11 Setembro 2017
“O motu proprio Magnum Principium, emitido pelo Papa Francisco nesse sábado, pode não ser uma ‘bomba’, mas certamente é uma mudança significativa na direção de quem é responsável pelas traduções litúrgicas.”
A opinião é do jesuíta estadunidense John F. Baldovin, professor de teologia histórica e litúrgica da Faculdade de Teologia do Boston College, nos Estados Unidos. O artigo foi publicado por revista America, 09-09-2017. A tradução é de Moisés Sbardelotto.
A questão de quem tem a responsabilidade apropriada pela tradução dos textos litúrgicos tem sido uma espécie de “disputa política” desde o Concílio Vaticano II.
Por um lado, o Concílio queria claramente que essa responsabilidade permanecesse principalmente junto às conferências episcopais (isto é, as assembleias nacionais dos bispos). Por outro lado, mesmo antes do encerramento do Concílio, uma instrução vaticana sobre a implementação da reforma litúrgica colocou o peso da responsabilidade não nas conferências nacionais dos bispos, mas na recognitio e na confirmatio [reconhecimento e confirmação] dos textos traduzidos por parte da Santa Sé (ou seja, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos – como ela é conhecida hoje).
Nos países de língua inglesa, esse procedimento não pareceu causar muita preocupação durante a primeira onda de tradução (até os anos 1970). No entanto, a partir da segunda geração de revisões, especialmente a revisão do documento Pastoral Care of the Sick: Rites of Anointing and Viaticum (1983), o Vaticano começou a se tornar mais proativo no escrutínio das traduções enviadas a eles.
Nesse ínterim, a Comissão Internacional sobre o Inglês na Liturgia (ICEL, na sigla em inglês), composta por bispos de 11 conferências episcopais de língua inglesa, continuou a produzir traduções revisadas de acordo com os princípios estabelecidos pelo próprio documento da a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos sobre tradução, Comme le Prévoit, publicado em 1969.
Durante os anos 1980 e 1990, as relações entre o Vaticano e a ICEL se tornaram cada vez mais tensas. Um momento crucial surgiu com a nova tradução do Saltério litúrgico da ICEL em 1995. Três anos depois, o Vaticano forçou a Conferência dos Bispos dos Estados Unidos a retirar a sua aprovação (imprimatur) da tradução.
Em 1997, o Vaticano respondeu à tradução proposta pela ICEL dos Ritos de Ordenação com uma carta em que se citavam 114 erros e alegando que muitos outros foram encontrados na tradução que havia sido enviada para a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos. Deve-se observar que cada conferência episcopal precisa aprovar as traduções a serem enviadas a Roma com dois terços dos votos.
Quando o novo representante dos Estados Unidos na ICEL, o cardeal Francis George, assumiu a liderança, o Vaticano procedeu para mudar a constituição da ICEL e retirar o seu secretário executivo de longa data, John Page, assim como todos os assessores que faziam o trabalho de preparação das traduções para a aprovação dos bispos.
Ao mesmo tempo, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos emitiu uma nova instrução sobre a tradução, Liturgiam Authenticam (2001), que reverteu a estratégia de tradução de Comme le Prévoit, insistindo em uma tradução muito mais literal dos textos em latim (incluindo a ordem de palavras e a pontuação) do que a filosofia anterior, que era comumente chamada de equivalência dinâmica.
Como se sabe, essa mudança imposta pelo Vaticano levou ao descarte de uma tradução do Missal Romano que havia sido aprovada por todas as conferências de língua inglesa em 1998 (novamente por dois terços dos votos em cada conferência). Uma nova tradução do Missal foi preparada e aprovada em 2010. Ela havia sido precedida por um rito de ordenação revisado e havia sido seguida por uma tradução do rito de confirmação e, há apenas um ano, por uma nova tradução da segunda edição do rito do matrimônio, que apareceu em 1992!
Em dezembro passado, o Papa Francisco anunciou que nomeara uma comissão de bispos e peritos sob a presidência do secretário da Congregação para o Culto Divino e da Disciplina dos Sacramentos (o segundo no comando), o arcebispo Arthur Roche, para revisar a Liturgiam Authenticam. Eles se reuniram algum tempo no inverno europeu passado. O motu proprio Magnum Principium, emitido pelo Papa Francisco nesse sábado, é presumivelmente uma resposta ao seu relatório.
Esse último documento pode não ser uma “bomba”, mas certamente é uma mudança significativa na direção de quem é responsável pelas traduções litúrgicas. O papa mudou o cânone 838 de duas maneiras importantes.
A primeira mudança é ao texto que anteriormente dizia:
§2. Pertence à Sé Apostólica ordenar a liturgia sagrada da Igreja universal, editar os livros litúrgicos e rever as suas versões nas línguas vernáculas, e ainda vigiar para que em toda a parte se observem fielmente as normas litúrgicas.
Agora ele diz (mudanças em negrito):
§2. Pertence à Sé Apostólica ordenar a liturgia sagrada da Igreja universal, editar os livros litúrgicos e rever as adaptações aprovadas segundo a norma do direito da Conferência Episcopal, e ainda vigiar para que em toda a parte se observem fielmente as normas litúrgicas
A segunda mudança é ao texto que anteriormente dizia:
§3. Compete às Conferências episcopais preparar as versões dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites fixados nos próprios livros litúrgicos, e editá-las, depois da revisão prévia da Santa Sé.
Agora ele diz (mudanças em negrito):
§3. Compete às Conferências Episcopais preparar fielmente as versões dos livros litúrgicos nas línguas vernáculas, convenientemente adaptadas dentro dos limites fixados, aprová-las e publicar os próprios livros litúrgicos, para as regiões de suas pertinência, depois da confirmação da Santa Sé.
A chave mais importante aqui encontra-se no §2, onde “traduções” é substituído por “adaptações”. Estas últimas referem-se às mudanças significativas no texto em latim original (edição típica) publicado pelo Vaticano – ou seja, acréscimos feitos pelas próprias conferências. Eles estão sujeitos a uma verificação mais próxima pela Congregação. Agora, as traduções (§3) devem ser confirmadas pela Santa Sé. A importância dessa mudança aparentemente pequena é notada pelo próprio papa no motu proprio:
“Para que as decisões do Concílio sobre o uso das línguas vernáculas na liturgia possam valer também em tempos futuros, é extremamente necessária uma constante colaboração plena de confiança recíproca, vigilante e criativa, entre as Conferências Episcopais e o Dicastério da Sé Apostólica que exerce a tarefa de promover a Sagrada Liturgia, isto é, a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos.”
De forma mais simples, o peso da responsabilidade agora recai muito mais sobre os ombros das várias conferências episcopais. Isso fica mais claro no comentário vaticano oficial sobre o motu proprio:
“Em síntese, ordinariamente realizada por via fiduciária, a ‘confirmatio’ pressupõe uma avaliação positiva da fidelidade e da congruência dos textos produzidos em relação ao texto típico latino, levando-se em conta principalmente os textos de maior importância (por exemplo, as fórmulas sacramentais, que exigem a aprovação do Santo Padre, o Rito da Missa, as Orações Eucarísticas e de Ordenação, que envolvem uma acurada revisão).”
Em sua “chave” explicativa para a leitura do motu proprio, o arcebispo Roche afirma que a Liturgiam Authenticam precisa ser reinterpretada à luz do novo documento em relação ao modo como se trata o selo de aprovação do Vaticano.
Quais são as consequências? Em primeiro lugar, o Vaticano ainda tem a última palavra sobre as traduções. Isso não mudou – nem é provável que mude, por razões bastante óbvias, como a unidade da fé.
Mas, em segundo lugar, a comissão vaticana, Vox Clara, que foi estabelecida pelo Papa João Paulo II em 2002 para ajudar a Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos a avaliar as traduções inglesas, é agora redundante. Para muitos, ela havia sido uma clara violação do espírito e da letra do Vaticano II, acima de tudo.
Em terceiro lugar, aquelas conferências que experimentaram tensões com o Vaticano sobre as traduções revisadas, como as de língua francesa e de língua alemã, agora têm muito mais espaço para decidir o que é melhor para a tradução dos textos litúrgicos.
Em quarto lugar, as conferências terão agora uma grande margem para a aplicação das regras estabelecidas na Liturgiam Authenticam. Em todo o caso, seria um bom momento para que o Vaticano emitisse uma declaração mais equilibrada sobre a tradução, em consonância com o óbvio desejo do papa de respeitar “todo o ato da comunicação” (certamente uma referência a Comme le Prévoit), assim como de ser fiel à sã doutrina.
Por fim, e o mundo católico de língua inglesa? Não é nenhum segredo que a tradução de 2010 recebeu uma recepção mista e diversos católicos proeminentes, não por último o teólogo jesuíta australiano Gerald O’Collins, pediram uma reconsideração do atual Missal. Muitos se alegrarão muito se a tradução atual for revisada. Certamente, alguns não.
Os bispos, particularmente a Conferência Episcopal dos Estados Unidos, terão que decidir como proceder. Agora, eles têm muito mais autoridade sobre a tradução litúrgica. A bola está em suas mãos.
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Liturgista explica mudança promovida por Francisco nas regras de tradução da missa - Instituto Humanitas Unisinos - IHU