Por: Ricardo Machado | 16 Mai 2017
Altair Sales Barbosa é um desses homens raros, de outro mundo. De estilto discreto e nada performático, munido apenas de uma caneta bic azul, milimetricamente ajustada à lateral esquerda do bolso da camisa, sentou-se à mesa do conferencista e por mais de uma hora e meia falou como um sábio, sem apresentações digitais, nem anotações, apenas com a força da memória cuja profusão de dados e informações vem ao fechar brevemente os olhos. Altair Sales proferiu a conferência O Sistema Biogeográfico do Cerrado, as comunidades tradicionais e a cultura, evento que integra a programação da 14ª Páscoa IHU – Biomas Brasileiros e a teia da vida.
“Não se pode mais ver o universo na curvatura de Euclides ou mesmo de Einstein, precisamos mudar os paradigmas, mas não sabemos exatamente para qual paradigma. O certo é que o homem tem que se transformar, porque já batemos a cabeça na parede”, provoca Altair. Arraigado intensamente às complexidades da teia da vida, o professor falou para um público seleto e atento que assistiu a conferência na sala Ignacio Ellacuría e Companheiros – IHU, na noite da terça-feira, 16-5-2017.
Ao debater o Cerrado, região que conhece como intelectual e como sábio, afinal além da formação acadêmica nasceu no interior baiano, ele chama atenção para a precariedade dos dados oficiais sobre a região. “Geralmente os índices oficiais do Cerrado tem dados diferentes da realidade concreta. Normalmente isso é feito por meio de imagens aéreas, que não correspondem ao estado interior do bioma, que é a condição que determinará a possibilidade de armazenamento das águas”, explica o professor.
Altais Sales Barboa | Foto: Ricardo Machado/IHU
Uma das especificidades do Cerrado é que, do ponto de vista amplo, ele é formado por um gradiente rasteiro de plantas e também por áreas sombreadas com matas, formando pequenas regiões com maior umidade. Outro aspecto importante, é que o Cerrado fica geograficamente no centro de vários sistemas biogeográficos, servindo como uma espécie de fiel da complexa balança ambiental brasileira.
“No Brasil temos sete grandes matrizes ambientais, da Amazônia às coxilhas no Sul do país. No centro de tudo isso, quase como contribuindo para o equilíbrio entre eles, situa-se, nos chapadões do Brasil, o Cerrado. Caracterizado por um gradiente vegetal super variado, passando por vários subsistemas”, pontua o professor. “Os rios do Cerrado são permanentes e de água cristalina, responsável por muitas bacias da América do Sul”, pontua.
De acordo com Altair Sales, o Cerrado é o mais antigo ambiente da história recente da terra, que conta 65 milhões de anos. Além disso, é um bioma de sintonia fina, de sutilezas sensíveis da teia da vida. “O início do Cerrado data do período Cenozoico, há 65 milhões de anos, tendo sido concretizado há 45 milhões de anos. Isso significa que o Cerrado já atingiu seu clímax evolutivo, é um ambiente que uma vez degradado jamais se recuperará na plenitude de sua biodiversidade”, adverte o pesquisador. “Quando os políticos dizem que farão a transposição do São Francisco e a revitalização do Cerrado trata-se de um projeto impossível, porque não tem como recuperar os impactos. Das 13 mil plantas do deste bioma só existe a possibilidade tecnológica de reprodução em estufas artificiais de 180 espécies”, alerta.
Para se ter uma ideia do que isso significa, a semente do Araticum só brota e cresce depois de passar pelo intestino de um desses três animais: o cachorro do mato, a raposa e o lobo guará, (todos eles ameaçados de extinção). Outro exemplo da complexidade do Cerrado é o Buriti, que, segundo explica o professor, “vai atingir sua fase adulta e reprodutiva, e portanto só poderá contribuir ecologicamente, por volta dos 500 anos, enquanto o capim-barba-de-bode só chega à fase adulta por volta dos mil anos de idade”.
O Cerrado não é somente uma fonte de inestimável riqueza biológica e ecológica, mas também um local fundamental às grandes bacias hidrográficas brasileiras. “As bacias do Parnaíba, com as águas que vão para o Norte, e do Paraná, com as águas que vão para o Sul, nascem no Cerrado”, destaca o professor. No entanto, o crescimento da produção agrícola da alta escala pode transformar o berço da vida em vale da morte, devido às políticas públicas implantadas no Brasil a partir da década de 1970 e que passaram a se intensificar nos anos 1990, com a globalização.
“Para plantar soja na época da chuva é preciso deixar o solo durante seis meses sem nada. E isso causa uma espécie de 'cimentização' da terra. Então quando chove, a água não permeia o solo, porque fica empoçada e evapora antes de penetrar nas camadas mais profundas. Com isso, não existe mais área de recarga para nossos aquíferos”, lamenta Altair. “Isso ocorre em função de uma matriz territorial implantada no Brasil a partir dos anos 1970 conduzida por grandes corporações mundiais que não têm compromisso nem ambiental, nem cultural e muito menos com os interesses populares”, frisa o conferencista, ao alertar que chegamos ao fim da linha do paradigma extrativista predador e que seguir em frente é bater a cabeça contra a parede.
Amigo e companheiro de longa data de Altair Sales Barbosa, Pedro Ignácio Schmitz, professor, pesquisador e diretor do Instituto Anchietano de Pesquisas da Unisinos, chamou atenção para o modo como o conferencista tratou do tema ambiental. “Gostaria de parabenizar o IHU por trazer pessoas de outro mundo. Nessas minhas andanças eu conheci muitos sábios, não intelectuais, mas pessoas que conseguem mostrar a originalidade da cultura brasileira. Eles são muito importantes porque promovem uma reflexão para conhecermos outros sistemas e formas de conhecimento. Saio daqui realizado, é como se eu tivesse por um grande banquete e precisasse muito tempo para ir digerindo tudo o que ouvimos”, avalia Schmitz.
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Entre o conhecimento tradicional e a sapiência acadêmica, os saberes do Cerrado - Instituto Humanitas Unisinos - IHU