e multiplica essa medida por um fator comum que resultará em uma unidade em dinheiro. Em 1988, fiz meu doutorado na Lagoa dos Patos utilizado essa metodologia. Desde 1990, ela vem sendo utilizada internacionalmente. Há países, como a Suécia, que são planejados seguindo o método de Howard Odum. Uma de suas riquezas é ir alem da visão antropocêntrica que a economia tem. O homem só reconhece valor naquilo que tem interesse. Dentro desta lógica, uma barata, por exemplo, não tem valor algum. Pode pisar em cima.
Quando ocorre um desastre como o de Mariana é preciso ter um jeito para valorar coisas desse tipo na bacia inteira do rio Doce e não apenas no distrito de Bento Rodrigues. De Bento Rodrigues até o mar, numa faixa de 50 quilômetros nos dois lados do rio, mudou tudo. Há varias organizações que estão monitorando a contaminação do rio e do mar, mas ainda temos pouca informação divulgada a respeito. Já temos confirmação da presença de contaminação por metais pesados. Cabe ressaltar que, hoje, nos Estados Unidos e na Europa, não se faz mais medição isolada de metais pesados que são cumulativos durante um certo tempo. Você pode se meter numa discussão sobre o sexo dos anjos, querendo estabelecer se há 0,021 ou 0,023% de um determinado metal pesado numa amostra. Não está mais se fazendo essa medição na água ou em sedimentos, mas sim em organismos. E, mesmo aí, não se faz mais medições isoladas. Não basta avaliar apenas a urina. É preciso avaliar também cabelo, sangue e suor.
Pelo seu relato, há uma caixa-preta de informações que segue fechada ao público?
Sim. Faz parte do jogo. Sempre.
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Pesquisador gaúcho faz perícia independente sobre impacto ambiental do desastre em Mariana - Instituto Humanitas Unisinos - IHU