Por: Jonas | 12 Setembro 2013
Como se fosse uma catarse coletiva não houve quem não tivesse ânimo para dizer algo sobre o drama que ocorreu no Chile, no dia 11 de setembro de 1973. Documentários transmitidos por canais e rádios a todo instante; visitas guiadas pelos espaços da memória, pronunciamentos de políticos em torno do perdão, queixas pela Constituição herdada do pinochetismo, carabineiros (policiais) ignorando e desmontando uma mostra com telas e murais das organizações de direitos humanos, que reclamavam, como há 40 anos, que se puna os responsáveis do terrorismo de Estado. Os cartazes pelo aniversário se misturavam com imagens de campanha, pois haverá eleições em novembro e as duas mulheres e principais candidatas, Michelle Bachelet e Evelyn Matthei, foram filhas de generais da força aérea, mas com um passado antagônico.
A reportagem é de Mercedes López San Miguel, publicada no jornal Página/12, 11-09-2013. A tradução é do Cepat.
A casa número 38, localizada num beco com paralelepípedos de nome Londres, perto do Palácio de La Moneda, tornou-se, entre 1973 e 1974, um centro de detenção e tortura onde foram assassinados 98 sequestrados da ditadura de Augusto Pinochet. Na fachada, um grande cartaz destaca: “40 anos de lutas e resistência” sobre o local de tormento, no qual se usou a descarga elétrica para interrogar, numa sala do segundo piso, e invalidar mais rápido a vontade dos detidos. Ontem, na véspera do aniversário do dia que mudou a história deste país, a casa despojada de objetos era visitada por numerosas pessoas. A organização Londres 38 colocou em circulação um vídeo pelas redes sociais, em que mostra como na madrugada do domingo passado um grupo de carabineiros retiraram as telas colocadas nas pontes do rio Mapocho, que levavam a consigna: “Onde estão os desaparecidos?”. O guia e militante dos direitos humanos Felipe Aguilera se indignou diante da remoção da mostra, na qual trabalhou durante semanas. “Os carabineiros passaram por cima da autorização dos municípios e atuaram por fora do estado de direito. Enviamos uma carta ao governo pedindo a restituição das telas.”
A algumas quadras desse espaço da memória, os transeuntes da zonal central da cidade se mostravam inclinados a recordar a queda de Salvador Allende como uma data fatídica. Yeri Chávez, empregada em uma empresa de aço, destacou que ela tinha 12 anos, mas a imagem do bombardeio ao edifício de La Moneda ficará gravada em sua memória. “Nunca mais deve ocorrer semelhante abuso de poder nas mãos de um ditador. Agora, somos livres para dizer o que queremos, existe liberdade de expressão. O que ocorreu foi trágico”. Um homem de 55 anos, enquanto fumava, disse que entre 1980 e 1990 tudo doía. “Estamos no caminho de conquistar a paz conosco mesmo. Recordo-me que me diziam que matavam as pessoas e as jogavam nas lixeiras. Pessoalmente, doía-me quando desapareciam estudantes da universidade”, disse o engenheiro Jaime Flores.
Como um dos obstáculos do pinochetismo, existem vazios nos processos judiciais. A socióloga Marta Lagos enfatizou que isto se vincula ao modelo chileno de reconciliação. “A transição foi possível porque não se exigiu a verdade. A verdade esteve congelada, em espera”. Na proximidade da comemoração do dia 11 de setembro, o presidente conservador Sebastián Piñera afirmou que a Justiça não esteve à altura das obrigações e desafios. “O Poder Judiciário poderia ter feito mais, porque por mandato constitucional o correspondia zelar pelos direitos das pessoas e proteger as vidas. Por exemplo, acolhendo os recursos de defesa que rejeitou massivamente”. No entanto, é questionado por não ter feito o suficiente na matéria. A Anistia Internacional entregou, ontem, no palácio presidencial, um pedido assinado por mais de 25 mil pessoas, reivindicando ao governo chileno que elimine todas as barreiras que protegem os autores de violações aos direitos humanos.
“Não é aceitável que 40 anos após o golpe militar continuem existindo dificuldades para a busca da verdade, da justiça e da reparação no Chile. A lei da Anistia continua protegendo os violadores com imunidade processual, continua existindo longos atrasos nas atuações judiciais e as condenações não refletem a gravidade dos crimes cometidos”, destacou a organização.
Segundo os números oficiais, o número de pessoas desaparecidas ou assassinadas no Chile, entre 1973 e 1990, ultrapassou 3000 e cerca de 40.000 sobreviveram ao encarceramento por motivos políticos ou a tortura. O Decreto Lei de Anistia, aprovado em 1978, exime de responsabilidade penal todas as pessoas que cometeram violações de direitos humanos, entre 11 de setembro de 1973 e 10 de março de 1978. Embora algumas sentenças se esquivaram da aplicação da norma, o fato dela continuar existindo é incompatível com as obrigações internacionais do Chile em assuntos de direitos humanos.
Ainda que Piñera tenha votado pelo Não à continuidade de Pinochet, no referendo do dia 5 de outubro de 1988, e de não se identificar com a ala pinochetista da Aliança de direita (UDI – Renovação Nacional), apoiou a candidata Evelyn Matthei, que até pouco tempo era sua ministra do Trabalho. Matthei pertence ao partido mais conservador do Chile, UDI, que conta com simpatizantes do ditador, como ela. Evelyn e Michelle são filhas de generais da força aérea, com vidas cruzadas. Alberto Bachelet morreu em 1974 por um ataque cardíaco, derivado das torturas que sofreu por ser leal a Allende, ao passo que Fernando Matthei, pai de Evelyn, integrou a Junta Militar que governou o Chile de 1973 a 1990 e existe a suspeita de que possui responsabilidade na morte de Bachelet.
Também com o pé na história e com pouco mais de 40 anos, o ex-socialista e hoje candidato independente, Marco Enríquez Ominami, é filho do cofundador e secretário geral do Movimento de Esquerda Revolucionária (MIR), Miguel Enríquez. O candidato do Partido Progressista instou Matthei para que se retifique. “Buscamos convidar, sem ódio e sem rancor, a candidata dos dois partidos que sustentaram a ditadura militar para que peça perdão. É importante, nesta eleição, incentivarmos os pisos éticos”.
É que Matthei enfatizou que em relação às violações aos direitos humanos, ocorridas após a queda de Allende, não tinha nada para se desculpar. “Eu tinha 20 anos, no [momento do] golpe, não tenho nada do que pedir perdão”, sustentou firmemente Matthei. Referiu-se assim às declarações do senador da UDI, Hernán Larraín, que alguns dias atrás fez um mea culpa pelo ocorrido com posterioridade ao dia 11 de setembro.
Sem escapar do debate político, a ex-mandatária e aspirante da Nova Maioria fez um discurso no Museu da Memória, na segunda-feira – um espaço gestado durante seu governo -, paralelo ao ato oficial liderado por Piñera. “Não existe reconciliação que se construa diante da ausência de verdade, justiça ou num duelo”, disse Bachelet, a melhor posicionada para ganhar as eleições do dia 22 de novembro, diante de familiares das vítimas da ditadura, como Ana González, cujo esposo, dois de seus filhos e sua nora foram sequestrados pela polícia secreta de Pinochet.
O Chile viveu uma catarse da qual ninguém ficou de fora.
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O Chile faz uma catarse quarenta anos depois - Instituto Humanitas Unisinos - IHU