27 Fevereiro 2013
"Para compreender a relação do papa Bento XVI com os jovens, serão analisados seis discursos, duas mensagens preparatórias e uma entrevista aos jornalistas por ocasião das três JMJ internacionais em que se envolveu", escreve Jorge Claudio Ribeiro, professor livre-docente e titular do Departamento de Ciência da Religião da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo - PUC-SP.
Eis o artigo.
Segundo analistas, ao contrário de seu antecessor, Bento XVI tem dificuldades em perceber suas plateias e se comunicar com elas, estando mais preocupado com sua mensagem. “Comunicação é o maior problema deste papado”, diz o Pe. Thomas Reese, jornalista e pesquisador da Universidade Georgetown (EUA) . Como compensação, em seus encontros com a juventude, o papa tenta fazer uso do know-how e o carisma acumulados por João Paulo II, embora sem seu talento. Assim, em maio de 2007, Bento XVI se reuniu no Estádio do Pacaembu com 38 mil jovens “de confiança” selecionados por paróquias e sua mensagem foi o convite a abraçar a castidade. Em visita à Fazenda Esperança, dedicada à recuperação de drogados, Bento XVI conclamou os traficantes a pensarem no mal que provocam e acrescentou: “Deus vai-lhes exigir satisfações”. Comentando essa atitude, que classificou de ingênua, o jornalista Clóvis Rossi questiona se essa peroração é eficaz e se é uma atitude cristã dar de ombros à colossal violência e esperar que Deus aja diretamente junto aos criminosos.
Para compreender a relação do papa com os jovens, serão analisados seis discursos, duas mensagens preparatórias e uma entrevista aos jornalistas por ocasião das três JMJ internacionais em que se envolveu. Nesses discursos foram rastreados três eixos: Auto-referência; Igreja e Mundo; Visão da Juventude.
1 – Auto-referência
A característica principal das JMJ é que parece ser uma pregação endógena, exclusiva da massa católica, mais do que um encontro com jovens católicos e muito menos um diálogo com a cultura da geração a que eles pertencem. A expressão “vos saúdo e vos acolho”, coloca o papa na posição de anfitrião e não propriamente a de alguém disposto a partilhar experiências com seu interlocutor. Apenas dentro do ritual, por ele presidido, há uma situação de proximidade: “Também eu me pus a caminho para vir juntamente convosco ajoelhar-me diante da branca Hóstia consagrada”.
Entretanto, considerando-se que as jornadas são preparadas junto aos jovens nas dioceses ao longo de vários meses, é o caso de perguntar se, nesse período propício a intensa escuta, teriam sido recolhidas as alegrias e esperanças, as tristezas e as angústias dos jovens de hoje? Em caso positivo, essas realidades foram levadas ao papa? Enfim, por que então elas não foram incorporadas nos discursos pontifícios?
Os temas propostos para cada encontro são um indício de auto-referência, pois são tirados da Bíblia, são objeto de escolha do papa e selecionam um público preferencialmente “devoto”, com afinidade espontânea com o papa. Outro indício é que todo o ambiente – o local, as datas, o imaginário, os anseios – parece enclausurado num mundo religioso: nem que seja por cinco dias, o jovem vive na cidade celeste, esquecido de si e dos problemas de seu tempo. Essa possibilidade de “contato sensível” com Jesus, de “meter, por assim dizer, a mão nos sinais da sua Paixão” se realiza nos Sacramentos, na leitura dos Evangelhos e do Catecismo da Igreja Católica. Jesus também está no serviço aos pobres, doentes e a quem precisa de ajuda. Entretanto, em vários discursos, a questão da pobreza é revestida de teor assistencialista, espiritualizante.
Não por acaso, o papa faz frequentes referências ao “grande Santo Agostinho”, sua base teórica. Também é mencionada uma miríade de santos, em geral clérigos, como exemplos concretos de vida. As referências sacralizantes conflui para a menção a Edith Stein, que viveu no Carmelo de Colônia, cidade-palco da JMJ.
Todas essas alusões ao universo da religião da qual é pontífice máximo mostram pouca solidariedade com a dramaticidade do humano sobre a qual não se detém, mas serve apenas de pretexto para recorrer ao absoluto: “Num certo sentido, todas as gerações sentem este impulso de ir além do habitual. Trata-se apenas de um sonho vazio? Não, o homem é verdadeiramente criado para aquilo que é grande, para o infinito”. O Espírito serviria de panacéia mágica para nossos problemas individuais e sociais: “Quem poderá satisfazer este desejo humano essencial de ser alguém, viver imerso na comunhão, ser edificado, ser guiado para a verdade? O Espírito Santo”.
O sentido da pregação reiterada de ensinamentos tradicionais está explícito na recomendação aos jovens: “Fazei com que a vossa fé amadureça através dos vossos estudos, trabalho, desporto, música, arte... Acolhendo a força do Espírito Santo, podereis também vós transformar as vossas famílias, as comunidades, as nações”. Parece faltar senso do real a propostas tão genéricas, marcadas por um idealismo que, mais é adequado a análises subjetivas, epistemológicas e metalinguísticas, mas certamente não contribui para análises de conjuntura concreta.
A posição de superioridade, a importância dada a um mundo à parte, a falta de diálogo com as dinâmicas contemporâneas, usadas apenas como pretexto para reprovação: isso tudo se materializa numa exasperante auto-referência ao ambiente católico. A menção, feita em várias jornadas ao “Servo de Deus tão amado por todos nós, João Paulo II” , “que neste momento está conosco” é o ponto culminante dessa circularidade e sinal claro da auto-referência praticada nesses eventos.
2 - Igreja- mundo
A auto-referência do discurso tem uma fundamentação teórica que se depreende das análises de Bento XVI sobre as relações entre Igreja e mundo. O papa parece apoiar-se numa estrutura mental dualista, de padrão platônico-maniqueísta-agostiniano. De modo geral, ele proclama a centralidade e exclusividade da Igreja Católica, retratada como um mundo religioso idílico, apenas ocasionalmente tocado pela tragédia humana. Em contrapartida, com relação a este mundo em suas sociedades e história, com freqüência o pontífice lamenta suas mazelas e, numa atitude de negação, não parece conhecer suas complexas dinâmicas nem reconhece soluções arduamente construídas. Quando admite algum valor a situações “humanas”, usa o esquema “yes, but” em que algum elogio, feito sem muita convicção, é seguido de restrições de teor moral.
Com respeito à Igreja chamam atenção as freqüentes afirmações de superioridade. Por exemplo, o papa afirma que os “verdadeiros reformadores” foram os santos fundadores das Ordens religiosas ou os santos do nosso tempo. E acrescenta: “Para expressar de modo mais radical: só dos Santos, só de Deus provém a verdadeira revolução, a mudança decisiva do mundo”. Na mesma ocasião diz que “não são as ideologias que salvam o mundo, mas unicamente dirigir-se ao Deus vivo... a verdadeira revolução consiste unicamente em dirigir-se sem reservas a Deus”.
Mais adiante, ao mencionar as revoluções, compara o poder de Deus ao poder humano, em base a uma diferença de grau, e não de natureza: “O programa comum delas era não mais aguardar a intervenção de Deus, mas assumir totalmente nas próprias mãos o destino do mundo”. Nesse sentido, lamenta o secularismo que se traduz num “estranho esquecimento de Deus. Parece que tudo caminha igualmente sem Ele” ou então na consideração da fé “como um fato privado, sem qualquer relevância para a vida social”. Nesse sentido, Deus é encarado como uma força tangível – política, cultural e ética. Mas quando afirma que “o poder de Deus é diferente do poder dos poderosos do mundo... Deus não entra em concorrência com as formas terrenas do poder”, só aparentemente há contradição, pois Bento XVI parece advogar para o poder divino a supremacia nessa terra, como um retorno à Cristandade. Para tanto, o papa enfatiza o auxílio do Espírito Santo, que rege a estrutura institucional da Igreja.
Não obstante, o papa reconhece que se pode “criticar muito a Igreja” e que seu predecessor “pediu perdão por tudo o que ao longo da história, devido às ações e às palavras dos homens de Igreja aconteceu de mal”. Afirma ainda (como se restasse dúvida) que “a pedofilia é sempre má”, e que é preciso “curar e reconciliar as vítimas” . Desse modo, o pontífice ameniza as críticas feitas à instituição que dirige, ao concluir que “no fundo, é confortador o fato de existir a erva daninha na Igreja... [que] é como uma família humana”.
Quanto ao saeculum, Bento XVI reconhece valores: “Nos últimos cinquenta anos, o mundo ocidental realizou grandes progressos econômicos e técnicos... devido aos avanços nas ciências médicas e à sábia aplicação da tecnologia até à criatividade que se espelha nas artes, cresce de muitos modos e constantemente a qualidade de vida para satisfação das pessoas”.
[Yes, but] “aquilo que fora pomposamente exaltado como engenho humano, bem depressa se manifestou como loucura, avidez e exploração egoísta” . O pontífice frequentemente deplora à cultura ocidental, sobretudo o secularismo, relativismo, laicismo, privatização da fé e a irrelevância pública da religião. No limite, tais mazelas contribuem para mudanças climáticas, para a desfiguração da superfície da terra (erosão, desflorestamento, esbanjamento dos recursos minerais e marítimos para alimentar um consumismo insaciável), a fragmentação da sociedade contemporânea e sua exclusão de pobres, idosos, imigrantes e sem voz, além de produzir violência doméstica, contra mães, crianças e nascituros.
Para afastar esse “inferno” em que se transforma o mundo sem Deus, o papa recomenda a oração comunitária incessante, os sacramentos, a leitura dos Evangelhos e do Catecismo da Igreja Católica, que alimentam uma vida espiritual guiada pelo Espírito Santo, que renovará a Criação . A fragmentação da vida se recomporá mediante a dignidade inata de cada indivíduo, a qual lhe é conferida pelo próprio Deus e se assenta em sua dignidade mais profunda, derivada de sua condição de imagem do Criador. Se respeitados esses processos, ao longo das JMJ, a Austrália e a Europa reencontrarão suas raízes cristãs.
Em suma, tem-se a impressão de sermões convencionais que repetem fórmulas religiosas tradicionais, mostram-se pouco solidários aos problemas e distantes da sabedoria humana acumulada a respeito de questões muito complexas.
3 - Visão da Juventude
A auto-referência à Igreja, a proclamação de sua centralidade e a desconfiança ante o mundo, que permeiam os discursos analisados, mostram um pontífice que não considera a condição juvenil daqueles que comparecem às Jornadas Mundiais... da Juventude. Como se estivesse numa missa preconciliar, o papa parece estar de costas para os presentes e, por não conhecê-los, recita mensagens genéricas.
Assim, o destinatário do papa não são os jovens, nem mesmo as centenas de milhares de jovens católicos, mas o bilhão de pessoas que integra o rebanho católico. Esse descaso com a dimensão local contraria a intenção profunda desse tipo de encontro e, a médio prazo, pode resultar em sua esterilidade. Sinais dessa atitude e a escolha dos temas (os Reis Magos, o Espírito Santo, o enraizamento na fé), sua abordagem e seu foco em preocupações intra-eclesiais.
Em consequência, os jovens são contrariados em sua característica básica – enquanto seres em busca e seres de relação – e reduzidos à condição de receptores passivos de mensagens, condição essa contrária àquela a que vivenciam no “mundo”, mesmo que seja o mundo-do-consumo. A positividade da condição juvenil e seus saberes são pouco reconhecidos pelo poder eclesiástico e, por conseguinte, pouco cultivados pelos participantes das JMJ. Ao definir para os jovens o que eles devem querer ou aceitar, ao impor limites rituais para sua experiência de Deus e da Igreja, a hierarquia reduz a criatividade humana e, portanto, teológica deles.
Bento XVI tenta criar afinidade com seus jovens ouvintes, ao fazer uso constante de expressões próprias de um vocabulário jovem, moderno, que conota a subjetividade e as emoções: “peregrinação”, “caminho interior”, “misterioso”, “ad-oratio é contato boca a boca, beijo, abraço e, por conseguinte, fundamentalmente amor”, “liberdade”, “mundo melhor”, “audácia”, “coragem”, “beleza”, “alegria”. É verdade que essas expressões verbalizam experiências importantes: a admiração da beleza natural, sobressair-se nos estudos, no desporto e nas artes, desenvolver um sentido agudo da justiça social e da ética e compromissos de serviço e de voluntariado. No entanto, essa tentativa de apresentação parece frágil e insuficiente, na medida em que respeita pouco a autonomia fundamental da existência juvenil.
Outro recurso “moderninho” nos discursos papais são os testemunhos de sua experiência pessoal, com o objetivo de ilustrar um argumento. Por exemplo, num procedimento questionável (visto comparar contextos históricos muito diferentes) ele aproxima sua juventude da atual: “Sei que estabilidade e segurança não são as questões que ocupam mais a mente dos jovens... idade na qual se está em busca da vida maior... Durante a ditadura nacional-socialista e durante a guerra nós fomos, por assim dizer, ‘aprisionados’ pelo poder dominante”. Mais adiante, ele menciona a questão da orientação para a vida de cada um: “De certa forma muito cedo tive a consciência de que o Senhor me queria sacerdote. Mais tarde, depois da Guerra, quando no seminário e na universidade... tive que reconquistar esta certeza” .
O papa reconhece aspectos positivos na juventude e se solidariza com seus impasses, mas “alguma coisa não está certa”: devido a amizades por vezes perigosas, abuso de álcool e de drogas, a exaltação da violência e a degradação sexual, frequentemente apresentados na televisão e na internet . Aceita o senso de liberdade do jovem, mas a liberdade deve submeter-se à verdade e ao bem, numa submissão “que nos liberta em função da verdade mais íntima do nosso ser” . Esse tipo de discurso corre o risco de esvaziar a positividade do jovem ao projetá-lo para o futuro e, portanto, considerar seu presente apenas uma passagem.
O esvaziamento fica patente no convite aos jovens para o projeto da Igreja, sem antes perguntar por suas propostas: “Nunca esqueçais que a Igreja, aliás a própria humanidade, a que vos circunda e a que vos aguarda no futuro, espera muito de vós, jovens, porque tendes em vós o dom supremo do Pai, o Espírito de Jesus”. Diante da reconhecida dificuldade dos adultos de se aproximar da juventude, é jogada sobre seus ombros a acachapante responsabilidade de “conduzir um jovem para Jesus Cristo” de “serem santos missionários, como São Francisco Xavier”. O desempenho na missão não deriva do conhecimento acumulado, mas de imprecisas competências derivadas do “argumento de idade”: “Vós conheceis os ideais, as linguagens e também as feridas, as expectativas e ao mesmo tempo o desejo de bem dos vossos coetâneos. Abre-se o vasto mundo dos afetos, do trabalho, da formação, da expectativa, do sofrimento juvenil”.
O convite para uma tarefa tão grandiosa – chancelada pela Igreja, pela humanidade e pela Trindade! –, por sua vez, corre o risco de esmagar a autonomia e a criatividade dessa geração. Isso fica claro quando o papa afirma o dúbio direito dos jovens “de receber das gerações que vos precedem pontos firmes para fazer as vossas opções e construir a vossa vida... Quais são as nossas raízes? Naturalmente, os pais, a família e a cultura do nosso país, que são uma componente muito importante da nossa identidade”. E, fazendo uma concessão ao tempo, cita a globalização, para convocar os jovens a testemunhar sua esperança ao mundo. E conclui: “A Igreja conta convosco! Precisa da vossa fé viva, da vossa caridade e do dinamismo da vossa esperança. A vossa presença renova a Igreja, rejuvenesce-a e confere-lhe renovado impulso”.
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Bento XVI e os(as) jovens - Instituto Humanitas Unisinos - IHU