06 Dezembro 2016
Apesar da insistência dos aliados papais de que tudo está claro em Amoris Laetitia, existe um segmento importante da Igreja que não acredita que isso seja verdade. Independentemente se formam uma maioria ou uma minoria, estas pessoas não podem ser simplesmente ignoradas, pois entre elas estão figuras importantes da hierarquia.
A reportagem é de John L. Allen Jr., publicada por Crux, 04-12-2016. A tradução é de Isaque Gomes Correa.
Para um documento que pretendeu assentar o debate desencadeado pelos dois Sínodos dos Bispos convocados para discutir temas relacionados ao matrimônio e à família, Amoris Laetitia mostra-se notável pelo quanto que deixou em aberto e em disputa.
Aos que não acompanham tudo o que acontece em torno deste documento, esta exortação é um tratamento amplo de um papa tremendamente pastoral, não podendo se reduzir a um único ponto contestado. Não obstante, a questão mais polarizadora durante os sínodos foi se os católicos divorciados e que voltaram a se casar no civil podem receber o sacramento da Comunhão sob certas circunstâncias, e todo mundo leu o texto com um olho ao que Francisco iria dizer sobre o tema.
No documento, o pontífice aborda o ponto em uma nota de rodapé – nota número 351 – que aparentemente deixou em aberto para um “sim”, mas não fazendo-o de modo que mudasse explicitamente o direito canônico ou o magistério católico. Isso abriu caminho para que os bispos interpretassem de diferentes maneiras as implicações da decisão do papa, com alguns assumindo uma abordagem restritiva e outros uma linha mais permissiva.
Isto é exatamente o que aconteceu, com algumas dioceses no mundo declarando que nada se alterou e que os fiéis divorciados e recasados podem receber a Comunhão somente se viverem como “irmãos e irmãs”, ou seja, sem relações sexuais; e outros dizendo que eles podem se apresentar à Comunhão após um processo de discernimento com um padre ou bispo.
Esta semana, no sítio Crux, um outro marco aparece em uma entrevista do padre jesuíta Antonio Spadaro concedida a Austen Ivereigh, em que insiste que alguns dos ataques dirigidos ao documento do papa refletem um “espírito ruim” e que qualquer um que seja sincero não precisa de esclarecimentos posteriores sobre o debate da Comunhão além do que já se tem.
“Acho que uma consciência questionadora pode facilmente encontrar todas as respostas que está procurando, se buscar com sinceridade”, disse Spadaro, e dado o seu status como assessor e confidente próximo do papa, devemos levar a sério isto o que diz.
Por outro lado, há claramente outras pessoas sérias que não acham que tudo o que se disse em Amoris Laetitia está definitivamente resolvido.
Recentemente, quatro cardeais escreveram ao Papa Francisco pedindo-lhe que resolvesse o que descreveram como “confusão” e “desorientação” como consequência do documento. O papa declinou a responder, levando os cardeais a tornarem pública a solicitação.
Em poucos dias, uma agência de notícia pediu ao cardeal alemão Gerhard Ludwig Müller, prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, que comentasse a situação.
Müller falou que a CDF somente se pronuncia com a autoridade do papa e que não pode se envolver em uma “polêmica de opiniões”, e também apelou a todos os envolvidos no diálogo a “permanecerem objetivos” e a não sucumbir à “polarização”.
No entanto, Müller também deixou aberta a possibilidade de que Francisco pode encarregar a congregação doutrinal com a tarefa de criar uma “comissão ad hoc” para resolver a disputa. Isto, que fique claro, não é a linguagem de alguém que crê que Amoris Laetitia e as respostas dadas a este documento revolveram todas as dúvidas possíveis.
O prelado alemão disse ainda que a exortação apostólica não deveria ser interpretada como se as respostas dos papas anteriores e da CDF não fossem mais válidas. No entanto, visto que as respostas foram basicamente “não” e Amoris Laetitia aparentemente disse “sim” à questão da Comunhão, esta não é exatamente uma contribuição a uma maior clareza.
Em outra entrevista, o destacado filósofo católico alemão Robert Spaemann contou ao sítio noticioso italiano Nuova BQ que a indisposição aparente do papa em responder claramente “sim” ou “não” pode estar em contraste com o próprio estilo de ensino de Jesus.
“O papa claramente tem uma aversão profunda a enfrentar decisões que requerem um ‘sim’ ou ‘não’”, disse Spaemann.
“No entanto Cristo, o Senhor da Igreja, frequentemente põe os seus discípulos diante de decisões como essas. Precisamente na questão que remete ao adultério, ele ‘chocou’ os apóstolos pela simplicidade e clareza de sua doutrina”, declarou na entrevista.
Spaemann sustenta que o ensinamento presente na nota de rodapé de Amoris Laetitia sobre os divorciados e recasados contradiz o magistério católico, assim os comentários do papa aqui não devem nos surpreender.
O que podemos tirar de conclusão disso tudo? Neste momento, duas coisas parecem claras.
Em primeiro lugar, apesar da insistência dos aliados papais de que tudo está perfeitamente claro em relação ao acesso à Comunhão, há um segmento importante da Igreja que simplesmente não acha que isso seja verdade. Independentemente se formam uma maioria ou uma minoria hoje, estas pessoas não podem ser simplesmente ignoradas, pois entre elas estão figuras importantes da hierarquia.
A propósito, a disposição de Spadaro em envolver-se numa troca de ideias com Ivereigh representa algo que não vinha sendo feito até então, que é responder diretamente aos quatro cardeais. Em si, esta atitude é um reconhecimento de que existem dúvidas que ainda necessitam ser respondidas.
Em segundo lugar, até o momento em que o Papa Francisco proferir uma resposta magisterial vinculativa, a previsão é que ocorra um controle local. Já vimos vários bispos fornecerem respostas divergentes sobre quais serão as implicações de Amoris Laetitia nas dioceses, e nada sugere que isto deixará de acontecer na ausência de uma declaração papal clara e indisputável.
Dependendo do ponto de vista adotado, o caso pode ser tomado como um passo em direção à “descentralização salutar” no catolicismo à qual Francisco por vezes se refere, ou como um caos doutrinal. Em todo caso, claramente parece ser onde estamos.
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Não importa o que digam, a clareza de Amoris Laetitia permanece elusiva - Instituto Humanitas Unisinos - IHU