Por: MpvM | 03 Março 2023
Estamos no segundo domingo da Quaresma, fazendo o caminho pascal, que nos convida à revisão de vida, de nossas escolhas cotidianas, de nossos relacionamentos e, conduzidos pela liturgia de hoje, diante de algumas perguntas fundamentais – onde coloco minha esperança? Tenho forças para prosseguir? Quais são minhas certezas e onde posso me apoiar?
A liturgia desse Domingo nos fala que não estamos sozinhas, de que somos comunidade, que somos Povo de Deus a caminho. Nos fala de fidelidade e de continuidade: de fidelidade ao nosso ser mais profundo, mas também às nossas histórias de origem, à nossa ancestralidade, ao caminho que já foi percorrido e do qual somos herdeiras agraciadas. Mas também fala de continuidade, de uma atitude de reverência a esse caminho herdado, e de fidelidade ao que é essencial e não pode ser perdido.
A liturgia nos conduz justamente dentro esse dinamismo – passado-presente-futuro. Faz memória, e nos convida ao acolhimento, à interpretação, aos questionamentos e também à confiança. Mais uma vez nos damos conta de que a Revelação considera amorosamente o caminho livre de cada criatura. Ela é puro movimento.
A reflexão é de Rosemary Fernandes da Costa, teóloga leiga, doutora em Teologia, pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro - PUC-Rio (2008) e bacharel em Filosofia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (1984). Atualmente é professora de Cultura Religiosa da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro e de Filosofia da secretaria de Educação do RJ. É criadora e coordenadora do curso de Pedagogia da Fé, no Centro Loyola de Fé e Cultura e na Arquidiocese do Rio de Janeiro. Assessora da CRB (Conferência dos Religiosos do Brasil) e da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), de agentes de pastoral e formadores na área de Iniciação Cristã, Catequese e Catecumenato. Participa do GT de Espiritualidades e Saúde da Abrasco.
Referências bíblicas
1ª Leitura - Gn 12,1-4a
Salmo - Sl 32,4-5.18-19.20 e 22 (R. Cf. 22)
2ª Leitura - 2Tm 1,8b-10
Evangelho - Mt 17,1-9
A primeira leitura (Gn 12,1-4a) traz o chamado que o Senhor faz a Abraão – Sai da tua terra e vai para a terra que eu vou te mostrar! – um chamado existencial, revolucionário, mas também um chamado para que Abraão realize sua vocação pessoal que é serviço, uma bênção comunitária.
O Salmo (Sl 32) confirma a presença firme do Senhor nesse novo caminho. E como identificarmos essa Presença? Através dos sinais: a retidão, o direito e a justiça.
A Carta de Paulo a Timóteo (2Tm 1,8b-10) nos conduz para a dimensão pascal da vocação cristã. É a vocação marcada pela identidade crística que, mesmo não compreendida nos contextos históricos, é assumida pelo poder de Deus que vence a morte e faz brilhar a vida.
O Evangelho (Mt 17,1-9) narra um momento de oração de Jesus diante do qual os apóstolos testemunham a glória de Jesus, sua ligação com Moisés e Elias, ouvem a voz de Deus que confirma a identidade messiânica de Jesus e seu caminho pascal.
Deixemo-nos conduzir pelo caminho desta linda liturgia quaresmal. Ela nos oferece algumas pistas para pensarmos no sentido da vocação. Veremos especialmente cinco passos na mistagogia desse caminho litúrgico: o convite, o diálogo com a realidade, a experiência da Transfiguração, a dimensão messiânica, o primado da Palavra e o Espírito de Jesus.
O convite nos fala da escuta do chamado, da voz de Deus que fala no profundo de cada ser, mas também na história de seu povo, nos acontecimentos. Um convite que convoca a uma resposta pessoal. Podemos observar que todos os personagens estão diante dessa vocação existencial e, para cada um, há um contexto histórico a ser assumido, libertado, transformado: Abraão, Moisés, Elias, e também o próprio Jesus, seus apóstolos e Timóteo, aconselhado por Paulo.
Todos estão ligados pelo mesmo vínculo – orientação existencial, histórica, mas também escatológica.
Além disso, há outro vínculo entre eles: ao serem convocados pela voz de Deus, respondem dentro de seu contexto, marcado por contradições, por incompreensão do projeto amoroso de Deus. É a dimensão de pascal que atravessa toda a história.
Portanto, aqui entramos no segundo passo dessa mistagogia: o diálogo com a realidade. Cada um está diante de um contexto conturbado. O chamado de Deus é de saída dessa realidade. Mas, sair para onde? Para uma experiência desconhecida? Para a incompreensão e a perseguição? Ao encontro de mais dificuldades?
O chamado de Deus nos diz que o que vemos não é tudo, há algo mais, maior: a Graça de Deus é presente, atuante, plena. Deus chama e acompanha amorosamente, ele é fiel à Promessa. Deus não abandona, ao contrário, suporta e eleva. O que parece fracasso, aos olhos históricos, será transfigurado e assumido no amor vitorioso.
Tudo isso nos interpela diante das aparentes seguranças que o contexto oferece, mas que tantas vezes estão distantes do projeto de vida para todos e todas. Na verdade, a Palavra des-vela que tantas vezes estamos fundamentando nossa vida em falsas imagens, em falsas seguranças e re-vela o mistério que está presente, que tudo ilumina e nos habita. É, portanto, um convite à revisão de vida: quais os fundamentos e esperanças em nosso jeito de viver, em nossas escolhas, em nossos relacionamentos?
Nosso terceiro passo é contemplarmos a experiência da Transfiguração. É uma experiência vivida pelo próprio Jesus, mas testemunhada por Pedro, Tiago e João.
Jesus sobe a montanha para rezar. Ele está vivendo um contexto de conflito com autoridades religiosas por onde vem passando. Ele tem consciência de que prosseguir é também assumir as consequências da incompreensão da Boa Nova. Ou seja, a cruz surge diante dele.
Esta narrativa nos remete ao Batismo, ao tempo de deserto, e também à oração no Monte das Oliveiras. Jesus diante de si mesmo, do projeto do Pai, de seu povo, de sua vocação, se coloca em oração.
Nessa experiência Jesus revê sua missão. Encontrar Moisés e Elias é reencontrar o projeto histórico e escatológico, seu vínculo mais profundo. É a fidelidade e também a continuidade de sua vocação.
Os apóstolos testemunham sua confirmação e sua glória. Quer coisa mais plena? Dá vontade de ir embora? Dá para pensar na cruz e sofrimento depois disso?
Pois é, eles querem ficar por ali mesmo, diante daquela experiência de plenitude, de glorificação, eles querem armar as tendas.
Mas, é nesse contexto narrativo que também podemos vislumbrar mais um passo dessa mistagogia: a dimensão messiânica do projeto de Deus. A voz que os apóstolos ouvem faz a mesma declaração ouvida no Batismo de Jesus: Este é meu Filho! Escutai-o! – Jesus é o Messias-Servo.
Moisés e Elias desaparecem, só fica Jesus. A Torah e os Profetas são integrados na Boa Nova. Daqui para frente ele é a Palavra.
Uma nova re-velação emerge nas entranhas desta mesma realidade: “Tu és meu filho amado!”.
É Deus que está presente e, com ele, tudo é novo e transfigurado. Momentos de oração, de subir a montanha, nos fazem perceber qual a direção de nossa vida, contudo, o caminho é do seguimento do Mestre, do Messias-Servo.
A kénosis é a gloria. A encarnação é a páscoa. Só há um caminho para a vocação cristã.
Dando mais um passo nessa mistagogia tão linda, nos encontramos com o grande marco dessa estrada: a Palavra. Como seguir? Como prosseguir? Como reavivar nossa relação com Deus? Como enraizar nossa vocação? – Escutai-o!
É preciso voltar a Jesus, ao Espírito de Jesus. É preciso , deixar-nos seduzir não só por um ideal, um sonho, uma missão, mas pela pessoa de Jesus. Ele é o mistagogo, é quem nos conduz, é a revelação que faz novas todas as coisas e armou sua tenda entre nós.
Estamos diante de um caminho de iniciação. Podemos, às vezes, achar que já temos um caminho assumido, e esquecemos que ele é dinamizado, ele é movimento e mistério. Mas ele é também é assumido no Amor que tudo suporta e conduz.
Somos discípulos e discípulas no caminho. Por vezes com medo, por vezes, inseguros, por vezes tentados a repousar em alguma etapa. Mas é certeza da voz de Deus em nossa história que nos sustenta e conduz sempre.
Então, subamos a montanha, vivenciemos o silêncio, entremos em contato com nossas inseguranças e contextos, contemplemos a Transfiguração e ouçamos, mais uma vez, o convite que teimosamente ecoa em nossas vidas.
Prossigamos na espiritualidade quaresmal, que é essencialmente um caminho de travessia, um caminho pascal. É o caminho crístico: o sol de nossas vidas, a morada de Deus, a shekinah que ilumina, mas também protege.
“Levantai-vos, e não tenhais medo!”
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2º Domingo da Quaresma - Ano A - Este é meu Filho... Escutai-o! - Instituto Humanitas Unisinos - IHU