11 Julho 2013
Professor da PUC-SP entrevista teólogos e teólogas da Europa e EUA que atestam a vitalidade e a diversidade da Teologia da Libertação.
Jorge Claudio Ribeiro, professor livre-docente e titular do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP, é o autor do artigo que publicamos a seguir.
Eis o artigo.
Em abril de 2013 realizou-se a International Buddhist-Christian Conference1, no Union Theological Seminary - UTS, da Columbia University em Nova York. O evento colocou em diálogo religiosos engajados e teólogos da libertação. A iniciativa foi do teólogo Paul Knitter e marcou sua aposentadoria da docência no UTS. Pelo Brasil, participaram Ivone Gebara, Nancy Cardoso, Jung Mo Sung e o quase-brasileiro José María Vigíl. Assisti à conferência e aproveitei para entrevistar os teólogos Ulrich Duchrow, Joerg Rieger e Rosemary Radford Ruether, que afirmaram a vitalidade e a diversidade da Teologia da Libertação.
O dinheiro da avareza
Ulrich Duchrow é luterano, professor de Teologia Sistemática e Ecumênica na Universidade de Heidelberg, Alemanha. Ele participa de grupos de trabalho com foco em questões envolvendo teologia, economia e sociedade. Em 1990, fundou Kairos Europa2, uma rede descentralizada que agrega iniciativas relativas à justiça econômica e ecológica em colaboração com igrejas, movimentos sociais, sindicatos e organizações não-governamentais dentro e fora da Europa. Também fundou a sessão alemã de Attac (“Associação pela Tributação das Transações Financeiras para Ajuda aos Cidadãos”)3 . Em seus numerosos escritos, esse veterano de lutas sociais tem sido um crítico do neoliberalismo e do capitalismo global4.
Duchrow lembra que, em 1965, ministrou aulas no curso do Cesep em São Paulo e esteve em visita a uma CEB de Itaim Paulista. Em 1969, participou de colóquio com Gustavo Gutierrez e Rubem Alves. Enfatiza que “sem libertação não há teologia. A Teologia da Libertação consiste na redescoberta das origens do cristianismo, daí sua afinidade com os estudos bíblicos na linha sócio-histórica. Ela só pode ser intercultural e globalizada, sendo plural na busca de suas raízes”. Na sua visão, essa teologia só pode ser diversa, de acordo com os contextos em que atua: “No Sul, ela trata de suscitar o poder dos pobres, e no Norte se esforça por ‘abater os poderosos de seus tronos’”.
Essa percepção orienta sua recente obra “Transcending greedy money – interreligious solidarity for just relations” (“Transcendendo o dinheiro da avareza – a solidariedade inter-religiosa em prol de relações justas” – não disponível em português), em coautoria com Franz Hinkelammert. A primeira afirmação do livro é que a modernidade passa por um clímax destrutivo com raízes profundas na História. Assim, a Era Axial, iniciada no Século 8 a.C., desenvolveu novas formas de comércio baseadas na moeda e na propriedade privada, de política imperial e de comportamentos baseados na avareza e egocentrismo. Desde então, a crescente divisão do trabalho atribuiu um papel central ao dinheiro e à propriedade e a avareza tornou-se valor supremo, tendo sido institucionalizado como juros, tributos e escravidão, o que terminou por escavar o crescente abismo entre ricos e pobres. Em sentido oposto, na Era Axial e nas posteriores também emergiram movimentos religiosos e filosóficos em direta confrontação com as tendências de morte – exemplos dessa oposição são as tradições judeo-cristãs, budistas, gregas clássicas e, posteriormente, as islâmicas que se inspiraram na espiritualidade axial.
A Modernidade ocidental, fazendo uso articulado da ciência, tecnologia, economia e política atingiu a crise atual que põe em risco a sobrevivência da humanidade, mas, em contrapartida, ela se engaja na busca da humanização e emancipação, contra a acumulação de capital. Nesse contexto, as religiões podem promover a vida em dignidade, através de uma múltipla abordagem, que desmistifica e desafia o sistema: isso através da promoção dos direitos humanos em todas as áreas da vida social, inclusive (modernamente) o consumo. Entretanto, é preciso que as religiões reconheçam que assumiram um papel ambivalente ao longo da História e que frequentemente abusaram de seu “tremendo poder sobre os corações e mentes das pessoas”. Contra esse veneno, as próprias tradições produziram um antídoto: “É o critério de que Deus elegeu os pobres, os marginalizados e os excluídos”. E concluem que uma nova Era Axial é necessária e possível e, se não traz o paraíso, interrompe o inferno na Terra.
Ocupar a religião
Joerg Rieger é um dos representantes mais atentos e produtivos da nova geração de teólogos da libertação. Alemão de nascimento e de tradição metodista, ele é professor de Teologia Construtiva na Perkins School of Theology, da Southern Methodist University, Texas. Ativo conferencista e autor de numerosos livros (dois deles em português)5, ele propõe pensar teologicamente a economia, política e globalização e, nesse processo, gerar alternativas concretas.
Para Rieger, no geral, a teologia se encontra fragmentada em visões exclusivistas, não raro marcadas pelo ressentimento. Além disso, a teologia falha ao não levar em conta a dimensão político-econômica da realidade: “É preciso considerar como o Império nos molda”. Por exemplo, a quem o racismo beneficia? O racismo foi um modo de dividir a classe trabalhadora, negros e brancos, por meio da concessão de modestas vantagens a estes últimos. Rieger se diz perplexo com o fato de o povo votar contra os próprios interesses, de muitos apoiarem a ultra-direita republicana e o grupo Tea Party, que se opôs à reforma na área da saúde. Também aponta como poucos negros cristãos são sensíveis à Indignados europeus, preferindo a Teologia da Prosperidade, “que é uma loteria, uma espécie de corrente em que pouquíssimos ganham”.
Para situar as situações numa perspectiva mais ampla, Rieger postula a reintrodução do conceito de classe social, de que muitos estadunidenses desconfiam, devido à análise de origem marxista. Classe social, aliás, é o tema de seu próximo livro – “Religion, Theology, and Class: Fresh Engagements after Long Silence” – a sair em setembro. Ele lembra que somos uma multidão de 99%, que estamos no mesmo barco e somos explorados por 1% de ricos. “Saber que estamos no mesmo barco é uma visão prática que supera a ilusão do individualismo e a solidariedade paternalista.”
Para desenvolver sua Teologia da Multidão, Rieger dialogou com Toni Negri e Michael Hardt6 e se baseou nos protestos de massa do movimento Occupy Wall Street. Nascido no minúsculo Zuccoti Park, esse movimento se alinhou com a Primavera Árabe, os Fórum Social Mundial e o Fórum Social Mundial. Tendo começado em setembro/2011 em Nova York, Occupy espalhou-se por 952 cidades no mundo. Rieger desenvolve sua proposta no livro “Occupy Religion – Theology of the Multidude” (“Ocupar a Religião – Teologia da Multidão”, sem tradução), em coautoria com Kwok Pui-Lan.
Publicado em outubro/2012, “Occupy Religion” acabou oferecendo uma visão profética e antecipatória que pode contribuir com o leitor brasileiro na compreensão dos movimentos populares em curso no Brasil, bem como o papel das religiões e da teologia nesse processo. Tal como aconteceu com as multidões com as quais Jesus interagia, é possível ajudar os vários grupos a se verem como agentes da história. Ele traça a genealogia de Occupy a partir manifestações como o Social Gospel, do século 19, e dos direitos civis dos anos 1950 e 60 nos EUA. Afirmando que as várias vertentes da Teologia da Libertação continuam relevantes, Rieger desenvolve uma abordagem interdisciplinar baseada na experiência recente da multidão, ou os 99%, com suas novas formas de aglutinação, protesto e ensaios de uma realidade concretamente utópica. Nesse contexto, ele relata o aprendizado vivenciado por “protest chaplains” de várias religiões que foram oferecer apoio espiritual aos “ocupantes” e que, imprevistamente, receberam destes uma lição de democracia. Esse contato com a realidade social questionou a vida eclesial desses capelães7, bem como as representações habituais de um Deus aliado das elites patriarcais e prisioneiro das estruturas hierárquicas. Maravilhados, perceberam como Emanuel luta, protesta e propõe um mundo novo nas praças e ruas, em relação com a multidão.
Deus feminina
Tal como no casório em que Jesus começou sua vida pública, o vinho fica mais fino no final. Nascida de mãe católica e pai episcopaliano, sacerdócio feminino atualmente é professora convidada na Claremont Graduate University. Ela apresenta uma produção impressionante, que reúne qualidade e influência à quantidade. “Ela é a inspiradora de todas nós”, segreda-me Ivone Gebara8. Escreveu 47 livros, dentre os quais os três volumes do “Dictionary of Women and Religion in North America”9, além de mais de 600 artigos. Seus temas prediletos são feminismo, ecofeminismo, Bíblia e cristianismo. Rosemary é uma crítica constante da política de guerra, desde o conflito do Vietnã; também é considerada pioneira na área da Teologia Feminista, mesclada à Teologia da Libertação, especialmente na Palestina e América Latina.
Para Rosemary, “toda boa teologia é da libertação. Se não for assim, então é da dominação”. Ela lamenta que em muitos cursos de teologia não se explicite a conexão entre Evangelho e justiça: no máximo, se trabalha de forma assistemática o conceito de justiça. “É ridículo dizer que a Teologia da Libertação está morta porque a União Soviética e o comunismo acabaram.” A teóloga afirma que, ao contrário, a Teologia da Libertação nos EUA continua vivíssima. E acrescenta, com humor: “Por exemplo, a prestigiosa American Accademy of Religion pode ser considerada uma sessão da Teologia da Libertação...”. Ela entende que essa teologia se desenvolve a partir dos vários contextos sociais em que se enraíza e que, nos EUA, as principais vertentes são a Teologia Negra e Ecofeminista.
Ela considera que a representação habitual mostra Cristo duplamente masculino: enquanto Deus (masculino) e enquanto homem (“male”). Essa imagem serve de base para uma falsa normatividade pela qual as mulheres são consideradas seres incompletos: “Daí o Vaticano dizer que o anseio por um sacerdócio feminino viola o sacramento”. Para ela, “violação é o uso do poder sobre o outro, no campo social, de gênero ou raça”10.
Se pudesse, a feminista Rosemary abraçaria o sacerdócio? Ela é taxativa: “Não quero ser sacerdotisa – imagine ter de me submeter a diretrizes de algum bispo...”
Notas do autor:
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Teologias da Libertação: aproximação global - Instituto Humanitas Unisinos - IHU