08 Agosto 2016
"Não há, então, em 'Amoris Laetitia' nenhuma ética das circunstâncias, mas o clássico equilíbrio tomista, que distingue o julgamento sobre o fato do julgamento de quem o pratica, no qual são avaliadas as circunstâncias atenuantes ou eximidoras".
O comentário é de Rocco Buttiglione, filósofo e estudioso do magistério do Papa João paulo II, em artigo publicado por L'Osservatore Romano, 20-07-2016. A tradução é de Fernanda Pase Casasola.
Eis o artigo.
Lembro de ter visto, muito tempo atrás, uma charge em um jornal francês, acho que no L'Aube. Um grande número de teólogos, cada um sobre uma colina toda sua, olha o horizonte em busca de Cristo. No entanto, no vale, as crianças encontram Jesus. Ele pegou suas mãos, e passearam juntos entre os teólogos, que não o reconheciam. Os teólogos olhavam longe, mas Ele, porém, estava entre eles.
Tinha em mente essa charge de anos atrás enquanto lia alguns comentários sobre "Amoris Laetitia" e, de uma forma mais geral, sobre o pontificado do Papa Francisco. O "sensus fidei" do povo cristão imediatamente o reconheceu e o seguiu. Alguns sábios, por outro lado, têm dificuldade de o entender, criticam-no, opõem-no à tradição da Igreja e, especialmente, ao seu grande antecessor São João Paulo II. Parecem espantados pelo fato de não lerem no seu texto a confirmação de suas teorias e não estão dispostos a sair dos seus modos de pensar para escutar a surpreendente novidade de sua mensagem. O Evangelho é sempre novo e sempre antigo. Justamente por isso, nunca envelhece.
Vamos tentar ler a parte mais controversa de "Amoris Laetitia" com os olhos de uma criança. A parte mais controversa é aquela em que o Papa diz que, em certas condições e em certas circunstâncias, alguns divorciados que voltam a se casar podem receber a Eucaristia.
Quando eu era criança, fiz a Catequese para receber a Primeira Comunhão. Era o catecismo de um Papa definitivamente antimodernista: São Pio X. Lembro que explicava que para receber a Eucaristia é preciso que a alma esteja livre do pecado mortal. E também explicava o que é um pecado mortal.
Para que seja um pecado mortal são necessárias três condições. Deve ser uma atitude má, extremamente contrária a lei moral: uma matéria grave. Relacionamentos sexuais fora do casamento são, sem dúvida, totalmente contrários a lei moral. Era assim antes de "Amoris Laetitia", continua a ser assim em "Amoris Laetitia" e, naturalmente, também depois de "Amoris Laetitia". O Papa não modificou a doutrina da Igreja.
São Pio X nos diz mais uma coisa. Para um pecado mortal, outras duas condições são necessárias, além da matéria grave. É necessário que exista plena advertência da maldade do ato que se comete.
Plena advertência significa que o sujeito deve estar convencido com toda a consciência da maldade do ato. Se está convicto em consciência que o ato não é (seriamente) maldade, a ação será materialmente má, mas não poderá ser imputada como um pecado mortal. Além disso, o sujeito deve dar à maldade o seu deliberado consentimento. Isso significa que o pecador é livre para agir ou não agir: é livre para agir em um modo ou em outro e não se encontra em uma condição de sujeição ou de medo que o obriga a fazer o que preferiria não fazer.
Podemos imaginar circunstâncias nas quais uma pessoa divorciada recasada pode encontrar-se vivendo uma situação de culpa grave sem plena advertência e sem deliberado consentimento? Foi batizada, mas nunca verdadeiramente evangelizada, contraiu o matrimônio de forma superficial e depois foi abandonada. Uniu-se com uma pessoa que a ajudou em momentos difíceis, amou-a sinceramente, tornou-se um bom pai ou uma boa mãe para os filhos do primeiro casamento.
Ela poderia propor a convivência como irmão e irmã, mas o que fazer se o outro não aceita? Em um certo momento de sua vida complicada, essa pessoa encontra o encanto da fé, recebe pela primeira vez uma verdadeira evangelização. Talvez o primeiro casamento não foi verdadeiramente válido, mas não há a possibilidade de recorrer a um tribunal eclesiástico ou de apresentar provas da invalidade. Não vamos prosseguir adiante com os exemplos porque não queremos entrar em um estudo de caso infinito.
O que nos diz "Amoris Laetitia" para casos semelhantes? Talvez será bom começar com aquilo que a exortação apostólica não diz. Não diz que os divorciados que se casaram novamente podem tranquilamente receber a comunhão. O Papa convida os divorciados recasados a iniciarem (ou prosseguirem) um caminho de conversão. Convida-os a questionar suas consciências e buscar auxílio em um diretor espiritual. Convida-os a ir ao confessionário expor sua situação. Convida os penitentes e os confessores a iniciar um percurso de discernimento espiritual. A exortação apostólica não diz a que ponto desse percurso eles podem receber a absolvição e se debruçar sobre a Eucaristia. Não o diz porque é muito grande a variedade das situações e das circunstâncias humanas.
O caminho que o Papa propõe aos divorciados recasados é exatamente o mesmo que a Igreja propõe a todos os pecadores: confessa-te e o teu confessor, avaliando todas as circunstâncias, decidirá se dar-te-á a absolvição e admitir-te-á na Eucaristia ou não.
Que o penitente vive em uma situação objetiva de pecado grave é, salvo o caso extremo de um matrimônio inválido, certeza. Que carregue a plena responsabilidade subjetiva da culpa é, no entanto, para se avaliar. Por isso, vá confessar-se.
Alguns dizem que falando essas coisas o Papa contradiz a grande batalha de João Paulo II contra o subjetivismo na ética. A essa batalha é dedicada a encíclica "Veritatis Splendor". O subjetivismo na ética afirma que a bondade ou a maldade das ações humanas dependem da intenção de quem as pratica. A única coisa boa em si no mundo é, para o subjetivismo na ética, a boa vontade. Para julgar a ação devemos, portanto, considerar as consequências desejadas de quem as faz. Cada ação pode ser boa ou má, conforme essa ética, de acordo com as circunstâncias que as acompanha. Papa Francisco, em perfeita sintonia com o seu grande antecessor, nos diz, no entanto, que algumas ações são por si só propriamente más (por exemplo, o adultério) independentemente das circunstâncias que as acompanham e também das intenções de quem as pratica. Contudo, São João Paulo II nunca teve dúvidas que as circunstâncias afetam a valoração moral de quem pratica uma ação, tornando-a mais ou menos culpada do ato objetivamente mau que cometeu. Nenhuma circunstância pode tornar bom um ato intrinsicamente mau, mas as circunstâncias podem aumentar ou diminuir a responsabilidade moral de quem o comete. Justamente disso que nos fala Papa Francisco em "Amoris Laetitia". Não há, então, em "Amoris Laetitia" nenhuma ética das circunstâncias, mas o clássico equilíbrio tomista, que distingue o julgamento sobre o fato do julgamento de quem o pratica, no qual são avaliadas as circunstâncias atenuantes ou eximidoras.
Outros críticos opõem diretamente "Familiaris Consortio" (n. 84) a "Amoris Laetitia" (n. 305, com a famosa nota 351). São João Paulo II diz que os divorciados recasados não podem receber a Eucaristia, enquanto, Papa Francisco afirma que, em alguns casos, podem. Se não é uma contradição isso!
Experimentamos, todavia, ler o texto mais profundamente. Uma vez os divorciados recasados eram excomungados e excluídos da vida da Igreja. Com o novo "Codex Iuris Canonici" e com "Familiaris Consortio" a excomunhão é suprimida e são encorajados a participar da vida da Igreja e a educar de forma cristã seus filhos. Foi uma decisão extraordinariamente corajosa que rompia com uma tradição secular. Porém, "Familiaris Consortio" nos diz que os divorciados recasados não podem receber os sacramentos. O motivo é que vivem em uma condição pública de pecado e que precisam evitar o escândalo. Essas razões são tão fortes que parece inútil um exame das eventuais circunstâncias atenuantes.
Neste momento, Papa Francisco nos diz que vale a pena fazer essa avaliação. A diferença entre "Familiaris Consortio" e "Amoris Laetitia" encontra-se aqui. Não há dúvida que o divorciado que se casou novamente esteja em uma condição de pecado grave; Papa Francisco não os readmite na comunhão, mas, como todos os pecadores, os admite na confissão. Ali, relatará as eventuais circunstâncias atenuantes e ouvirá se e a quais condições pode receber a absolvição.
São João Paulo II e Papa Francisco certamente não afirmam a mesma coisa, mas não se contradizem sobre a teologia do matrimônio. Utilizam, contudo, de modo diferente e em situações distintas, o poder de desunir e de unir que Deus confiou ao sucessor de Pedro. Para compreender melhor esse ponto, vamos nos fazer a seguinte questão: há contradição entre os Papas que excomungaram os divorciados recasados e São João II que aboliu a excomunhão?
Os Papas anteriores sempre souberam que alguns divorciados recasados podiam estar na graça de Deus devido a diversas circunstâncias atenuantes. Sabiam bem que o último juiz é unicamente Deus. Porém, insistiam na excomunhão para reforçar, na consciência do povo, a verdade sobre a indissolubilidade do matrimônio. Era uma estratégia pastoral legítima, em uma sociedade homogênea como aquela dos séculos passados. O divórcio era um fato excepcional, divorciados recasados eram poucos, e excluindo, penosamente, da Eucaristia mesmo aqueles que poderiam na realidade recebê-la, defendia-se a fé do povo.
Atualmente, o divórcio é um fenômeno de massa e ameaça levar a uma apostasia de massa se de fato os divorciados recasados abandonarem a Igreja e não derem uma educação cristã aos seus filhos. A sociedade não é mais homogênea, tornou-se líquida. O número de divorciados é muito grande e cresceu, obviamente, também aquele dos que se encontram em situação "irregular", mas podem estar subjetivamente na graça de Deus. É necessário desenvolver uma nova estratégia pastoral. Por isso os Papas mudaram, não a lei de Deus, mas as leis humanas que necessariamente a acompanha, dado que a Igreja é uma organização humana e visível.
A nova regra cria problemas e traz riscos? Claro. Existe o risco de que alguém aproxime-se, de modo sacrílego, à comunhão sem estar em estado de graça? Se fizerem isso, comerão e beberão a sua sentença.
Mas a antiga regra não tinha também esses riscos? Não existia o risco de que alguns (ou muitos) se perdessem porque ficavam privados de um sustento sacramental do qual tinham direito? É tarefa das conferências episcopais de cada país, de cada bispo e, em última instância, de cada fiel adotar as medidas oportunas para maximizar os benefícios dessa linha pastoral e minimizar os riscos que comporta. A parábola dos talentos nos ensina a aceitar o risco tendo confiança na misericórdia.
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